UM CONTO ARMADO

  ARMADOS PARA CASAR


                                  Maio corria solto.
                                  Há tempos as lojas especializadas em atender aos anseios de nubentes esperançosos não agendavam tantos pedidos em preto e branco.  Branco era o pedido certeiro. Eles, vez por outra, optavam pelo cinza, pelo azul escuro, mas o grande campeão era o par das cores que se opunham e se completavam nos cenários de rituais antigos e nada ultrapassados. Pelo menos era o que as agendas de prova , ajusta, corta e costura atestavam.
                                   Os santos casamenteiros cultuados pelas devotas exerciam com tal empenho a tarefa de enlaçar os interessados que o pano branco e liso faltava nas bancadas das costureiras oficiais.
                                   Até se falava em cores alternativas, mas nada que fugisse à singeleza da discrição exigida pelo ritual.
                                   As igrejas coroavam-se de êxito e fulgor diante de tanta procura. Eram flores em profusão, ensaios a não caber nos procedimentos, proclamas que não tinham fim, pagamentos adiantados, acertos com os sacerdotes, coroinhas, músicos, comissionados e afins.
                                   Isso sem falar na grande novidade do momento: os mestres de cerimônia. Aquelas figurinhas que apareciam de preto total comandando as festas e os casórios como se deles dependessem a vida a partir dali. Eram bárbaros! A um simples levantar de mão iniciavam ou suspendiam sons, enfileiravam padrinhos, ordenavam aos sacerdotes, corriam as igrejas e as festas como que empurrados por um poder sobrenatural. Até as noivas, normalmente em estado de irracionalidade diante do quase inevitável, atendiam aos sinais de “pare”, “ande”, “sorria”, “chore”, “não chore”...
                                  Poderosa essa nova classe de operários de santo casamenteiro. Indiscutivelmente poderosa.
                                  Túlia não gostava da ideia de repetir o repetido.
                                   _ Quero um casamento diferente.
                                   _ Mas, casamento é casamento, meu amor. Interessa o que vamos fazer depois da cerimônia...
                                   _ Isso a gente já faz. Há muito tempo, meu amor.
                                   _ Me refiro ao casamento em si...
                                   _ Também falo disso.
                                   _ ...
                                   _ Quero ser lembrada como uma noiva diferente!
                                   _ Você já é diferente!
                                   _ Quero mais. Todos, absolutamente todos já estão acostumados com a minha diferença. Até eu mesma!
                                   _ Está bem! Você é a noiva...

                                   _ ...
                                   _ Mas não invente muito. Lembre que sou tímido.
                                   _ ...
                                   _ E discreto!
                                   _ ...
                                   _ E...
                                   _ Apagado! Você é apagado!
                                   _ Não entendi!

                                   Como em todas as outras ocasiões, Leopídio deixou para lá. Não seria agora que iria inaugurar uma fase de discussões. Além disso, sua noiva sempre conseguia o que desejava. Já estava acostumado ao seu poder de convencimento, persuasão e teimosia.
                                    Não valia o gasto de energia.
                                    Estava feliz!
                                    Estavam felizes!
                                    Entre tantos amigos seus que já haviam casado e descasado, eles acreditavam na relação. Sentiam amor um pelo outro. Transavam várias vezes durante a semana, ela tinha orgasmos
que fariam qualquer um sentir inveja e ele conseguia chegar onde sempre queria. Ela dava sem reclamar, então, porque ele reclamaria de coisas insignificantes, improdutivas, in...
                                  _ INSANA!
                                  _ Não grite, minha mãe. Eu já decidi e pronto.
                                  _ Não seja louca, Túlia! Você vai nos cobrir de vergonha!
                                  _ Que vergonha, o que! Vergonha seria se eu entrasse de vestido branco... cheio de rendas, pérolas, flores e.... Isso sim seria loucura. Loucura comum, ainda mais!
                                  _ Você enlouqueceu, sim!
                                  _ Você já disse que eu nasci louca. Decide, minha mãe. Decide!
                                  _ Não vou admitir uma afronta dessas!
                                  _ É criatividade, mãe! Criatividade!
                                  _ Nenhum padre vai permitir uma barbaridade dessas!
                                  _ Eles não precisam saber de nada!
                                  _ Como?

                                   _ Ah! Mãe... eu só vou usar na hora.

                                    Leopídio, homem inteligente e preparado, tranquilamente voltou ao que fazia. Não era justo nem correto intervir em uma conversa entre mãe e filha. Família é família e precisa ser respeitada , para funcionar bem. As duas se conheciam antes dele aparecer. Assim, por que razão deveria colocar sua colher em um mexido cujos ingredientes ele sabia estavam no ponto de dar certo? E daria certo. Bem sabia. A mãe ou o padre, qualquer que fosse o desejo de Túlia, sucumbiriam diante da hercúlea vontade de sua noiva. E ele, ele seguiria a pé para o que quer que fosse que ela empreitava. Daria apoio. Seria seu cúmplice. Ficaria perto. Estaria junto. Marido é marido em qualquer ocasião. Conhecia a cartilha de trás para frente. E pelas beiradas que todas as cartilhas mantêm para casos e ocasiões especiais.

                                    _ NÃO! CERTAMENTE NÃO!
                                    _ Mas, Leopidinho, você disse que iria me apoiar.
                                    _ Sim! Não! Você entendeu!
                                    _ Amorinho... é uma questão de ponto de vista!
                                    _ Ponto de vista? Eu não quero e não vou mostrar a minha bunda para quem quiser ver e todo o mundo vai!
                                    _ Vai o que, meu pomponzinho?!
                                    _ Vai querer ver, porra!
                                    _ Leozipizinho, não é caso para palavrão! É só uma releitura de nossos votos de...
                                    _ Votos? Que votos? Ninguém vai querer saber de nossos votos. Vão querer olhar para a minha... e para a sua... NÃO E NÃO!!!

                                    _ Mozipinho! Vamos pensar com calma, muita calma. Veja só, além de tudo ficar muito mais simples, vamos economizar um bom dinheiro.

                                   Mozipinho Leopídio não discutiu mais por aquele dia. Sentia um medo pavoroso de usar mal alguma palavra e depois não conseguir voltar atrás. Melhor fazer silêncio por um pouco, tomar fôlego, pensar em algo, rezar para todos os santos, conversar com o seu anjo de guarda, se esconder dos amigos e preparar um argumento claro e curto com o qual enfrentaria a insanidade temporária da noiva.
                                    O que teria acontecido com ela?
                                    Normalmente ela tinha mais compostura, a não ser naqueles momentos em que as paredes serviam de apoio para as grandes invenções que experimentavam. Grandes experimentos! Grande Túlia!
                                    Ai! Não poderia perder aquela mulher. Por nada que se anunciasse no mundo dos vivos e no mundo dos mortos. Não poderia ficar sem as fenomenais maluquices de sua gostosa noiva a quem amava e amava e amava. De nenhum jeito poderia imaginar uma situação sem a Túlia. De jeito nenhum!

                                   _ Túlia! Túlia! De onde você tirou essa ideia? De onde?

                                    A pergunta ainda morava no mais interior do interior de Leopídio. Sem coragem e força verbal para inquirir a noiva, o desconsolado noivo ia e vinha em seu discurso não verbal.
                                    Logo com ele tinha de acontecer algo assim. Ele, um homem tão tímido, tão discreto, tão...
                                    Não era apagado. Apenas deixava que Túlia ocupasse o espaço que a ele não fazia falta. Não fazia mesmo! Gostava tanto a noiva que nada o incomodava... até agora!
                                    Dissera sempre, sempre, sempre satisfazer a sua amada. Sempre! Em toda e qualquer situação. Mas isso não era uma situação. Era uma loucura sem tamanho!Despropositadamente sem tamanho, sem noção, sem... sem nada! Estaria a pobrezinha por demais preocupada com os gastos da festa? Seria esse o motivo para uma ideia tão radical?
                                      Leopídio não lembrava de ter reclamado da previsão de gastos, nem barganhara diante de qualquer solicitação da noiva. Ela programara uma festa para os parentes conhecidos e os jamais vistos, convidara o povo do bairro, os vizinhos ao bairro, os amigos, os amigos dos amigos e os inimigos também.
                                       Gostava da ideia de fazer uma grande festa. Túlia merecia o melhor de tudo o que pudesse alcançar. Ela merecia. Mas isso! Isso era algo com o qual nunca poderia sonhar.

                                       E se estivesse doente? Como era o nome daquela doença que aparecia na cabeça das mulheres? Como era mesmo? Aquela que levara a sua tia-avó a descer sem roupa a rua principal da cidadezinha onde morava, enquanto distribuía doces de coco queimado para quem encontrasse no caminho? E que fizera a tia de Túlia subir peladona na torre da igreja pedindo água... água para a sede que devorava suas partes? E que... será? Seria possível tamanha desventura? Uma doença que só dava nas mulheres e nem avisava que estava chegando?
                                      Nada sabia sobre esse tipo de mal. Mas a verdade verdadeira estava ali, bem a sua frente, ao seu redor, dentro e fora ou em qualquer lugar em que estivesse tirando o sossego de sua boa vida de homem noivo e feliz.
                                       Noivo! Leopídio era um noivo em estado de absoluto terror.
                                       Terrível a sua angústia diante da vontade insana de Túlia. Vontade de mulher louca! Louca varrida, cuspida e nem um pouquinho, nem um só pouquinho arrependida!
                                        Túlia não era louca. Então, ainda poderia se arrepender de provocar tanta confusão.
                                        A noiva dificilmente voltava atrás de qualquer coisa. Qualquer que fosse a situação, sabia que a noiva costumava “fincar o pé”. Lembrava claramente da vez em que ela desejara namorar, mais especificamente transar, dar para ele, no meio do campo de futebol depois de uma partida oficial. Levara semanas tentando explicar os riscos que correriam deitados na grama suja de suor, de terra molhada recém pisada por tantas chuteiras, sem falar daquelas luzes todas que demoravam a apagar. Poderiam ser vistos facilmente pelos vigias noturnos e pelos zeladores do campo.
                                      Quanto mais Lipídeo argumentara, mais Túlia mostrava sua vontade em experimentar.
                                       Não existira saída. No primeiro jogo entre os times rivais da cidade, em uma noite de lua clara e alta, sem nuvens para esconder a sua vergonha, Leopídio comeu Túlia no meio do campo amassado. E ela queria mais e mais e mais. Sem qualquer preocupação com as luzes que faziam seus corpos aumentar de tamanho e volume.
                                      E era de muito volume que ela gostava. Graças aos laços genéticos de seus genitores, Leopídio nascera bem fornido em comprimento e massa. Era um homem bem dotado, como ela gostava de dizer aos gritos de “continua... continua”. Não perderia essa mulher por nada que pudesse se explicar como loucura, doença ou mal de natureza inexplicável.
                                    Por falar em natureza, precisava encontrar uma forma de se enquadrar à natureza exuberante de sua noiva cheia de vontades. Como a vontade que aparecera assim, tão forte, tão diferente,
tão desprovida de razão, tão... tão absolutamente impossível de se realizar!
                                 _ Não é impossível, Leopi! É só uma forma de expressão com...
                                 _ Com economia excessiva do que toda mulher mais deseja nesse dia.
                                 _ Nesse dia! Nesse dia! Vocês insistem que esse dia é especial, então!?
                                 _ Vocês quem? Para quem mais você contou que...
                                 _ Ora! É claro que não contei para ninguém além de você e mamãe. Não disse que desejo fazer uma entrada muiiiiiiiiiiiiiiiito especial?
                                 _ Muito! Muito mesmo! Demais!
                                 _ Então? Você concorda, Molipinho?
                                 _ Impossível! Impossível!
                                 Sabia que de nada adiantaria gritar um não naquele momento. Precisava mais uma vez preparar o espírito de Túlia para a derradeira resposta. E sabia que o momento não se arrastaria por muito mais tempo.
                                 Sua noiva contava a todos que convidava e aos que sequer estavam na lista sobre o quanto a sua entrada seria fenomenal. Despertava a curiosidade e o desejo de ser vista entrando na igreja local, como se fosse a única noiva a passar por aquelas velhas portas de madeira.
                                 Se entrasse, poderia ser a única, a última e nunca mais casamento na igreja para toda a sua descendência.
                                 _ Tuliazinha, minha mulher para sempre, vamos conversar sobre o nosso casamento?
                                 _ Já conversamos sobre o nosso casamento, Tutuzinho. Meu Lipinho... mozinho da Túlia.
                               _ Sim, já. Mas precisamos conversar sobre...
                               Sem chance. Túlia estava especialmente interessada em fazer o que mais gostava. E não dava para misturar palavras de medo, de considerações, negativas justificadas naquele quadro de tantos prazeres.
                               Leopídio mais uma vez afogava-se nas ondas de desejo prático, real, forte, e nas investidas que Túlia muito bem sabia administrar no terreno das novas experiências. Quanto mais irracional, melhor. Quanto mais impraticável, melhor. Quanto mais impossível, melhor ainda. Eram palavras dela, movidas por um fogo inextinguível. E era esse mesmo fogo que fazia com que as palavras de Túlio virassem cinza, virassem pó, no berço de onde jamais sairiam. Berço que também embalava o esquecimento em deliciosos braços de “tudo bem! tudo bem!”, no ritmo do tempo que deixa para nunca mais o que perde a importância. Mas dessa vez, Túlio sentia que os braços do tempo não levavam as suas preocupações como sempre o fizeram. O torpor de todos os prazeres gerados na luxúria dos desejos de sua noiva cedia lugar à preocupação que corroia a alma de homem nubente. Não via saída, por mais que buscasse qualquer forma de negociação, nada encontrava. Até nos rituais da Casa de Mãe Jurema creditara esperança. Nem os santos bem alimentados pelas oferendas polpudas disseram para além do que ele já sabia. Nada de novo. Nada de nada. Nem do além vinha qualquer ajuda.
                      _ Lipidinho... tu tá tão quietinho! Qué um carinho, qué?
                      Carinho ele queria, claro! Mas, além disso, precisava encontrar uma saída para agradar a noiva, para dizer não e continuar vivo, para proteger a sua posição de homem e, tudo isso,sem terminar com ela, melhor... sem que ela terminasse com ele.
                      Precisava casar logo, antes que ela inventasse outra loucura maior. Não viveria sem a sua maluquinha, doidinha... mas a que ponto ia a loucura de sua noiva? E se ainda tivesse tempo para outras vontades? E se...?
                     Tantas conjecturas, dúvidas e angústias o levavam a imaginar o pior. A cena de um rompimento diante do inevitável não sopesava suas forças de noivo contrafeito.
                     Aproximava-se a data do casamento.
                     Acreditava que a qualquer um tornava-se visível a preocupação que carregava em silêncio fatídico.
                    Noivo a beira de um colapso nervoso.
                    E na verdade quem deveria estar vivendo esse momento de preocupação estava sorrindo a toa, embalada pela maluquice de não medir as razões do que fazia.
                     _ Eu faço o que eu quero, Lipinho.
                     _ E as consequências?
                     _ Que consequências?
                     _ Ô, Tulinha! Imagina que isso pode passar assim?
                     _ Não sei o que tu qué dize com esse “assim”...
                     _ Tudo! Quero dizê tudo, tudinho!
                     _ Só mi interessa nóis dois... só isso!

                     Outra vez aquela bola peluda estrangulava a palavra no meio da garganta. Não subia a palavra certa e nenhuma outra que pudesse passar pelo estorvo que terminava embolando ainda mais o estômago contraído.
                    Os amigos acreditavam que Leopídio estava por demais ansioso em concretizar o enlace matrimonial. Nunca antes tinham visto tamanha vontade em um homem:

                           _ Tu tá querendo se amarra mesmo, hem cara?!
                           Quem conhecia Leopídio sabia de seu amor descabido por Túlia. E quem não o conhecia já soubera, de uma forma ou outra, do sentimento sem pregas que o noivo devotada à sua amada.


                            Era amor para ninguém colocar em dúvida.
                            Ainda menos em se considerando o que ele sentia desde a expressão da vontade de Túlia.
                            Só mais alguns dias para a data de suas bodas.
                            Nada de Túlia voltar atrás. Nada de Túlia sequer discutir a vontade de romper com a tradicional entrada na igreja.
                             Tantos paramentos para uma hora tão sublime, tantas regras, tradições e crenças que faziam a cabeça de todas as noivas que ele conhecera, perdiam a vez na vontade que Túlia nutria.

                               _ Ou eu caso do jeito que eu quero, ou...
                               Leopídio parou de pensar.
                               A sutil ameaça de um não casamento com aquela sua... sua.... deusa era suficiente para o coração cansado de sofrer por antecipação responder de pronto!
                               Que fosse!
                               Que fosse!
                               E no dia marcado, com todo o público que a igreja pode reunir do lado de dentro e toda a plateia que se postou pelas ruas do bairro, Túlia e Leopídio adentraram a nave nupcial.
                                Ao som de um único violino empertigado aos pés do altar, os noivos decidiram entrar juntos, um ao lado do outro.


                                Juntos. Muito juntos e nus.
                                 Leopídio carregava à frente de suas vergonhas uma pequena e pálida gravata borboleta que pendia de acordo com o seu andar enrijecido pelo rubor e pelo diâmetro dos olhares esbugalhados.
                                 Túlia caminhava soberba, empunhando um leve buquê de margaridas brancas que pouco escondia o contorno de seu púbis. Com os longos cabelos soltos a feitura de um véu, olhava impávida para frente, para o alto e para o futuro de sua história.
                                 Ela sim era uma noiva plena de seus compromissos.
                                 Que se fechassem as bocas e bem abrissem todos os olhos: ela inaugurar uma nova forma de desposar o homem amado.
                                  E que assim fosse.
                                  E assim se fez!
                                  Túlia e Leopídio encarnam uma história feliz.





















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