AFETO? POR ONDE ANDA?
NA
PRIVATIZAÇÃO DOS SENTIMENTOS, O AFETO PASSA LONGE?
"Penso em ficar só, mas minha natureza pede
diálogo e afeto."
Lya Luft
As práticas da economia
em tempos de globalização impõem ações que viabilizem rendimentos imediatos,
características latentes do competitivo mundo contemporâneo. Do coletivo ao
particular, chávenas de ideias travestidas em conceitos mediam as relações,
capitalizando-as em investimentos com maior ou menor rentabilidade. Onde entram
os sentimentos? Não entram! Quanto mais impessoais e alheados os jogos de poder
e render, mais otimizadas as razões para empreendê-los.
A isonomia estéril não fecunda a justiça
no intercâmbio das trocas sociais. Aprende-se desde cedo a reconhecer no campo
dos sentimentos uma herança onerosa, cuja aplicabilidade deve-se ao domínio dos
bens inúteis e de nula lucratividade. Aos sensíveis, a carteira dos fracassos,
as probabilidades de baixo êxito e as cartilhas de aprendizado rápido: “sorria
e deixe o quê realmente sente e pensa para quando fechar a porta de seu próprio
quarto.” Quanto menor o sentimento envolvido, maior a capacidade de negociação
isenta de culpabilidade. Sim! A culpa credita-se aos de baixo tônus
empreendedor. Os impassíveis podem vir a vender a própria mãe, a fustigar os já
miseráveis, a derrubar uma floresta, a edificar sobre as flores silvestres, a
poluir os rios, a apedrejar os vira-latas e provar o exagero nestas frases de
retórica duvidosa. Podem. Com clareza inatacável: podem! Pois na convergência
da indecente escalada da privatização dos sentimentos humanos, ganha mais quem
sabe esconder melhor o que lhe vai n’alma. Alguma validade no trocadilho
barato? De óculos escuros, os olhos da já vendada Deusa Têmis sufocam no quinhão dos conselhos que não deitará aos
pés de nenhum Zeus. No Olimpo de
nossos dias, o círculo dos sentidos contidos na balança dos sentimentos
vencidos (... a emenda sonora dos particípios escolhidos neste sintagma
esdrúxulo é propositadamente paralela à ironia implicada), fenece tristemente.
Mostrar afeto transformou-se em uma deficiência de postura e envergadura ( o
desejo inóspito de rimar esta última palavra...foi impedido pelo lugar do texto. Pena!) e pode afetar-nos
bem mais do que entenderam Spinoza, Deleuze e Guattari. Se o afeto nos afeta na alma e no corpo, para os pensadores é um sentimento criado
entre seres vivos e dos vivos para com os inanimados que constrói mudanças,
motivações, emoções, expectativas. O quê nos move? O afeto camuflado em
impessoalidade e distanciamento continua latente? Sentimos afeto e o escondemos
diante de situações que nos expõem? Elitizamos o sentimento? Economizamos nas
doses sociais?
Hoje eu
vi um cachorro de rua ser apedrejado por algumas crianças acompanhadas por um
adulto masculino. Esforço-me para encontrar uma forma mais impessoal de
descrever a cena. Um homem e algumas crianças? Alguns seres humanos? Não
consigo. Sou incapaz de esconder a emoção que me chega à garganta e espeta os
olhos. Sou absolutamente incapaz de deixar meus sentimentos para a hora em que
chegar ao meu quarto. Dois problemas: voltei para casa a pé, uma vez que o
carro no qual estava não era o meu. E voltei sozinha! Não! O cachorro me seguiu
após a intervenção. Voltei extremamente bem acompanhada depois de ouvir que
além de eu ser emotiva, era sensível demais e “aquele” era apenas um cachorro.
Coisas mais sérias estão acontecendo no mundo, segundo o meu interlocutor.
Coisas muito sérias estão acontecendo no mundo!
Caminhei
agradecendo ao cachorro desnutrido e machucado a possibilidade de conhecimento
oferecida de modo tão singular. Quero acreditar que ele me entendeu! Coisas muito sérias estão acontecendo no
mundo!
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