A DOR EM OFERTA NO MERCADO SOCIAL


               MODELAGEM SOCIAL: um legado arquetípico da sobrevivência humana?

                                                    “Também a dor tem suas hipocrisias.”
                                                        Machado de Assis

                                                        À janela fechada do carro que obedece ao sinal do semáforo saltam os olhos fundos e secos. Mãos ainda mais secas batem no vidro com timidez e ousadia. Duas grandes vantagens adquiridas por quem aprende desde cedo a viver sob a proteção das ruas: investir na personificação.  A dor se transforma em ferramenta de comunicação para com o restante do mundo que circunvizinha sem tocar-se, a não ser nos extremos de suas próprias desvantagens. Máscaras saltam como se a aeronave das destemperanças colidisse consigo mesma em alta e vertiginosa velocidade. Do lado de dentro da janela do carro parado, dois olhos bem lubrificados podem optar por um código específico: decodificar os riscos que aparecem inscritos no contingente dos olhos secos, ou, mergulhar na mensagem oblíqua de que, por trás daquela dor massificada há outra, uma dor bem maior e mais profunda, responsável por arrastar os pares de olhos na mesma correnteza lodosa. Máscaras espocam como por obrigação de sua natureza enviesada. Os olhos dentro e fora do carro trocam mensagens que somam milionésimos de segundos. A dor é ambígua e repele a compensação do lenitivo imediato. Diante do medo de sucumbir ao abismo social que as dores cavaram, os olhos protegidos pelo vidro fechado decidem pela única leitura ao seu dispor: perigo! Em alta velocidade, avançam o sinal de trânsito, deixando para trás o que irá repetir-se logo mais, à frente, no próximo cruzamento.
                                                      Na avenida, enquanto o sinal abre para os veículos apressados, os olhos secos fundem-se em milhões de conjecturas e sentimentos. Controversos, os sentimentos vão da absoluta frustração ao desejo quase doentio por revanche, talvez vingança, algo próximo à natureza da violência. Duas dores que nascem em limbos diferentes crescem lá e cá. O carro que avança para o próximo sinal carrega a sombra da culpa pelas dores sentidas, pelo medo invasivo, pela inconsistente sensação de que algo passa ao largo e se avoluma sem sentido, em camadas de densa escuridão. A natureza das duas dores é real, mas os personagens, mergulhados em seus próprios dramas, não ponderam isentar-se dos estereótipos conquistados a árduas e repetidas cenas.  No palco da humanidade assombrada pela voracidade de sua evolução, a dor se transforma em produto posto no mercado das diferenças sociais. Há de se pensar que fazem parte da vida, o quê exime quem as vê de fora, ou, que são produto de reserva de um controle que ultrapassa a simples compreensão.
                                                     Há dores e dores. E existem formas produtivas de nos valermos dela, desde a esfera mais básica e visceral, até os contextos que parodiam tragédias inenarráveis. As dores da humanidade entraram no ritmo da impessoalização e dos efeitos colaterais: deficiências de uma sociedade bombardeada pelo desejo premente do que se apresenta em estado de devir. O que está à frente justifica as decisões momentâneas, mesmo que para isso, a dor do outro seja considerada uma contingência. Ou, então, que a dor se preste para acionar outras dores, como a da culpa, do ressentimento, das misérias que atingem o homem parado no sinal de trânsito: implacável dor dos que são imobilizados pela inércia social, pela corrupção dos valores, pela desvalorização da vida. Sagazes personagens driblam a natureza da dor que se apresenta em modelagens rapidamente aprendidas. Os modelos nos ensinam a sobreviver. Ou a repetir, depende do ponto de vista ou da ausência de visão. Dizer que só um lado sabe a verdade é matar a verdade, enquanto resultado de leituras e formas de sentir pessoais e intransferíveis.
                                  Olhos secos e profundamente sofridos sobrevivem em todos os semáforos da vida urbana. Olhos ilhados pelo impacto da dor alheia e do medo pessoal imobilizam-se quase em mesmo número. Talvez mais. Talvez...

                                  Estranho que ainda pesquisemos a natureza da consciência humana mapeando a morfologia de nosso cérebro. Bem, estranho se se considerar apenas um lado da vidraça fechada. Mas, esta é uma questão para quem não se anestesia diante da dor, capricho dado a poucos sobreviventes em estado de potência. A dor, também se acomoda nos espaços que não tratam dela com respeito. Ai de nós, vis espectadores! 

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