ALDRAVAS
ALDRAVAS
                                                     
“Abre-te Sésamo!” 
                                           (Ali
Babá e os quarenta ladrões, in: Mil
e uma noites) 
          Gemiam os ferrolhos na opacidade da
tarde que se anunciava finda e fria. 
         À
porta, mãos nodosas dirimiam a distância pretensa. 
         Nenhum vislumbre denunciava o
interior. O silêncio era quebrado de fora, na altura das mãos que arremetiam a
aldrava.
         Em sendo proteção o que a casa
buscava, deixava ao largo quem passasse por ela. Distinta e imponente impunha ares
de intocável distanciamento, mensagem não traduzida palas mãos insistentes que mais
uma vez dobravam força sobre a face da madeira envernizada.  Madeira de lei, tratada com a seriedade
exigida pela condição de seu nobre nascimento. Seria nobre o gesto de se abrir
a porta e perguntar a que vinha. Mais uma, mais duas, tantas portas fechadas
pela obsessiva atenção de quem protegia aos seus e a si. Atenção: frêmito de
longo alcance, turbulência ausente no rol das necessidades urgentes que
perfilavam a insistente rotina de escassez traduzida em indigna pobreza.
         O silêncio instalava-se nas bordas do batedor
localizado na altura das mãos.   A
lamúria das pequenas travas que o mantinham pregado à porta chegava-lhe em
ondas surdas, quase inaudíveis não fosse a longa experiência diante daquelas
peças cegas. Travas fechadas sobre si mesmas, eloquentes e frias, pregavam seus
olhos na espera pelos movimentos do outro lado da compacta taboa. 
         Seria assim... sempre assim? 
        Conhecia a natureza das portas fechadas
e distinguia os seus protegidos por escalas de inatingibilidade. Quanto mais
opíparos os adereços que as compunham, maior magnitude conferia aos seus proprietários.
Maior a distância entre os pontos que lhes indicavam um lugar no mundo, muito
maior.
        Solenemente, fez cantar o círculo
desmanchado em gotas de ferro batido pela derradeira vez antes de retirar-se do
beiral.
        Portas são olhos semicerrados no limite
do mundo aberto: cílios espessamente invisíveis roçam o universo interno,
pálpebras imóveis vergam para fora, comandando a dança do inviolável e arbitrável
jogo de poder guardado a sete chaves. Conhecia a natureza das portas. Conhecia-lhes
a morfologia imperiosa.
        Quando se preparava para recolher
as mãos nos bolsos sem fundo das calças puídas, a porta abriu-se para emoldurar
o par de braços mais branco já visto por ele. 
         Valessem-lhe todos os santos!
Seria um anjo? 
         Os braços formaram um ângulo de
força para manter a porta aberta enquanto um sorriso desenhava-se.  Era um anjo, certamente! Há tempos imemoriais
não recebia a glória de um sorriso endereçado para a sua pessoa. Anjos sorriem
diante de qualquer situação, especialmente diante daquelas às quais pedem desculpas,
mesmo sem lhes ter qualquer responsabilidade. Talvez por essa razão sorrissem.
Ingênuos e santos, afortunadamente, sabem sorrir!
         No final daquela tarde
anunciada, uma criança abriu a porta para perguntar quem era e o que desejava.
Sem resposta frente ao presente inesperado, ele sorriu de volta e foi-se:
estômago vazio, cabeça latejante, a alma aquecida dentro das roupas andrajosas.
        Diante de seus olhos murchos, um
sorriso tomava o lugar das aldravas chorosas. Aldravas...aldravas...
aldravas... portas e aldravas são uma grande incógnita! 

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