MIUDINHO
MIUDINH0
DEDICATÓRIA:
“Para os que sabem ouvir.”
Não era
estranho. Era diferente.
Mesmo com
esforço ninguém conseguia entender qual a técnica que Miudinho usava para
concentrar tantas histórias em tão curto espaço de tempo.
Curto,
curtíssimo o espaço que os outros tinham para tentar falar quando ele estava
presente.
Miudinho
conseguia dizer muitas coisas ao mesmo tempo, como se as palavras estivessem
sempre prontas em sua boca, escondidas atrás dos dentes, apertadas entre as
bochechas.
E de sua boca
destaramelada elas saltavam...
Bem, não era
exatamente só da boca que as palavras saltavam.
Elas apareciam em
forma de movimentos com as mãos, de olhos virados e revirados, de bocas de
todos os tamanhos, de pigarros profundos quando alguém tentava interromper o
“saltamento” – se esta palavra não existe, eu a trouxe de algum lugar, e se o
Miudinho pode fazê-las saltar, eu posso fazê-las aparecer.
Não precisava
acontecer um destampatório, até mesmo porque a única coisa que se destampa em
uma discussão é a lista de palavras compridas. Ou... não!
Coitado de
quem tentasse agarrar uma palavra.
Uma
palavrinha, um pitequinho de sílaba, um minúsculo foneminha... Recebia o melhor
dos olhares de “quieto!”.
A indiferença diante das palavras
dos outros fazia o silêncio pesar feito barro úmido, grosso, pegajoso, sentido
e entendido por qualquer um que estivesse com a boca cheia do que dizer.
Todos ouviam
engolindo frases inteiras.
Frases que
voltavam a adormecer no mundo dos significados.
Frases que
se acotovelavam procurando um lugarzinho a mais na caixinha do dizer “não
dito”.
Se alguém de fora se atrevesse
a imaginar um ser humano mais amado do que o Miudinho, cometeria um grande
engano.
Os amigos que
o rodeavam faziam questão de recebê-lo. E de ouvi-lo.
Quando indagados sobre o porquê
de suportarem tantos “engolimentos” _ essa também busquei no mesmo lugar da
outra __, eram unânimes em aceitar a sábia voz de quem sempre sabia dizer sem
se fazer calar:
_ Eu prefiro ouvir bobagens a não poder
ouvi-las.
Atrás de
um bigode farto, muito farto, com alguns risquinhos brancos que a sabedoria
pinta, o sábio dizia o final da frase em tom de grande discurso. Essa era uma
verdade!
Miudinho
talvez soubesse disso, pois no agrupamento de palavras que saltavam dele,
dificilmente alguma história tinha pé. Nem pé, nem cabeça... eram histórias que
ganhavam espaços, pedaços e rumos impraticáveis.
Conferiam-lhe a alcunha de “o criador” de histórias, para não usar uma
palavrinha teimosa que lembra outras: potoca, peta, lorota.
Ninguém
dizia, mas que pensavam, pensavam.
Miudinho era
um destabocado.
_ Melhor ouvir
bobagens a não poder ouvi-las.
Uma frase
inteira saía de trás do bigode pintado.
E assim
armazenavam-se os casos.
Entre muitos,
um deles é lembrado pelos seus “ouvidores” _ essa palavra eu não procurei, ela
chegou sozinha e nem me avisou que iria saltar para fora _ como sendo a pérola
das petas (procura essa no campo das palavras enfileiradas, tenho certeza de que
ela estará lá, sem mentiras!).
Foi um caso
demorado, cheio de mãos pelo ar, de olhos enviesados e bocas repuxadas.
Talvez pelo clima de
carnaval que deixava o ambiente com aquela cara colorida de “eu posso”..., ele
exagerou na dose da potoca.
Chegou com as
palavras na frente, anunciando que o silêncio pesaria entre as frases
recolhidas garganta abaixo, ou goela acima.
Isso de para
onde vão as palavras é ainda uma incógnita. Mas imaginando que vão para algum
lugar, e que este lugar existe, o caminho deveria fazer sofrer tanto a elas, as
palavras, quanto ao seu engolidor, o falante.
Estava determinado
a contar um caso que acabara de presenciar: um “engolimento” de samambaias.
_ Isso mesmo!
Acabei de conhecer um cabra que engole samambaia e arrota goiabada.
Os amigos,
impressionados, disseram de uma só vez:
_ Impossível!
Samambaia não é uma planta comestível.
E uma das mães
ainda mais impressionada atacou:
_ Você não deveria
contar essas petas na frente das crianças, pode ser perigoso. Vai que uma delas
resolve acreditar em suas bobagens... samambaia deve ser uma planta venenosa!
Você está sendo irresponsável!!!
_ Com certeza!,
gritou a outra mãe que tinha muitas samambaias em sua casa e mais uma dúzia de
filhos pequenos que gostavam de novidades.
_ Bobagem não! Eu
vi... com os dois olhos e essas mãos.
_ Outra de suas
invenções. Tome cuidado, essa planta pode ser venenosa e não deve ser comida
por ninguém! Entendeu? Entendeu, seu potoqueiro?
Era a primeira mãe
alertando para um perigo verdadeiro: muitas plantas são lindas para se ver, mas
jamais poderão ir à boca de alguém. Jamais!Jamais!Jamais!
Miudinho entendera,
até onde conseguira ouvir. Mas o que a mãe desejava era garantir que as
crianças presentes nunca tentassem provar da tal receita, uma vez que algumas
samambaias podem realmente intoxicar.
Mas o potoqueiro de
plantão já estava longe no caso.
Na descrição da
cena, Miudinho não poupou os gestos de quem conhece o sabor da palavra
esperada.
Pelas bocas
abertas feito janelas no verão, as palavras sequer tentaram manifestar-se
diante da impressionante narrativa.
_ Pois eu vi. Eu
vi e fiquei olhando sem piscar. O cabra não era dessas redondezas, mas parecia
muito com alguém que já conheci. E não me fiz de difícil, perguntei qual era a
receita.
_ Samambaia
colhida diretamente do pé.
_ Só isso?
Quem disse que era pouco,
considerando a natureza da planta? Mas para Miudinho, uma explicação só não
bastava.
_ Mas... só
samambaia verde pode fazer o arroto doce e colorido?
Claro que não! O
cabra indicou o uso de outros ingredientes ainda mais impróprios para os
ouvidos infantis. Nada mais inadequado para uma lorota a necessidade de
cortá-la para atender aos gritos de uma mãe zelosa:
_ Chega, Miudinho!
Isso é uma sandice! Que fique bem claro para todas as crianças aqui que comer
samambaia é muito, muito, muito perigoso.
Depois de muitos
outros “muitos” e de todas as crianças terem repetido que jamais colocariam a
mão em uma planta que não conhecessem e ainda menos a levariam à boca, Miudinho
concentrou-se na cor e no odor do arroto do dito cabra.
_ Pois eu vi e
senti. Era um arroto daqueles de dobrar a esquina e dar a volta no quarteirão.
Arroto de goiabada recém-descolada do fogo.
Contou em detalhes
que conseguira até mesmo ver a forma arredondada e grossa do arroto.
Arroto redondo...
considerando que isso não era perigoso para as crianças ouvirem, ninguém mais
conseguiu fazer qualquer interrupção.
E as palavras
cheias de formas criaram força para sair.
_ Arroto redondo,
sim senhor!
Era tão redondo que
até parecia ter sido feito com um compasso (pequeno instrumento que... ah! você
sabe!). Redondo, redondinho!
Do canto da sala um
menino interrompeu:
_ Isso é pura mentira!
A gente não consegue ver o arroto, só ouvir.
Estava armada a arena
dos argumentos.
Nenhum adulto quis
participar daquela discussão e como as crianças se interessam rapidamente por
outras coisas em sua volta, Miudinho foi deixado mais uma vez a falar e falar e
falar...
Também teve aquela
vez em que ele conseguiu contar um caso inteirinho para um vizinho morador
recente.
Desavisado, o vizinho
não pretendia ser deselegante com uma pessoa tão cheia de... de... palavras.
Decidido a ser um bom
ouvinte, armazenou ar nos pulmões e colocou um sorriso embaixo do bigode ralo.
Estava armada a cena:
com o sol a pino e no meio do passeio, Miudinho atracou-se a mostrar que
conhecia além de tudo e mais um pouco sobre qualquer assunto.
Que fosse desafiado pelo novo amigo e ele
daria a conhecer as qualidades de um bom falante, amigo para todas as rodas,
lugares e ocasiões.
Mas antes mesmo que
pensasse em alguma coisa, Miudinho já lhe impressionava com a história de um
jogador de futebol muito conhecido de todos, mas que resolvera deixar a bola e
o campo para tornar-se padeiro.
_ Padei...
Foi longe o vizinho
de bigode ralo tentando mostrar sua surpresa. Quase desentalou uma palavra
inteira.
Quase! Não fosse
a rapidez de Miudinho em completar em uma só frase que isso tudo poderia ser
explicado por um problema que o rapaz tinha em relação às bolas... às bolas de
futebol, claro! E então passara a fazer pães amassando-os como se estivesse em
campo e...
O bigode ralo que
sombreava o lábio superior do vizinho desavisado mudou de cor várias vezes
durante as primeiras horas.
À medida que o sol
também se ajeitava lá por cima das nuvens e não havendo mais tecido de seus
bolsos para rasgar e nem unhas para roer, o “bom homem ouvinte dedicado” pôs-se
a atacar os ralos fios.
Perfeito! Quanto mais
se afastavam os raios de sol, menos fios poderiam ser contados naquele risco de
pelos, antes bigode em crescimento.
_ Perfeito!, diria sua
mulher mais tarde, muito mais tarde, quando ao ser socorrido pelo Corpo de
Bombeiros devido a uma insolação motivada (... ele era um bom ouvinte, e isso o
Miudinho pôs-se a contar em detalhes!), o pobre homem ainda perguntou:
_ Sobrou algum?
A esposa que sabia do
investimento em frente ao espelho e das xaropadas e promessas para aquele
bigode crescer, não teve coragem de dizer a verdade. Consolou seu amado com
aquele sorriso que só as mulheres sabem dar diante de uma situação nem tão
verdade nem tão mentira:
_ Você está lindo, meu
bumbum de bebê!
E a frase carinhosa
conseguiu deslizar para os ouvidos abertos de Miudinho sempre alerta.
Para “recortar” esta
parte que não tem muita graça, basta dizer que em menos de um ano o vizinho
novo foi ser novo vizinho de alguém em outro bairro. Longe, muito longe da
antiga moradia.
Questão de qualidade
de vida... sabe!, ficar mais longe da cidade, mais perto da roça, ouvir o canto
dos pássaros que não... bem! Era isso:
Certamente que todos
entenderam, mas continuavam na ideia de:
_ Melhor ouvir
bobagens do que não poder ouvir!
Ninguém apresentava
outro argumento. E assim, as palavras continuavam sua lida na boca, nas mãos,
nos olhos e no corpo inteiro de Miudinho.
Ele era um homem que falava pelos poros. Houve
quem tentasse dizer que falava pelos cotovelos, mas foi imediatamente
contestado. Falar pelos cotovelos era diminuir muito a capacidade que Miudinho
apresentava de concentrar todas as palavras, frases e orações (dizem que ele
rezava também... e que as orações eram sempre muito apreciadas pelas beatas da
cidade. Passavam da hora matinal em linha reta e contínua e ininterrupta para
as últimas orações do dia.).
Mas para todo loroteiro, há
sempre uma criança pronta para servir à verdade. Eis que em um dia, o menino
que sabia dizer sem mentir, encontrou Miudinho.
Talvez “encontrar” não seja
uma palavra adequada para descrever o quadro. Mas, na falta de outra melhor
neste momento...
Gabriel sabia das coisas.
Era um menino inteligente e bem criado. Sua avó dizia para quem quisesse ouvir
o tamanho da sinceridade que Gabriel carregava. Era um menino de ouro.
Confrontado com as potocas
que Miudinho soltava em grande quantidade, o menino não pensou duas vezes:
_ O senhor é um homem que
conta mentiras!
Dito assim até parece que
não foi muita coisa. Mas vá lá participar da cena em que uma criança se dirige
a um adulto sem o tal do “respeito”!
Foi o primeiro grito que
se ouviu:
_ Olha o respeito, menino!
Gabriel não sentiu o tom
severo da correção. Não sentiu nem ouviu. Como criança bem criada, estava
acostumado a dizer o que pensava e apenas dizia o que pensava depois de pesar
direitinho a quantidade de palavras que lhe saíam à boca.
_ O senhor é um homem que
conta mentiras!
A calma do menino revirava
os olhos dos adultos presentes.
Sua avó emudecera, dividida
entre o que pensava e o que pensava que os outros queriam que ela pensasse.
_ O senhor conta mentiras.
Gabriel não parecia preocupado
com o silêncio que Miudinho fizera.
Mas os adultos sim!
Pela primeira vez em muitos e
muitos anos e muitas potocas depois, Miudinho emudecera.
_ Conta mentiras sim, e
mentiras fazem mal à saúde!
Nem uma risadinha, nem um
pigarro, nem uma deixa para mudar a cena e desviar a atenção do menino para
outro assunto.
_ Mentiras são palavras com
buracos no meio.
Gabriel não percebia o
silêncio crescendo e tomando ares de gigante que acorda com fome.
_ Palavras com buracos no meio
fazem a verdade ir embora.
Era um gigante muito esfomeado
que acordava na reunião de amigos do Miudinho.
Era um gigantão, com um bocão,
louco de fome!
_ E quando a verdade vai embora a
gente custa a encontrar outra!
As palavras subiram aos olhos de
Miudinho e amontoavam-se para espiar aquele menino que falava o que pensava.
Ou pensava que falava alguma coisa, se é que
existe diferença entre uma coisa e outra e. enfim!
As palavras coloriram os olhos do homem
falador.
Coloriram e beliscaram a menina dos olhos com
suas pontas e linhas curvas, às vezes abertas, outras fechadas. Beliscaram
tanto que na última frase...
_ O senhor ment...
Gabriel foi interrompido por um
barulho do tamanho da fome do gigante que acordava.
Ai!!! Era alguma coisa parecida
com ch... chor... choro?
Miudinho estava chorando?
Não era bem um choro. Parecia
mais um soluço enterrado por muito tempo e que tentava passar pela garganta,
vencer a úvula, bater nas pregas vocais e sair pela boca.
Um soluço de entendimento!
Então, todos ouviram:
_ Me desculpe! Desculpe criança,
me desculpem todos vocês!
E agora?
Será que a menina dos olhos aguentaria
tantos beliscões?
Os olhos de Miudinho brilhavam
avermelhados pelo rubor das palavras envergonhadas.
Esse homem era uma fábrica de
palavras! E nesse memento todas elas curvavam-se diante de uma criança que
também fabricava sentidos.
Ninguém tentava remendar nada! Por
esquecimento, por polidez, por força de não saber o que fazer, os amigos de
Miudinho permaneciam mudos.
Até mesmo a avó de Gabriel deixara a
dúvida escafeder-se por entre os presentes.
_ Tá!
“Tá”? Como assim?
_ Tá! Vamos brincar?
Impossível!
Apenas isso?
Antes que alguém encontrasse
o que dizer, Gabriel e Miudinho já saíam para a rua.
Alguém ainda os viu pegando
uma bola de capotão.
“Tá”?
E todos as palavras que
haviam sido engolidas diante das... das... das potocas de Miudinho?
Tão simples?
Não foi simples saírem do
silêncio. Até mesmo porque, depois de tantos anos digerindo palavras e frases
inteiras, todos tinham muito que dizer.
Mas Gabriel e Miudinho não
souberam desses detalhes.
Na verdade, contam alguns
que...
_ Contam? Quem conta o quê!?
_ Como assim...?
_ Contar é uma coisa séria!
Quem está contando?
_ Não! Você não entendeu... eu
estava dizendo que...
_ Sim! Eu entendi! Dê um nome!
_ Um nome? Que nome?
_ Quem está contando?... como
se chama o contador?
_ Mas eu não estava falando
de nenhum contador... estava falando que...
_ Alguns, alguns, alguns...
isso está me cheirando a peta!
_ Mas... quem disse?
Esse diálogo passou longe de
Miudinho e ainda mais longe de Gabriel.
Mas parece que continua por
aí, de esquina em esquina, de boca em boca tentando encontrar quem dele goste
para iniciar outras...
_ Mentira não!?
_ Mas, quem falou em mentira?
_ Quem?
_ ...
É! Quem irá contar a próxima
peta?
_ Você?
_ Não! Eu não!...
_ E você!?
_ Quem? Eu?...
_ ...
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