UM CURUMIM NAS MINAS GERAIS... arawak, uai!
UM CURUMIM NAS MINAS GERAIS... arawak, uai!
Chovia muito naquela manhã.
Os índios mais velhos estavam reunidos havia
quase uma lua.
Não se
ouvia um único murmúrio em toda a aldeia. Nem mesmo os pequenos macaquinhos
atreveram-se a aparecer.
O cheiro dos cachimbos coçava o
nariz das crianças.
Diziam as mulheres índias mais
antigas que aquele era um mau sinal : de que eles ainda não sabiam o que fazer.
Mas por entre as cepas de uma tenda, um par de olhos espiava para além das
árvores molhadas.
Ele parecia magro para a altura que alcançava.
E parecia mais velho se bem dentro dos olhos alguém procurasse a sua idade.
Acostumado a conversar com os bichos e com a mata, tanto andava por entre eles
que até se esquecia de falar a língua dos índios quando voltava para a aldeia.
Ganhava o dia pescando no grande-rio ou procurando ervas para a avó-de-todos.
Mas agora, disseram-lhe que havia chegado a hora.
Esperavam pelo que não sabiam
poderia acontecer. O não sabido tomava conta da imaginação. Especialmente a dele.
Já havia passado pelas provas do Grande Pajé, aprendera que saber nem sempre
era o mesmo que conhecer.
Lembrava com clareza do dia
em que ganhara a sua sacola de talismãs. Costurada em couro de cobra verde,
tinha espaço para guardar muitas ervas, sementes de guaraná, e pedaços secos de
vitória-régia. Índio que conhecesse a floresta não saía sem as suas
preciosidades. E ele sabia bem por onde andava. Morar na Floresta Amazônica não
era para qualquer um. Era preciso ser um bom índio para vencer os medos que
vinham não se sabia de onde, para não pisar nas aranhas que saíam para tomar
sol, para conhecer a época das chuvas que inundavam o Alto Içana. E em
especial, para cuidar da mata ameaçada pelas grandes máquinas de cortar.
Por uma razão
desconhecida, tal como havia começado, a chuva parava agora.
No ar e na terra, nas
folhas das árvores e até no pelo dos animais misturava-se um pouco das nuvens
do céu.
A água limpava e nutria, e
como dizia a Avó-de-todos, era sempre um santo remédio. Índio que era índio
sabia disso e de muito mais. Tanto sabia que juntava a água da chuva para fazer
remédios que curavam a alma. Índio tem a alma no nome e por isso não pode revelar
o nome que recebe quando nasce. Índio cuida da alma, da água e do nome.
O murumuxaua, ou tabixaba , ou tuxaua ou o mburovixá, ou cacique, como os outros homens gostavam de chamar,
cuidavam da aldeia, cuidam de todos, mas cada índio também é responsável por
quem vive com ele. O Cacique é importante, mas cada índio é importante também,
cada bicho, cada árvore, cada gota do rio é importante do mesmo modo.
Pela fresta alargada, os olhos espichados para
além da mata voltaram devagarzinho para o centro da aldeia.
A reunião dos mais velhos durou muitos dias.
Desde o momento em que aqueles homens que
cobriam o corpo apareceram por ali, alguma coisa havia mudado. Falavam
estranho, sorriam muito, e não conseguiam decidir o nome do lugar em que
dormiam os índios: cabana, oca, tenda, taba, casa, choupana. Cada um falava de
um jeito. Mas fora isso, pareciam ser homens bons. Olharam os dentes e a língua das
crianças, apertaram algumas barrigas, espiaram dentro dos olhos, e até comeram
algumas sementes amargas sem reclamar. Quando foram embora, o Cacique reunira
todos os anciões.
Tinham acendido um grande fogo.
Novas tintas apareciam nas mãos dos
guerreiros.
Raízes vermelhinhas, vermelhinhas eram
enroladas em tenras folhas de banana-da-terra. Os índios mais fortes já
entravam no rio para o banho de cerimônia. Haveria pajelança.
As mulheres saíam agora.
As mais velhas no centro, da
direita para a esquerda, preparavam-se para a dança das grandes ocasiões.
As crianças ficaram no círculo menor; da
esquerda para a direita os meninos batiam o pé, moviam o corpo e soltavam um
grito de “vamos” em clara e boa língua indígena.
Os
olhos curiosos do alto menino indígena estavam pregados no grupo de anciões.
O que estariam decidindo? Essa não era uma
dança de grande festa. Nem era período de iniciação dos meninos guerreiros. Nem
era casamento de alguém. Ninguém havia partido para o Grande Pai.
Não dava para entender a
razão do círculo do fogo. Mas que era um momento muito importante, todos ali
tinham certeza. E ainda, se o Pajé sabia, sabia, mais tarde todos saberiam
também.
Os anciões entraram no
círculo.
Todos os pés e sons cessaram
de imediato.
O Cacique lentamente fez
sinal de que iria falar.
E falou e falou e falou.
Disse da importância da
terra, da água, da mata e dos animais.
Falou da Grande Família que
habita a Floresta Amazônica, falou dos peixes do rio e das chuvas que estavam
indo e vindo fora do tempo conhecido pelos ancestrais.
Falou em língua antiga,
cantou para acalmar o Espírito da Natureza.
Quando a Grande Mãe adoece, os índios
descobrem uma tristeza por trás da dor. A tristeza vem antes, saltando na
frente da doença que faz as árvores projetarem suas raízes para fora do seio
marrom.
Os índios sabiam o quanto a
Mãe Natureza estava triste e doente.
O Cacique até chorou.
Chorou devagarzinho, como
índio ancião chora.
Chorou pela Floresta, chorou
pelos animais, chorou pelas crianças índias que agora adoeciam doença de homem
que cobre o corpo.
Chorou
pelos homens que cobrem o corpo. E cantou por todos eles também. O canto chamou
os animais de perto e de longe. Foi ouvido por outras tribos e toda a Floresta
ficou sabendo que uma grande decisão seria anunciada. Era o não sabido fazendo
aquela bola de cascas amargas apertarem
as entranhas de todos ali.
Junto com as cascas amargas , um friozinho
estranho chegara à barriga do dono dos olhos curiosos. Nada parecido com o friozinho
que percorrera sua pele, alguns dias atrás, antes da cerimônia de sua iniciação, aos sete anos completos. A iniciação era um
não sabido que se queria saber, pois todos passavam por ela e festejavam a hora de começar a crescer.
Seria alguma nova
responsabilidade?
Seria indicado para procurar uma erva muito
especial para a avó-de-todos?
Receberia mais uma planta para
guardar em sua sacola de talismã?
O macaquinho que era seu companheiro de
brincadeiras e de trabalho pela mata apareceu repentinamente. Agarrado ao seu
pescoço, olhava a tudo e a todos
emitindo pequenos grunhidos em língua de macaco.
E foi assim, com o macaco
catando piolhos em sua cabeça que ele ouviu seu nome de nascimento ser
proferido pelo Cacique.
Era mesmo o seu nome?
O verdadeiro nome de um índio era realmente muito
importante e só poderia ser falado assim, para chamar a força que vinha de
dentro.
Ele era um indiozinho forte e
corajoso, especialmente se não ficasse sozinho com o Trovão. Era barulho demais
até para um indiozinho guerreiro.
Quando deu por conta, já estava
sentado em frente ao Cacique, segurando sua sacola de couro e agarrado ao
companheiro catador de piolhos.
Assim ouviu e não acreditou:
os homens que cobrem o corpo queriam que um indiozinho fosse conhecer a aldeia
que chamavam de cidade.
E lá isso era possível?
Que indiozinho teria tanta
coragem?
O
macaquinho em sua cabeça enrolou-se ainda mais.
Contavam que a aldeia dos homens que cobrem o
corpo era muito estranha, sem muitas árvores para subir, sem mandioca para
amassar, sem bugios feito o seu macaquinho para com quem brincar.
O
Pajé dissera que, nessa aldeia
diferente, o rio estava doente. E não havia folha, raiz ou casca de árvore que
pudesse dar conta de curá-lo. O espírito
do rio da aldeia cidade queria subir as nuvens e abandonar seu leito de
passagem. Isso era triste. Nem queria imaginar o quanto o rio estava sofrendo.
Ele não conhecia nenhum índio tão corajoso a ponto de ir para a aldeia dos homens que
cobriam o corpo.
A noite chegava, e
junto com ela, o macaco da noite chamado Aotus, se aproximava procurando alguma
coisa para fazer. Ele era o único macaco da Amazônia que ao invés de dormir,
procurava traquinar quando o sol se punha. Havia uma família inteira de Aotus que morava próxima à aldeia. Eles
eram conhecidos pelo barulho quando todos queriam descansar.
Sim! Mas quem seria o
indiozinho escolhido pelo Cacique?
Quem seria o índio curumim que iria representar os
índios Tupis, Karib, Tukano, Jê, Pano e
Aruaque!?E haveria outras escolhas dentro
das aldeias de índios de quem ele nunca ouvira falar.
Upa! O Cacique
dissera mesmo o que ele ouvira?
Antes que pudesse pensar em alguma coisa,
recebeu uma nova sacola de couro cheia de ervas, sementes e raízes especiais.
A Avó-de-todos se
aproximou com um pote de terracota amassada com a baba das outras avós.
O Pajé também trouxe as penas sagradas
para colar em seu corpo.
E assim foi. Com o
macaquinho companheiro tão espantado quanto ele, deixou que passassem o barro
amassado em seu corpo e colassem as pequeninas penas, uma a uma, até não aparecer
nem um pouquinho de pele.
Ainda com o barro e
as penas cobrindo o seu corpo, recebeu de toda a tribo muitos presentes.
Alguns eram para ele
mesmo, os outros deveria entregar na aldeia chamada cidade.
O quê? Isso não! Ele
ainda nem era um índio completo, queria dizer, nem era um índio crescido, nem
era co...cora...corajo... ai! Ele era apenas um índio menino! Ai!
Agora a situação não
parecia nada boa.
O não sabido
aproximava-se dele abrindo um buraco de ... de... de medo! De medo, ora! Quem
disse que índio não sente medo? Medo, sim! Muito medo! Ele não conseguia falar
tamanho o buraco que se abrira em sua garganta e levara para o fundo da alma as
possíveis palavras de: socorro! Como é que um menino índio pede socorro?
Queria correr, queria
deixar a alma vazar o medo pelos olhos do corpo, mas menino índio também sente
a pressão dos índios mais velhos. A aldeia inteira estava ali, olhando para ele
como se pedissem orações ao Grande Pai.
Ah! Queria virar um
Aotus, um bugio qualquer, uma onça, poderia ser uma aranha pequena para
esconder-se atrás de qualquer pedra... coisa séria essa de visitar outra
aldeia. Muito séria! Especialmente em se tratando da tal aldeia chamada cidade!
E ele que estava cheio de planos para durante
a nova lua catar as penas de... penas!
As penas coladas começavam a cair
enquanto o barro secava. Seria um mau sinal? Seria a hora de partir? Queria
mais do que nunca voltar para a sua rede feita de cipós torcidos. Queria sentir
aquela dor de barriga que o fizera ficar quase uma semana aos cuidados das mães
e das avós da tribo. Queria... é! Ele queria, mas os outros índios queriam mais
alto do que ele.
Ouviu a explicação
dos mais velhos: a tribo precisava de
alguém, um índio curumim , forte, para
falar na tal aldeia da cidade das coisas e das histórias dos índios. Ele iria
falar da terra, dos animais, da mata, da água e até dos bichos que ninguém
conseguia ver. Contaria as histórias mais antigas e as mais novas também.
Mostraria como os índios vivem e o que fazem para cuidar um do outro. Diria
algumas orações em língua própria sem fazer traduções, uma vez que cada tribo
tem as suas preces e sabe rezar o que os mais velhos vão ensinando através do
tempo.
Disseram que ele
viajaria de canoa, para muito longe, para ensinar coisas de índio para os
curumins da aldeia cidade. Que iria aprender coisas dos outros curumins para
ensinar quando voltasse. A Mãe Natureza
iria com ele e um pouquinho da Floresta Amazônica estaria nas coisas que ele
sabia.
O espírito da
tribo o acompanharia nas palavras que escolhesse para contar quem era, onde
vivia e o que era mais importante para os índios de sua tribo.
Não esqueceriam
dele. Por muitas luas, enquanto durasse a viagem, estariam guardando o seu
nome e em sua volta, receberia uma
grande festa.
E ele poderia
levar o seu macaquinho, o bugio que comia folhas e catava piolhos?
Sim? Não?
Precisariam
conversar com o Pajé?
E o que o Pajé
pensava sobre isso?
Ele
cuidaria do macaquinho, dormiria pertinho dele, como sempre fazia na aldeia.
Também procuraria na
mata da aldeia cidade as folhas que seu"companheirinho" mais gostava. Conhecia a
importância dos cuidados que teria de manter levando o pequeno bugio junto com
ele. Seriam os mesmos cuidados que precisara manter na aldeia ao adotar o pequeno filhote que perdera a mãe. Bugios precisam de
atenção, especialmente nas circunstâncias que envolviam a história do pequeno
macaquinho. Sabia que animais também sentem fome, frio, de um jeito próprio,
mas sentiam.
Ninguém da aldeia
jamais havia saído da Floresta até então.
Sabiamente o Pajé
opinou dizendo que, se um curumim corajoso precisava falar coisas de índios
para outros curumins, e os homens que cobriam o corpo eram bons de coração,
então faria muito bem ao pequeno guerreiro levar um companheiro de viagem. Verdade que seria por pouco tempo. E ele
confiava na palavra dos outros homens. Queriam o bem da Floresta, queriam o bem
para todos os índios que moravam na Amazônia. Até sabia que nem sempre fora assim.
Seus antepassados contavam coisas não muito boas de outros homens que destruíam a mata, cavavam a terra
procurando ouro, caçavam os animais, derrubavam as grandes árvores e arrastavam
seus troncos para outro lugar.
Estava decidido.
O pequeno bugio comedor de folhas iria conhecer a aldeia dos curumins que cobriam o corpo.
Mais alguns dias, algumas noites , e os homens que apertavam
barrigas e olhavam dentro da boca voltaram para a aldeia.
Outra cerimônia aconteceu. Mas esta era uma
festa bem conhecida. Mandioca, milho, frutas e tabaco _ este último só para os
anciões da tribo _ foram servidos sobre grandes folhas de bananeira. Houve
dança e cantos alegres. O Pajé também fez os seus rituais e a tribo preparou os
últimos presentes a serem levados. O Cacique tomou várias decisões e as
repassou para todos em falas que lembravam as conversas da Avó-de-todos.
O macaquinho ficou algumas horas longe da
aldeia e foi o suficiente para o Cacique questionar o Pajé. Quase voltaram
atrás na decisão. Foi necessário que se reunissem para pensar novamente sobre a
saída do pequeno animal.
A Avó-de-todos disse
que sabia o que estava acontecendo e conversou sozinha com os dois chefes.
Ninguém mais ouviu o que ela disse.
A avó-de-todos era muito poderosa, respeitada
pela sua sabedoria e pelos conhecimentos das coisas da vida. Quando ela
falava, a tribo escutava a voz que vinha
de longe arrastando todos os tempos que
a avó conhecia. As linhas em seu rosto eram linhas de muitas vitórias. As suas
mãos conheciam segredos que seriam passados adiante apenas na hora certa. A Avó-de-todos
era a anciã mais antiga da aldeia.
Mantida a decisão, chegara a hora de deixar a
aldeia. Índio sente medo, mas também gosta de aventuras.
Com as sacolas
atravessadas ao corpo, o curumim guerreiro entrou na canoa que fazia barulho. Era
uma canoa poderosa, talhada na lua certa , depois de todos os cuidados
necessários para encontrar o tronco que a Mãe Natureza tombara na
floresta. Não era qualquer árvore que
poderia oferecer o tronco seco para fazer uma canoa. Pelo contrário! Era
importante que servisse para flutuar sobre as águas do rio, leve e forte ao mesmo tempo. Carregar um
índio sobre as águas demostrava o poder mágico das árvores tombadas. Elas não
morriam. Transformavam-se para continuar o ciclo da natureza servindo de apoio
para as grandes aventuras sobre as águas.
Toda a aldeia
presenciava o embarque.
O macaquinho estava silencioso,
nenhum som saía de sua boca cheia de minúsculos e afiados dentes. E quem o
conhecia sabia o quanto ele conseguia se comunicar aos gritos - característica
comum aos bugios de sua espécie que vivem normalmente em bandos e se valem de
bons gritos para mostrar quem manda, onde estão as fronteiras de seus
territórios, para indicar perigo, para avisar sobre a perda de um filhote entre todas as outras
possibilidades que a linguagem dos bugios permite.
Saltava de um ombro para o outro sem desgrudar
de seu amiguinho. Parecia que os olhos do pequeno bugio haviam aumentado o tamanho.
Olhavam guardando em algum lugar o que viam. A cabeça com pelos rentes mantinha
as orelhas em pé. Orelhas que pouco lembravam
orelhas, mas indicavam que o bugiozinho era sensível ao menor som.
A aventura seria muito longa, mas
a aldeia chamada cidade esperava pelo indiozinho. E os homens que cobriam o
corpo e distribuíam sorrisos, disseram que muitas crianças esperavam pelos
dois. O pequeno guerreiro até esquecera do friozinho que percorria a barriga. Quando
uma aventura muito grande se aproxima, o corpo manifesta alguns sinais que os
curumins aprendem desde muito cedo a interpretar. Alguns são simples, outros
mais complicados de entender e até de aceitar.
Como era mesmo o nome da aldeia
cidade para onde viajava?
Ora, ora, a história do indiozinho
só estava começando e ouvira os homens falando em alguma coisa como... como...
Minas Gerais?
Seria o nome da aldeia?
Seria uma aldeia muito grande?
Ai... aquele friozinho que ele
esquecera presente aumentava de tamanho e força.
Ai... um curumim iria viajar sem
dizer uma única palavra desde o dia da anunciação. Não que ele não quisesse
falar com todos da aldeia alguma coisa
qualquer. Especialmente com sua avó por parte de pai que o criara desde a morte
de seus próprios pais. Mas algo lhe dizia que, se abrisse a boca do corpo, a
alma também abriria as portas dos olhos e essas, essas costumam estar cheias de
água que não pedem licença para saltar mundo afora. E um índio com água no
rosto dá o que falar, especialmente em se tratando de um curumim iniciado,
escolhido pelo pajé para levar o espírito da tribo até à aldeia dos outros homens.
Queria viver a aventura de sair
e voltar e poder contar novas histórias para os curumins que ficavam. Mas
também queria ficar ali, onde conhecia todas as histórias e todas as pessoas
com as quais se acostumara. Esses sentimentos gelavam os seus pés descalços e
nem um pouco acostumados a deixar os limites do lugar onde morava. Era livre,
sim, livre como qualquer curumim de sua idade mas jamais se imaginara deixando
a aldeia para trás.
A avó paterna estava orgulhosa dele. Conversava
com a Avó-de-todos em língua própria, cheia de segredos e mistérios que um dia
queria desvendar. Eram conhecimentos que sabia deveriam chegar com o tempo, com
as rodas de cerimônias, com as festas, com os trabalhos da aldeia, com as
histórias contadas de boca em boca nas noites de lua branca.
Será que a lua da outra aldeia
também falava com as águas do rio? Será que ele poderia caminhar por entre as
árvores procurando as ervas que bem conhecia? Deixariam que ele fosse catar
folhas novas para o seu companheiro e amigo?
Na floresta, sabia onde cada
árvore estava e quando as folhas ofereciam o melhor sumo para alimentar , para
curar, para fazer fogo. Havia folha para todas as necessidades. Não só as
folhas, mas a junção do que se sabia sobre elas era uma ciência a parte,
ensinada para toda a tribo desde sempre.
Os índios dependiam da
floresta, assim como estavam dizendo que agora a floresta chamava por todos os
seus. Isso parecia complicado. Não muito complicado, mas o suficiente para ele
se achar importante na aventura que começava e ao mesmo tempo, temer pelo que poderia significar.
O não sabido poderia ser mais importante e até
mais perigoso do que o já sabido. E nem sempre o não sabido se deixava mostrar.
Então, sua aventura era importante e ao mesmo tempo muito, muito perigosa.
Olhou para a canoa que o esperava.
Seria ela a levá-lo diretamente até a outra
aldeia?
Quanto tempo levariam flutuando sobre as águas do
rio?
Os homens que cobriam o
corpo disseram que canoas maiores
estariam esperando por eles em outro lugar.
Canoas maiores?
Como assim?
Em que lugar da floresta a Mãe Natureza
tombara uma árvore maior do que aquelas que ele conhecia?
Lembrava do dia em que ajudara aos homens
maiores a arrastar o troco quase seco para as margens do rio. O trabalho
conjunto dos homens da tribo facilitara
a viagem pela floresta, mas não deixara de ser difícil, lento e cuidadoso.
Encontrar a árvore tombada, pesquisar seu tronco, contar as luas, e arrastá-la
através da floresta era um grande desafio. Então, canoas maiores deveriam
exigir muitos índios e muitas luas para serem preparadas.
Se canoas maiores
seriam necessárias para carregá-los sobre
a água, significava que essa aldeia
chamada Minas Gerais ficava muito longe.
Por que o Pajé pensara
logo nele? Nem era o curumim mais forte ou mais alto...
Quando crescesse, teria muito para contar, mas
até lá, precisava lembrar que era um curumim iniciando uma grande aventura em
direção a uma aldeia desconhecida.
Outra vez o frio aumentou sua força apertando
a barriga, o peito e a garganta. Parecia medo da noite quando ela engolia toda
a luz do dia. Parecia medo do... do...
Quando percebeu, estava
com os pés tocando o fundo da canoa.
A aldeia inteira estava
ali, olhando e gritando para ele. Os outros homens sorriam e acenavam. Diziam
coisas boas para ele na Língua Mãe. Ainda bem que aprendera cedo a falar a
língua de todos. E ainda melhor que os outros homens também conhecessem a
Língua do Meio. Eles pareciam a vontade dizendo aquelas palavras que faziam
seus ouvidos arrepiarem com os sons diferentes, muito diferentes dos usados
pela tribo. Mas esse não era um problema, já estava acostumado a usar a língua
da tribo e a língua mãe. Essa última servia para quando encontravam outras
tribos que falavam línguas diferentes ou quando os homens que apertavam
barrigas e olhavam dentro da boca visitavam a floresta.
Ele era bom no nheengatu,
também conhecido como nhangatu, inhangatu ou língua
geral da Amazônia.
Ele sabia falar muito
bem, quando falava, diferente dessas últimas horas que calaram sua boca e
acenderam imagens estranhas em sua cabeça. Estava tentando pensar no que veria
e viveria pela frente. Mas pouca coisa saía fora do que já vira. Só conseguia imaginar
canoas enormes cheias de outros homens que
falariam com ele como se fossem antigos conhecidos.
As imagens em sua cabeça mostravam muitos
homens reunidos, mas em um número um pouco menor do que a quantidade de índios
que viviam em sua tribo. Seria assim a tal aldeia chamada cidade?
Para
garantir-se, levava a rede feita de cipós em sua sacola de viagem. Aquela era
uma sacola que lhe fora passada pelo próprio Pajé, mas estava desconfiado que o
Pajé jamais a usara antes. Até onde sabia, ele seria o primeiro índio a sair da
aldeia. E ainda era um curumim. Será que haviam esquecido dessa parte?
Entendera que outros curumins o aguardavam, mas imaginar como seriam esses
curumins com o corpo coberto já era demais para a sua imaginação. Nunca vira um
curumim que não fosse curumim da floresta. Eles seriam meninos iguais aos que
ele conhecia? Iriam gostar dos presentes que levava?
Eram perguntas
demais para o início da viagem e para a boca que permanecia fechada. Apenas o seu
amiguinho dividia com ele esse momento tão especial quando o que é bom e o que
é ruim ou perigoso parecem se misturar e se fica sem saber o que pensar sobre a
situação. Sentira menos do que isso alguns dias atrás, mas nem de longe
imaginava ser possível viver um momento com misturas tão fortes.
A água barrenta do
rio mostrava sua profundidade. Estavam se afastando da margem. E se... e se...
essa aldeia não gostasse dele? Saberia fazer o caminho de volta? Precisava
ficar muito atento e gravar os lugares por onde passariam. Seria uma garantia
para voltar a qualquer momento.
Com esse pensamento
tomando forma, respirou mais fundo e pensou no quanto gostava do lugar onde
vivia. A floresta era densa ao redor da aldeia e o rio oferecia muitos peixes
no período da pesca. Também gostava de
viver procurando novidades mata a
dentro. Gostava de brincar com os outros curumins. Sua vida era muito boa.
Muito boa. Só sentia medo do Trovão e, às vezes, da longa noite escura quando
ela...
Na aldeia Minas
Gerais a noite seria mais escura? Mais longa? E o Trovão? Como seria o Trovão?
A canoa deslizava
por sobre as águas levando um curumim em sua primeira aventura.
Essa história está
só começando!
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