A ENCHENTE DAS GOIABAS PARTE I


 A ENCHENTE DAS GOIABAS
PARTE I 


                   Foi aí que eu conheci o medo.
                   Um medo que tinha nome, com gosto de coisa que não se explica, com várias mãos invisíveis apertando o estômago da gente.
                   Eu gostava muito de brincar na chuva.
                   Era como se tudo fosse permitido embaixo daquelas gotas que caíam na cor que se pudesse imaginar.
                  Todos nós gostávamos: andar descalço na terra mole a grudar nos pés, pular poças, sentir o corpo molhado e aquele friozinho que não incomodava os que corriam sem parar.
              Brincar na chuva era sinônimo de estar feliz e saudável.
              Fora assim, até entendermos que estava chovendo demais.
              Demais para as ruas sem escoamento, demais para o rio que ameaçava transbordar, demais para as casas construídas em barrancos pelados.
              Antes, os morros eram cobertos por árvores, agora, casas de todos os tamanhos penduravam-se modificando a paisagem; parecia que alguma coisa estava errada na conta que se fizera ao colocar “outra coisa” no lugar do que se tirara.

              Eu imaginava as árvores e suas raízes profundas como cabelos em uma cabeça.
             As raízes seguravam a terra em seu lugar, ajudavam a água da chuva a penetrar e a escoar.
          Os cabelos verdes dos morros deixavam a terra molhada na medida certa, ou pelo menos, em uma medida que não provocasse tanto perigo como agora.

             Onde deveríamos construir nossas casas?
             O morro poderia não ser o melhor lugar?
             Mas... a cidade se construíra em um lugar cheio de subidas e descidas! E muitas famílias, há muito e muito e muito tempo moravam ali.
             Pensava em tudo isso quando pela primeira vez minha mãe me tirou da brincadeira na rua.
            Eu e as outras crianças fomos chamadas para dentro.
            A agitação dos adultos era demais até para quem estava acostumado. 
                 Fiquei na janela tentando contar as gotas de chuva, mas parecia que elas desciam grudadas em um cordão. Um cordão sem fio, grosso, rechonchudo.
                Parecia uma cortina de água, mais espessa do que aquelas que cobriam as janelas das casas da rua.
                Uma cortina que se emendava a outra cortina escura que subia lentamente.

                 Era o rio que estava fora de seus limites.
                 Era a água barrenta dos bueiros que já não davam conta de engolir o "chuvaréu".
                 Eu queria olhar para entender.
                Queria saber de onde vinha aquele friozinho estranho que cutucava minha barriga. Do lugar de onde ele vinha carregava junto uma sensação de que eu era muito pequeno e de que os adultos ao meu redor eram tão pequenos quanto eu.
               Um embrulho de estômago vazio subia até a garganta e voltava fazendo uma bola maior, maior e maior a cada vez que se movia.
                Mamãe nos fizera vestir todos os casacos. Todos!
               Minha irmãzinha parecia um saco de roupas amassadas. Eu queria rir da carinha dela, mas vi que ela também estava com aquele tremorzinho estranho.
               A mãe de minha mãe sentara no sofá da sala, no único lugar que sobrara sem alguma coisa em cima.
               Todos os móveis estavam sendo levantados.
                Dava para saber que os vizinhos faziam a mesma coisa.
                Parecia engraçado, mas ninguém estava rindo.
                 Meu pai suava muito, tentando carregar tudo ao mesmo tempo.
                Carregar para onde? Era a pergunta que mamãe fazia.
                Eu pegava restos de frases que não entendia bem, mas que pareciam agulhas frias a espetar minha garganta gelada pelo frio do estômago e pela bola que aumentava sem parar.
                Tinha cinco anos, minha irmãzinha tinha dois.
                Até ali, chuva sempre fora motivo de festa.
                Era o momento de ganharmos pipocas estraladas, bolinhos  de alguma sobra, ou até bolinhos fritos na hora  e enrolados em açúcar mascavo (especialidade de minha avó!).
                Doce de goiaba também fazia a festa durante os dias chuvosos, especialmente nesta época, quando a fruta amarelinha aparecia suculenta, pronta para ser apanhada.
               Mas ninguém estourara pipocas, nem oferecera goiabada, e pelo que tudo indicava, bolinhos também não iriam fazer.
                A vovó apertava minha irmãzinha e tentava me convencer a descer da cadeira.
               Eu ainda estava sem entender exatamente o que acontecia.
               A água continuava a descer em grossos cordões.
              Era uma cortina tecida por fios que não se rompiam.
              Da janela onde eu me pendurava para olhar, pouco via. Talvez fosse o meu jeito de fugir do que estava me incomodando. Talvez fosse pela quantidade de água que descia das nuvens.
              Eu estava com medo.
              Mas não era medo da noite, nem de fantasma de lençol branco, nem de bandido armado, nem de... era medo, só!
              Só medo.
              Será que iríamos mudar?
              E os meus amigos, iriam mudar também?
             
              Já estava sentindo frio por todo o corpo, quando ouvi o grito de minha mãe:
              _ Meu Deus! Não vai dar tempo, vamos sair, vamos sair!
             Nem vi direito quando meu pai me pegou no colo. Só lembro-me dos olhos esbugalhados de minha irmã apertada no outro braço dele.
                 Ficamos nos olhando sem dizer nada, enquanto minha mãe arrastava a vovó pelo braço.

               Ela queria pegar alguma coisa, mas a minha mãe não deixava.
               Algo que meu pai gritou fez as duas correrem para o nosso lado.
               Estávamos atrás da casa, em um pequeno quintal que também dava para a casa da vizinha.
               Do lado de fora, os vizinhos tentavam trancar as portas e as janelas como se alguma coisa pudesse ser mais forte do que todas aquelas trancas e madeiras pregadas.
              O frio aumentara e a bola que ia do estômago para a minha garganta agora subia maior e mais rápida. Já estava passando da garganta, eu sentia que meus olhos aumentavam o tamanho.
              Não havia mais guarda-chuvas para tanta gente.
             Do colo de meu pai eu via os olhos de meus amiguinhos. Eu via os nossos cachorrinhos correndo de um lado para o outro, latindo sem parar.
           Os vizinhos gritavam uns com os outros.
           Ninguém sabia para onde ir.
           Fomos passando de quintal em quintal e mais gente se juntava ao grupo.
           Todos molhados sob os cordões grossos da chuva que aumentava de peso.
            Parecia que um barulho maior se aproximava, rolando, aumentando de volume só para nos deixarem ainda mais assustados.
           Minha irmãzinha estava chorando.
           Minha mãe continuava agarrada em sua mãe e eu, eu estava quebrando o pescoço de meu pai que tentava nos fazer chegar ao telhado da última casa.
           Diziam que era a mais alta da rua. Diziam que teríamos que subir por que não daria tempo de buscar outro lugar.
           Se fosse uma brincadeira, bem que teria gostado.
          A casa de seu Moisés não era muito alta, mas era a mais alta da rua. Tinha um porão e mais um pavimento com laje batida. Toda a família dele já estava lá em cima. Eram umas cinco pessoas, eu acho.
           Seu Moisés dava ordens aos gritos:

          _ Vamos! Depressa! Vamos, gente, vamos! Não tem outro jeito. Vamos! Dê a mão aqui, me dê a mão e suba.

           Subíamos por uma espécie de escada feita com pedaços de madeira velha.
           Ouvi seu Moisés dizer que a parte da frente e o porão já estavam “imundados”, “imundados”... O que era isso mesmo?
            Falavam a mesma coisa ao mesmo tempo.
            Meu pai foi alcançando cada um de nós para quem já estava lá em cima.
            Minha mãe foi a última a subir, depois foi a vez dele. 
           Quando papai sentou na laje, minha irmãzinha desapareceu embaixo do casaco dele...  sumiu entre as roupas largas.
            Eu também queria.
            Queria sumir dali, queria ter asas para voar para longe, queria ser um super-herói, queria ser o Bat... queria levar todo mundo para um outro lugar.
            Só então ouvi meu próprio choro. Parecia que vinha de alguém que eu não conhecia.
             Eu chorava sem ter mandado meus olhos chorarem. Não era birra, nem teimosia, nem... eu chorava sem parar. Nem dava para saber quando era lágrima e quando era o cordão da chuva. Eu também chovia o medo que entrara em minha alma de criança.
               Tudo parecia uma coisa só: chuva e lágrima! E. eu chorava pelos olhos, pelo nariz, e... estava molhado!

            Não deixavam a gente olhar para baixo, e eu nem queria fazer isso mesmo.
           Vi minha mãe olhar e chorar mais do que eu.
           Queria ficar quieto, como minha irmã, embaixo da roupa de meu pai.
           Mas acho que ele estava com medo também. Vi isso quando ele tentou me dizer que não chorasse... tudo iria ficar bem... mas sua voz foi engolida junto com um monte de chuva branca.

          Eu não queria mais brincar com água.
          Nunca mais brincaria na chuva.
          Ninguém estava achando aquilo engraçado.
          Não era alegre sentir medo.
          Minha avó rezava alto, bem alto, para todo mundo ouvir.
         O que restara dos guarda-chuvas agora não cobria ninguém.
         Alguns cachorrinhos dividiam conosco o pequeno espaço. Encolhiam-se como eu e minha irmã. Molhados e assustados!
           Estávamos todos molhados.
            Mas o frio mais forte era aquele que batia por dentro. Fazia meu queixo tremer e meus olhos arderem.
         Queria estar em casa, sem chuva, sem nada.
         Parecia que minha casa ficava em outro planeta.
         Ou onde estávamos era outro lugar?...
         Parecia que ninguém conseguia dizer o que queria.

            Só minha avó continuava repetindo as orações uma atrás da outra.
               Quando a chuva quebraria aqueles cordões?
               Nem se conseguia ver o céu.
               Só a chuva!
                Só a água caindo muito forte, cada vez mais forte, cada vez mais fria.
                Eu queria sair dali, ir para outro lugar, levar todo mundo para...

                O barulho me fez olhar para cima.
               Pensava ser um trovão e deles também tinha medo. Mas o meu pai arrastou-nos para longe da beirada.
                Fomos todos para o fundo da laje, não tinha muito espaço. Mas todos se apertavam ali. Agora eu ouvia choro e gritos. Gritava também! Mas não dava para saber de quem era cada grito.
                    Foi o seu Moisés que engatinhou até a frente de sua casa, como se andasse em um telhado cheio de vidros. Caminhava de quatro, como eu via a minha irmã fazer.
             Eu não o enxergava muito bem, um pouco porque minha mãe me apertava contra o seu pescoço, outro porque eu queria manter os olhos fechados e nunca mais abrir.
              Muita gente grande chorava.
              E mais ainda, ainda mais, quando nosso vizinho contou que a ponte rompera e um pedaço dela estava batendo contra as casas da rua.
              Eu gostava da ponte.
              Não era muito grande, mas o suficiente para atravessarmos a pé ou deixarmos os carros passarem para o outro lado do rio.
                    Do outro lado, ficava a plantação de goiabeiras.  Era um lugar conhecido por todas as crianças do bairro.
                  Até queríamos chamar o bairro pelo nome das frutas, mas o prefeito não gostara da ideia.
                 Os pés de goiaba marcavam o limite de nossas aventuras.
                 Só chegavam a eles as crianças que já sabiam atravessar a rua e para além deles ninguém poderia ir.
                Em grupos, comíamos goiabas embaixo dos pés. Tirávamos a sorte para encontrar algum “bichinho” morando na fruta. E quando encontrávamos, as risadas poderiam ser ouvidas de longe!
                Os que já frequentavam a escola, sempre encontravam um jeito de chegar a tempo de colher as melhores goiabas. Não sei se pelo horário em que passavam por ali ou porque, mais crescidos, se mostravam mais espertos e rápidos. Mas havia goiaba para todas as crianças da cidade.

                Era início de março e as frutas esperavam por nós. Fresquinhas nos pés carregados ou já rolando pelo chão, maduras ao ponto de despencarem sozinhas.
               Um quadro com tintas amarelas, tintas que ofereciam o sabor da goiaba cheirosa. Quem gostava engolia uma após outra, sem medo de exagerar. E exagerando, havia de se buscar ajuda na casa mais próxima, coisa comum naquele período.
                  As goiabas viravam festa e se alguém perguntasse sobre a natureza delas, menino rápido respondia de pronto: "Natureza? Que natureza? É goiaba e ponto final." Ninguém olhava para dentro da massa suculenta procurando os famigerados invasores em forma de pequenas "minhoquinhas" brancas. Ria-se da preocupação de poucos nas dentadas que se enterravam na casca mole. "Algum bicho na goiaba? Que bicho? Só vi a goiaba!"
                   Quando o chão se cobria de amarelo e  as abelhas juntavam-se para festejar também, as mães atentas nos incumbiam de recolher as frutas maduras. Antes que qualquer anúncio se fizesse, nova festa armava-se sob as goiabeiras e dentro das casas os fogões à lenha esperavam resfolegantes. As crianças esperavam duas vezes pelos doces açucarados.
                    Era o tempo das goiabas. Era o tempo que se misturava com a chuva anunciada.
                    
                Como estaria o nosso lugar de encontro, de brincadeiras e banquete?
                Será que a chuva havia derrubado muitas goiabas?        
                Será que...
               Outra vez precisei “voltar” para a laje, pois a chuva aumentara ainda mais e algo estava acontecendo além do que eu via.
                Os homens tentavam pegar alguma coisa embaixo, aos gritos de segura!, segura!.
                Eu não entendia nada.
               Só ouvia mais gritos e mais choro.
               Mais gritos juntavam-se ao barulho da chuva.
               Mais lágrimas para aumentar a água que subia pelas paredes das casas.
                 Eu podia ver pela fresta entre os cabelos molhados de minha mãe que o quintal de nossa casa desaparecera. Meu balanço de corda estava em algum lugar embaixo de toda aquela água escura que invadia as ruas, as casas, os quintais.
                Só as copas das árvores mais altas estavam de fora.
                 E, nem queria pensar que fazia só algum tempo que passáramos por ali. Pouco tempo, pouquinho tempo... a chuva fora mais rápida do que todos nós juntos!
                  Será que água conseguira entrar pelas portas fechadas? Será?
                  Não conseguia imaginar minha casa por dentro, cheia de água suja... aquela água que tanto barulho fazia e se misturava com a terra, as árvores, quebrava galhos, arrastava tudo o que estivesse no caminho. Essa mesma água deveria estar no meu quarto, na minha cama, nos meus brinquedos...


                 A fresta entre os cabelos de minha mãe era pequena e eu nem sabia se realmente queria ver e saber o que acontecia.
                Só queria não estar ali.
                Queria voar com uma capa bem grande, bem forte, bem larga, para levar todo mundo para um lugar seco e seguro.
                 _ Vamos, vamos. Puxem com força. Vamos! Ele não vai conseguir subir. Segura! Segura!
                 Não sei foi por quanto tempo fiquei ouvindo esses gritos. Para mim foi por muito, muito tempo. Muito tempo e muitos gritos.
                  Demoraram a voltar para o fundo da laje e quando voltaram, junto com eles estava o filho mais velho de um vizinho do começo da rua.
                   Estava mais assustado do que eu.
                    Mas não chorava...
                    Só respirava bem alto e olhava para o piso encharcado.
                   Seu braço estava machucado, e não havia remédio ali em cima.
                    Quando ele falou, os adultos não deixaram as crianças ouvirem.

                  Então a gente ouviu o choro do menino mais velho que acabara de chegar.
                   E outros choros que se misturaram aos dele.
                  Ficamos assim, colocando mais gotas de lágrima para aumentar o volume daquela chuva.
                 Minha avó dizia que era o final dos tempos.
                  Não entendi.
                   Minha irmãzinha conseguira dormir enrolada no casaco molhado de meu pai.
                  Eu queria sair dali.
                   Mas como?
               Falavam que o rio tomara todo o bairro.
              Que precisávamos esperar.
               Esperar mais?
               Eu estava com medo, já fizera xixi nas calças várias vezes e minha mãe nem dissera nada.
                Acho que não deva para perceber.
                A chuva era mais forte do que o meu xixi. Era fria!
                 Estava com medo e mais medo... um medo pesado, maior do que eu mesmo.
                ... medo de ser levado pela água.
                ... medo de desaparecer no meio daquela cortina molhada.
                Eu estava com medo de...
                 Era isso!
                 Eu estava com medo de sair daquele lugar e ao mesmo tempo queria sair dali o mais rápido possível.
                   Já não gostava mais de chuva. Por que ela não parava?
                    Ainda existia água lá no céu?
                    Existia rio lá em cima também?
                    Nem pensei em perguntar.
                    Nada me faria abrir a boca, só o choro que ia e vinha e lambuzava meu nariz. Minha mãe nenhuma vez me pediu que o limpasse. E eu já nem sabia mais a diferença entre o que descia do céu, dos meus olhos, do meu nariz e... Entre aquela água escura que descia pelas ruas afora.
                     Nem existia mais rua. Só a água barrenta que agora ocupava todos os lugares.
                    Estava escurecendo.
                    Dava para ouvir o barulho da água batendo nas paredes embaixo.
                    Às vezes, algum barulho mais alto fazia os homens debruçarem-se sobre a beirada da laje.
                    Sempre explicavam alguma coisa e depois se ouvia a voz de minha avó.
                    Mas agora não era só ela que rezava. Quem estava ali rezava alto ou bem baixinho, com os olhos fechados para melhor se fazer ouvir.
                     Minha mãe disse que os anjos nos ouviam e que iríamos logo sair dali.
                     Mas eu pensava que os anjos estavam molhados também e não poderiam voar até a chuva parar.
                     Anjos moram no céu? Então!?
                     Não perguntei nem afirmei. Se os anjos pudessem chegar até onde nós estávamos, então...


            Acho que os anjos tiveram muito trabalho naquele dia. Pois, só muito tarde da noite os bombeiros nos tiraram da laje, em botes enormes, vermelhos, que apareciam de longe dentro da cortina de água.
            Os anjos haviam chegado e sim, disseram ter muito trabalho por fazer.
            Também eles estavam molhados, e bem me esforcei para ver as asas emplumadas.
              Usavam todos eles o mesmo disfarce que ouvi minha avó chamar de uniforme (e eu ainda pensei que uniforme era o que se usava na escola... aquilo ali era um disfarce! Mas discutir com minha avó embaixo daquela chuva que não parava não me pareceu interessante!).
            Seríamos levados para uma escola que ficava no bairro mais alto da cidade.
             Passamos pertinho de telhados e coisas boiando na água. Coisas e... cheguei a ouvir os choros que cortavam mais do que a chuva. Era um choro tão dolorido que minha mãe pressionou meus ouvidos até quase me machucar.
              Ouvi minha avó abençoar a escuridão!
              Ouvi os anjos disfarçados respirarem fundo, várias vezes, e olharem entre si como se falassem uma linguagem distante para os demais. Acho que eles também estavam tristes.
            Ouvi dizerem que outros estavam chegando para ajudar, que nos acalmássemos, que tudo ficaria bem, que fôramos salvos...
              Não dava para saber por onde o bote passava. Não existia mais rua... só água!
              Eu nunca tinha visto as casas de cima.
             Essa era uma visão que eu não conhecia. Nem desejara conhecer dessa forma.

            Minha irmã acordara e desatara a chorar no meio do que parecia uma viagem sem fim... só água e escuridão!
            Os bombeiros ofereceram alguma coisa de comer que tinham nos bolsos.
                 Ela pegou, mas não abriu.
                 Foi então que percebi duas dores diferentes na boca de meu estômago.
                 Uma era de medo. A outra era de fome.
                 A escola estava cheia de gente.
                 Receberam-nos com água quente e cobertores. Os que chegaram antes ajudavam os que chegavam, do jeito que podiam: chorando juntos, acalmando, rezando, abraçando... e até carregando no colo.
                 Não lembro bem de como as coisas foram acontecendo.
                 Mas lembro da sensação de calor e segurança que senti ao ser pego no colo sem chuva rolando sobre mim.
                 Ficamos todos juntos, em colchões colocados no chão.
                Parecia o céu... sem chuva batendo no rosto, sem o xixi escorrendo pelas minhas pernas, sem o nariz lambuzado que melecava minha boca e eu nem me importava... só o barulho que vinha de fora lembrava a chuva que não parara..
                Barulho de chuva braba. Barulho de chuva ruim.
                 Era o melhor lugar do mundo naquela hora.
                 Nem minha casa parecia mais tão boa e querida.
                Ali era bom, quente, seco e tinha gente que estava seca também. Tinha gente chegando de todos os lados da cidade e que juntavam as lágrimas junto com as notícias que também chegavam sem parar.
             Chuva e lágrimas.
             A primeira estava fria e barulhenta; a segunda, até parecia a chuva, só mais quente, silenciosa e cheia de acontecimentos que nem sempre eram contados até o fim.
                  A chuva que ficara lá fora e não queria parar entrara na vida de todos na cidade. Eu pensava que nunca mais poderíamos secar as lágrimas e a chuva. Eu pensava que nunca mais tomaria banho, nem mesmo quando a mamãe me dissesse para tomar. Chuveiro lembrava chuva e...
                  E se...
                  A escola estava no alto mesmo?
                  Com certeza?
                  E se a chuva não parasse? E... se chegasse até ali? E...


                  Os anjos trabalharam mais do que pensavam trabalhar.
                  Nem sequer puderam parar para fazer xixi.
                  Muitas pessoas precisavam ser socorridas, muitas casas haviam desabado, vários morros desceram inteirinhos sobre a cidade...
                 Até bichinhos os anjos salvaram.
                    E muitos anjos apareceram com seus disfarces estranhos, diferentes. Alguns estavam tão bem disfarçados que eu acreditava serem pessoas comuns.
                  Muitas vezes, ao ser pego no colo, tentei encontrar as tais asas dobradas que deveriam estar presas às costas. Nada! Nem um sinalzinho sequer eu conseguia encontrar. Mas ainda assim, ninguém discutia comigo quando eu anunciava a chegada de mais um anjo, de um novo anjo, ou de algum anjo já conhecido.
                   Ninguém duvidava de minha palavra!
                   Durante os dias que se arrastavam, alguém sempre sabia de mais um detalhe, de um novo fato, de outro acontecimento e as histórias verdadeiras costuravam-se molhadas e tristes embaixo do barulho que continuava.
                 Tristeza e esperança se misturavam, às vezes uma maior do que a outra, mas as duas estavam lá! Mostravam-se em vários rostos e vozes, em cada um deixando marcas que poderiam falar sozinhas de tudo o que se passava.
               Pessoas e bichos foram salvos pelos anjos. Alguns, eu sabia, não tiveram um telhado por perto, ou nem ficaram sabendo que o morro desabava sobre eles.
              Muitos, muitos ficaram onde estavam e agora moravam em outro lugar.
               Minha avó insistia em dizer que o céu estava seco, bem sequinho e lá estavam todos aqueles que foram embora.
              E eu nem sabia que os anjos usavam farda (essa era a nova palavra que eu aprendera, mas que de nenhum modo substituía o que para mim ainda era um bom disfarce!)
               Vinham de bote, de colete salva-vidas, traziam mais colchões, comida e até doces para as crianças que estavam ali.
              Eram anjos bem fortes, alguns bem grandões. Outros pareciam menores, mas só até a gente chegar perto deles para saber o quanto eles faziam para ir e voltar.
           No final da tarde do outro dia, eu vi alguns anjos com chuva nos olhos.
            Eles nada disseram para aqueles que conseguiram salvar, mas eu entendi que alguns anjos perderam as asas e não poderiam voltar. Também estariam em um lugar sequinho, onde nem a chuva nem a água barrenta conseguiriam chegar.
           Era outra coisa que eu não entendia.
          Como um anjo poderia não voltar?
           Ele esquecera o caminho?...não sabia mais voar?, Anjo não sabia nadar? Anjo voa com chuva?
          Anjos sem asas... não perguntei nada para ninguém.
          Minha boca às vezes trancava por dentro. Ao contrário de minha irmã, que parecia ter engolido todas as palavras e agora as colocava para fora de uma só vez.

          Mamãe perguntava se eu estava bem a cada segundinho... Dizia que logo voltaríamos para casa, que tudo voltaria ao normal.
          Eu nem sabia o que era isso: normal? , o que é normal?
          Minha casa já não era mais o melhor lugar do mundo.
          Meu mundo estava molhado, “imundado”, cheio de medo da chuva que ainda não parara. Cheio de barro, de água que tomava o lugar das coisas e das pessoas. Ou... seria o contrário? Não sabia! E estava pensando demais nos últimos dias
           As roupas que usávamos não eram nossas. Foram passadas para nós por pessoas que moravam onde a chuva não tinha chegado. Eram roupas diferentes, coloridas, quentinhas, secas e com cheiro de lugares que eu não conhecia.
             Com roupas, palavras e alimentos, pessoas de muito longe ajudavam os anjos a salvar e salvar e salvar vários “imundados”.
              Eram pessoas que diziam saber o que significava tudo aquilo. Não sei, elas pareciam mesmo saber, pois ali, na escola cheia de “imundados”, nada faltava.
             Apesar de estarem sequinhas, sequinhas, às vezes essas pessoas enchiam os olhos com lágrimas e até esqueciam-se de disfarçar.
              Foi assim durante muitos dias.
              Muitos dias e noites ouvindo o trabalho dos anjos, ouvindo pessoas que choravam diferente, que rezavam sem parar.
             A escola ficara pequena e agora, outros lugares altos eram procurados para abrigar quem estava molhado, quem ficara sem casa, quem estava machucado e até quem os anjos não conseguiram salvar.

             A chuva não ia embora.
             Os cordões grossos da cortina de água faziam a gente esquecer o sol.
            Faziam a gente pensar que toda a terra virara um rio que corria, corria, abrindo portas e janelas, entrando nos quartos das crianças, molhando os brinquedos, os livros.
            O rio “imundava” tudo, sem olhar o quê.
            O rio “imundara” as goiabeiras. Nenhuma delas ficara de fora.
             Ouvira papai contando que vários bairros estavam cobertos pela água ou pela lama, ou pelos dois juntos.
              Eu não conseguia imaginar nada disso. Só pensava na chuva que ainda molhava tudo lá fora.

           Em minhas noites no colchão dos anjos, mesmo sem querer, ia parar lá em cima da laje. Acordava gritando e com minha mãe me pegando no colo. 
           Não sei se um dia vou deixar aquela laje descendo sequinho por ela enquanto meus sonhos fazem outros desenhos.
           Não sei fazer outros sonhos. Em todos eles a chuva está muito braba e amarra cortinas de gotas que não se rompem e arrastam terra e árvores, coisas e pessoas.
           É como se eu ficasse sem ver , ouvir e falar... tudo ao mesmo tempo, enquanto o sonho parecia real.
           Tudo virava água! Até os meus sonhos. Vezes e vezes fiquei com vergonha de acordar em outro colchão. Mas minha mãe dizia entender o que se passava e que tudo “passaria”, que logo!, logo!, eu estaria bem!
          
            Não sei quando a chuva vai passar.
           Mas pouco a pouco vou descobrindo como destrancar a boca pelo lado de dentro ouvindo as bocas do lado de fora destrancarem-se também.

         As crianças que estão abrigadas na escola criaram brincadeiras muito diferentes.
         O espaço é pequeno e os brinquedos são poucos.
          Precisamos aprender a dividir, a imaginar e a gostar do que temos agora.
         Ninguém sabe quando iremos voltar para casa.
        Há duas semanas estamos esperando que o rio volte para o seu lugar, que a chuva pare de cair e que os anjos não se cansem de ir e vir.
               Quero bolinhos sem chuva, quero pipoca seca, quero goiabas sem lavar, quero a ponte sem água embaixo, quero... sei que não pode ser assim.
                Mas posso querer! E por enquanto eu quero assim: tudo seco, sequinho, “secão”. Só querer já me faz bem!
               Será que meu pai faz outro balanço de corda?
                Será que vou ter meu quarto de volta?
                Será que minha avó aprendeu orações novas?
                 Quero colher goiabas sequinhas.
                  Mas é a chuva que agora me assusta que as faz crescer.
                  Como posso entender o que ainda não entendi?
                 Os anjos explicaram para nós que isso é obra do homem.
                 Eu não sabia que os homens sabiam fazer chuva. E se sabem, esqueceram-se de fechar a torneira?
                 Estão falando em falta de árvores, em lixos nos bueiros e rios, em falta de estr... estrut...  estrutu... não sei bem o que é.
                Mas disseram sobre a gente precisar aprender com a natureza.
                 Que todos nós “precisamos” aprender com a natureza. Também não entendi!
                 A natureza diz muita coisa para quem a escuta, e eu nem sabia que ela falava!
               Tá!!! Então, eu também quero escutar, quero aprender sobre que ela está falando. Quero saber como a natureza sente e se sente!
                 Disseram que o planeta está doente... nossa! E porque ninguém o levou para um hospital? Está difícil entender essas “coisas”...  Mas quero saber de tudo o que eu preciso saber para ajudar.
              Quero que a chuva venha e volte e eu não fique com medo dela.
              Será que esse medo vai passar?
              Minha avó disse que o medo vai embora quando a gente entende de onde ele vem.
                Eu ainda não entendi! Mas queria dividir minha história com alguém.
               Queria saber de outros medos e contar outros medos meus. Talvez, fazer uma troca de medos para entender de onde eles vêm?!
                Será que... será que a chuva assusta outras pessoas também?
              
               Ainda estou na escola.
               A chuva não parou.
               Não posso voltar para casa...
               Mas os anjos disseram que se a gente quiser conversar, eles encontram um jeito de fazer a nossa conversa ficar sequinha!
              Eu não acho graça... ou pelo menos ainda não me lembro de como é sorrir. 
               Muita gente está escrevendo nos papeis que trouxeram para nós.
                Eu só consigo desenhar chuva, e casas sem janelas.        
                Uma vizinha recebeu uma carta. Disse que veio de longe.
               Ela leu em voz bem alta e muita gente chorou. Não foi um choro de tristeza! Acho que as palavras que ela leu entraram no coração de todos os que estão aqui.
                Vou pedir um papel para “escrever”... já sei todo o meu nome e aprendi algumas palavras que começam com a letra “C”. Claro! Já sei escrever chuva...
             Não sei quando vamos voltar para casa. Nem sei se vamos voltar para a “minha” casa.
               Eu queria muito, muito mesmo!, receber uma carta.
               Parece que palavras escritas dão um calorzinho gostoso na pele e no fundo dos olhos de quem lê, de quem ouve e de quem pensa nelas.
               Vou pedir para os anjos o nome de um lugar que eles reservaram para as palavras.
               Pedi. Perguntei. Xeretei. Anotaram para mim.
                Disseram que se alguém desejar escrever pode enviar para o endereço eletrônico iv.l.@hotmail.com. E-mails são cartas mais jovens, muito mais jovens e chegarão até aqui: molhados de chuva ou secos pelo sol de algum lugar muito longe, serão todos lidos dentro dessa escola, nossa casa por tantos e tantos dias.
             
            Talvez...
            Talvez, juntando outras palavras às minhas eu aprenda a aprender.
             Alguém disse que hoje irão trazer bolinhos açucarados para as crianças comerem.
             Bolinhos, bolinhos, não sei!, os bolinhos de que lembro me fazem pensar na chuva.
             Será que esses bolinhos... não! “Bolinhos de chuva”, ninguém pensaria em fazer... pensaria?
              Vou para a porta da escola.
              Vou esperar pelos bolinhos... e pelas palavras escritas também!
              A chuva ainda não parou...
              Nem o medo passou!
              Queria receber uma “coleção de palavras”...
              Sou um menino com cinco anos de idade e vários dias de muita chuva. Tenho pesadelos e medos, mas também tenho vontade de aprender.
                 Estou na porta da escola e além da água eu vejo a terra que a água carregou. Fiquei sabendo sem querer saber que muitas pessoas foram carregadas pelas duas: água e terra. Tenho medo de imaginar, penso que posso ver a mim e aos que eu conheço sendo arrastados pela terra barrenta. Não gosto das imagens que minha cabeça de criança fazem se repetir sem parar.
                  Quero voltar para casa!
  

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