CONTO:

PALAVRAS TROCADAS DOEM...



                          _ Meu amor, eu não disse isso!
                          _ Disse, sim! Está pensando que não ouvi?
                         _ Não, sim! Quero dizer que você não ouviu direito.
                         _ Eu ouvi! Pensa que sou surda?
                         _ Não! Quero dizer que você não entendeu!
                         _ Áh! E ainda me chama de burra?!
                         _ De novo você não me entendeu!
                         _ Eu não entendi?
                         _ Não! Não entendeu! Eu estou dizendo outra coisa!
                         _ Agora é outra coisa... mudando de assunto novamente!
                         _ Calma! Você está nervosa.
                         _ Nervosa? Acha que não sei o que estou dizendo?
                         _ Está fazendo uma tempestade em um copo com um pingo de água dentro.
                         _ O que?
                         _ Calma amor!
                         _ De novo eu não tenho razão?
                         _ Não é nada disso?
                         _ Nada disso o quê?
                         _ Para de dizer para eu ficar calma! Não estou nervosa!
                         _ Não?
                         _ Está tirando uma com a minha cara?
                         _ Não é nada disso...
                         _ É o que então?
                         _ Vamos conversar...
                         _ E não estamos conversando?
                         _ Você está gritando.
                         _ Eu? É sempre assim! Você precisa encontrar um jeito de colocar a culpa em mim.
                         _ ...
                         _ Não é isso?
                         _ ...
                         _ Diga!
                         _ ...
                         _ Agora não quer mais conversar?
                         _ Não, eu quero. Mas...
                         _ Mas o que?
                         _ Já nem sei mais porque a gente começou a discutir.
                         _ Discutir? Mas você não disse que estávamos conversando?
                         _ É! Conversando! Estamos!
                         _ Conheço essa sua cara de ironia.
                         _ Não estou sendo irônico.
                         _ Não! É a sua mãe que está!
                         _ Não põe a minha mãe no meio dessa história que ela nada tem a ver com isso.
                         _ Ah! Não? Está defendendo ela agora?
                         _ Não fale dela.
                         _ Falo quando eu quiser!
                         _ Então vai falar sozinha!
                         _ Artur! Volta aqui!
                         _ ...
                         _ Artur! Não sai agora porque eu nunca mais vou falar com você!
                         _ Bom! Isso é muito bom!
                         _ Olha bem o que você está fazendo!
                         _ Eu? Você começou essa discussão sem pé nem cabeça!
                         _ Você me provocou e ainda corre no meio da conversa!
                         _ A conversa acabou faz tempo. Tchau!
                         _ Artur! Volta aqui!
                         _...
                         _ Artur!

                         Artur ficou algumas horas fora de casa acreditando que Marialva conseguiria acalmar-se.
                         Demorou na padaria tomando café, encontrou um colega de cervejadas, jogou truco, voltou à padaria para outro café...
em briga. E
                        Era duro ser casado com uma mulher tão disposta a brigas quanto a Marialva.
                        Queria paz! Era de muita paz! Homem devoto de São Benedito, calmo. Não entendia aquela vontade que a mulher tinha de discutir todos os assuntos. Tudo era motivo para grandes brigas. Tudo! E ele que desse conta de acalmá-la. Nem sempre conseguia. Parecia que ela sentia o maior prazer em vê-lo perdido diante de tantas palavras. Estava aprendendo a deixá-la sozinha quando não conseguia mais argumentar. Mulher era tudo igual. Só mudava a cor do cabelo várias vezes durante a vida. Eita! Que raça! E ele querendo assistir um jornalzinho, bebericar a cerveja que estava esperando na geladeira, espichar a noite para um filmezinho. Eita! Quando fora a última vez que se jogara no sofá da sala sem precisar se preocupar com a Marialva? Mulher do cacete! Precisava ser tão difícil de conversa? Parecia a mãe dela, aquela dona da verdade sobre todos e tudo! Eita! Estava perdido!

                               Marialva não esfriara durante a novela. No meio do capítulo 78 espelhou-se na discussão entre os personagens centrais. Estava ali outra sofredora! Homem era sempre igual. Tudo igual. Só mudava a marca da cerveja, quando mudava. Quando mudava! Pobre Antônia vinha sofrendo desde o primeiro capítulo da novela. E ainda alguns diziam que novela era bobagem. Bobagem como? Estava ali o que ela, Marialva, passava há anos, desde o dia em decidira casar com o Artur. Homem que parecia calmo enganava a todo o mundo. Só parecia, aquele filhinho da mãe, cheio de dengo para os de fora. Dentro de casa era um demônio! E ainda saía como se fosse o bom. Ela que era surda, que não entendia das coisas e que falava mal da mãe dele. Falava mesmo! Que sogra como a que ela tinha ninguém merecia. Ninguém. Nem quem tivesse pecado a pagar. E essa agora do Artur sair de casa deixando-a sozinha, com as palavras na garganta, louca de raiva com as coisas que não dissera e estavam martelando dentro de sua cabeça. Era muito sofrimento para uma mulher como ela, dedicada, caseira, fiel. Bem que a Ana Maria falava que ficar em casa esperando marido dava nisso! Eles nunca valorizavam as mulheres corretas. Eram as outras, aquelas que ficavam na rua, se oferecendo que... Será que o Artur estava com outra mulher? Será que ele seria capaz de se arriscar com um rabo de saia qualquer? Igualzinho na novela. Era isso mesmo! E ela que pensava que ele ficara chateado por causa da mãe. Tudo encenação. Ele encontrara um jeito de sair de casa e ainda fazer de conta que era ela a culpada. Malandro. Desavergonhado. Filho da... Ah! Mas ele teria de voltar. Teria sim. Artur não deixava os seus bagulhos para trás. E ele tinha muito bagulho. Bagulho que ela passava o dia limpando, arrumando. Enquanto ele se enrabichava com uma qualquer. Ah! Quanto sofrimento na vida de mulher correta. Deveria ter seguido outro caminho. Mas ele não esperava para ver. Ela iria tirar isso a limpo e era já.
                                  Artur estava no quinto café com pingado quando avistou Marialva no outro lado da esquina.
                                  Mas... enlouquecera a mulher? Sair para a rua numa hora daquelas? Era perigoso. O que estaria fazendo fora de casa? Não estava entendendo, mas o passo firme e rápido o fez pensar que a mulher aproveitava bem demais a sua saída de casa. Eita! Claro! Só poderia ser isso mesmo! Enquanto ele dava um jeito de esfriara a cabeça, ela esfriava outra coisa! Filha da m... ele sabia o quanto as mulheres eram fáceis, sempre encontravam um jeito de colocar as unhas de fora. E ele, idiota, facilitara as coisas. Mas isso não ficaria assim. Não mesmo! Marialva caminhava olhando para os lados, possivelmente para não ser vista por algum conhecido, a malandra, se fazendo de puritana para quem quisesse acreditar. Descarada! E ainda estava usando aquele vestido que ele dera de presente de aniversário. Filha da m... filha da... A mãe dela conhecia muito bem a filha que tinha! Tudo igual. Tudo igual. Mas ele iria descobrir com quem Marialva estava se encontrando e acabaria com a festa dos dois. Ah! Se não acabaria. Ele era um homem que parecia calmo sim, mas só parecia! Pisassem no seu calo para ver do que ele era capaz! Pusessem a mão no que era seu! Pusessem a mão na mulher que era dele! Acabaria com essa pouca vergonha na lata dos dois.

                               Marialva caminhava com a raiva levando os seus pés para frente. Pés e olhos em todas as direções e nada do Artur. Só faltava o fiho da mãe estar enfurnado em algum lugar para se esconder dos conhecidos. Isso se os amigos não estavam ajudando. Era bem coisa de homem. Um ajuda o outro quando o assunto é rabo de saia. Mulher vagabunda existia em tudo que era lugar e não faltava homem fraco e sacana. O dela não era diferente. Era homem e então... Não tinha dúvida. Aquela cara de sonso era só para enganar. Nem era bom de cama. Era apagado por demais. Mas isso também era assim mesmo. Em casa faltava, mas na rua, ah! Na rua a sacanagem ajudava a natureza dos desavergonhados. Ele que esperasse. Vingança de mulher traída é coisa para ser feita na hora. Sem dó nem piedade!

                                 E nada da mulher entrar em algum lugar. Só espiava e continuava adiante. Marialva até parecia esperta. Estava querendo despistar. E estava quase conseguindo, não fosse a sua vontade de pegar os dois em plena cena de adultério. Ou... então, marcara um encontro sem lugar determinado. O que não era muito incomum para uma mulher. Sua mãe sempre dizia que o diabo fazia a tampa, mas não fazia a panela. Mulher sacana tinha pacto com o mal, mas não contavam com o apoio da inteligência. Isso era coisa para homem, era da natureza mesmo. Homem sabia fazer e fazia bem. Mulher sempre deixava ponta para ser descoberta.
Mas ele a pegaria antes mesmo que completasse a sem-vergonhice. Eita! Se pegaria. Bastava continuar seguindo a dita que daria cabo de dois problemas ao mesmo tempo.  Nem queria pensar no que iria fazer quando olhasse para os dois juntos. Sentia que a raiva subia feito fogo pelas suas pernas. As mãos estavam vazias, mas um homem de verdade não precisava de nada. Só deveria manter a cabeça no lugar até pegar os dois. Depois, depois seria pela mão de sua santinha. Que santinha não deixa devoto algum passar por aperto. Logo ele, marido fiel. Correto, cheio de boa vontade. Dedicado. Trabalhava feito burro de carga para dar o que havia de melhor para a desavergonhada da mulher. Mas ela pagaria em dobro pela dor que ele sentia. Era uma dor que começava em algum lugar abaixo do umbigo e subia pelo estômago, chegando a apertar a garganta e o que ele chamava de cérebro. A cabeça que guardava as idéias latejava, a outra, que guardara para ela, a safada da Marialva, estava gelada, pobrezinha. Como que se adivinhasse a traição da dita cuja desalmada. Dor de homem traído é dor sem cura. Entra pelo sangue e chega a todos os lugares do corpo e da alma. Não tinha jeito. Já sentia essa dor formigando e corroendo sua vida de homem dedicado. Homem que sofria a dor da traição.

                 Marialva procurava escolher os lugares para entrar. Era uma questão de tempo, de paciência, apesar da raiva que aumentava a ponto de quase deixá-la cega. Era muita raiva. Raiva de mulher traída explicava qualquer atitude de vingança. Ela bem sabia. Lembrava do caso da Dona Odete, filha do seu Osvaldo, no dia em que pegara o marido no flagra. Cortara as coisas do homem. Cortara e assumira que ainda era pouco para tanta canalhice. E além dela, conhecia muitas outras, porque homem é tudo igual. Algumas mulheres ficam esperando que o homem escolhido nunca apronte, nunca saia dos trilhos, nunca as engane, nunca coma fora de casa e... só esperam. Esperam até o dia em que eles fazem o que a natureza determina. Mas com ela seria ainda pior, porque agüentava o safado do Artur há muito tempo. Apagado, meio mole para as coisas das responsabilidades de homem, agora encontrava fora de casa o quem a ela ele tinha negado. Homem desaforado, sacana, bofe mimado. Tudo culpa dos mimos da mãe dele. Filhinho para cá, filhinho para lá e ela ali, esperando que ele crescesse, virasse homem. Desnaturado. Iria pegá-lo na hora certa. Fazendo o que não devia.
                           Artur seguia Marialva mais de perto, na certeza de que a hora chegava. Ela jamais esperaria vê-lo assim, ao vivo, testemunha da malandragem, do desavergonhamento.
                            Marialva caminhava espichando os olhos para todas as portas abertas ou fechadas. Ele estava por ali, podia sentir. Sentia o cheiro da traição. Sentia o cheiro do homem que se escondia para fazer sacanagem.
                            Artur até conseguia antever o encontro da mulher safada com o seu outro, dois elementos do mal, da safadeza. Ela iria levantar aqueles olhos redondos, redondos e escuros, fazendo um convite de quem queria a coisa toda. Ele sabia. Conhecia as vontades de Marialva, mas não imaginava que ela teria coragem para procurar fora de casa o que ele sempre dava para ela. Ela tinha tudo. Faltava o quê?


                              Marialva não conseguia pensar no que poderia estar faltando em casa para o Artur precisar encontrar mulher na rua. Ela fazia todas as vontades dele, até mesmo quando não tinha vontade para qualquer coisa. Ela se sacrificava, se doava, se abria para o marido que agora a pagava com a infidelidade.  Marido infiel. Homem dos demônios. Qualquer rabo de saia devia servir. Ou, será que Artur se enrabichara de outro jeito? Será que chamava alguém pelo nome assim como fazia com ela naquelas horas de quero mais? Será? Iria dar cabo ao marido infiel. Mostraria para ele de que tipo de carne ela era feita. Ele que esperasse. Que esperasse.

                             Será que Marialva estaria apaixonada por um qualquer? Será? Não seria apenas uma traição de mulher sem vergonha querendo provar de outro homem? Seria possível uma traição tão grande como a que ele imaginava agora? Seria a primeira vez? E se isso tudo já acontecesse há muito tempo e ele carregava os chifres na cabeça sem saber o tamanho da sua cornice?
                              Corna! Ela era uma mulher chifruda! Motivo de riso para as lambisgoias do bairro. Ai, minha nossa! Seria possível que Artur estivesse de amante certa? Uma teúda que dividia com ela o marido, o serviço e as pagas que ele ganhava?
                               Nessa hora, a raiva dos dois cegou-os por completo. Tal foi a química que envolveu a situação que sequer se deram conta de atravessar a esquina perdendo a mão de onde vinham ou iam.
                               Foi rosto a rosto. Corpo a corpo.

                               Marialva não sabe de onde surgiu o objeto em suas mãos.
                               Artur não viu de onde pegou o instrumento de execução.
                                Mas os dois, ao mesmo tempo, soltaram a ira pela traição imaginada com a força dos passos que os fizeram chegar até ali.
                               Até hoje ninguém explica o ocorrido.
                               No velório do casal se fala muito em vingança por ciúme da boa vida que levavam. Dizem as mulheres mais vividas que a inveja acabou com os dois, literalmente.
                                Mas para aqueles que prestam atenção ao discurso, algo se explicaria de outras formas mais racionais: as palavras doem... mas a ira mata.



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