Outras histórias de tropeiro
HISTÓRIAS DE TROPEIROS
MULAS PARA QUE TE QUEREM
O dia começava cedo. Mais cedo do que ainda
não se fazia dia. A escuridão da noite mal se desmanchava quando as mulas
voltavam a ser carregadas. Uma a uma elas recebiam a sua parte de peso e
responsabilidade depois das poucas horas de sono e bom pasto. Ao lombo,
carregavam de tudo um pouco, pois os povoados que extraíam ouro e mais ouro,
eram proibidos pela Coroa de atuar na agricultura e pecuária com medo de
dispersar mão de obra para a mineração. E esses povoados cresciam com a chegada
de homens e mais homens procurando riqueza rápida.
Os tropeiros
dividiam as cargas em rebanhos de sete mulas coordenadas por um responsável que
delas fazia seu centro de atenção. Naqueles tempos, as mulas eram de capital
importância. Nenhum outo animal dava conta de transportar tanto peso pelos
caminhos entrecruzados por perigos verdadeiros e imaginários. Esses últimos,
longe de serem provados reais ou não, passavam de boca em boca deixando os
tropeiros mais atentos e ansiosos. Além dos rios que precisavam ser
atravessados, havia as mulas-sem-cabeça, os ... bem!, existiam todos os tipos
de perigos, gostassem disso ou não.
Enfileiradas em grupos, as mulas, animais
resultantes do cruzamento entre o burro e a égua, ou do cruzamento da besta com
o cavalo, e que eram buscadas por tropeiros na região que hoje se chama Rio
Grande do Sul, esperavam o comado para seguir viagem. Era fato conhecido entre
os tropeiros que mula resistente tinha de vir de lá, da na ponta do país, mesmo
que para isso fechassem os olhos para a entrada ilegal desses animais no Brasil.
Montevidéu era o lugar de origem das melhores mulas, as mais resistentes, pelas
quais se ofereciam o melhor preço ao serem vendidas adiante.
Por caminhos
já abertos pelos índios, ou por rotas que eram desbravadas a muitas descidas de
machados, o rebanho seguia sua parceria com os tropeiros bem informados. O ouro
precisava ser transportado, os povoados precisavam de mantimentos, e não havia
surgido ainda no Brasil as famosas estradas de ferro. Onde hoje se denomina
Estado de Minas Gerais, os pequenos povoados tornavam-se conhecidos pela extração
do ouro e das pedras preciosas, motivando o aumento de grupos de tropeiros.
Organizados, os tropeiros estudavam as viagens estabelecendo rotas e lugares
para descanso em pousos que consistiam de madeira fincada no chão tendo palha
seca por cobertura. Mas nem sempre o traçado conseguia ser cumprido à risca.
Muitas e muitas vezes, eram obrigados a montar acampamento em campo aberto.
Para tal, contavam com o ligal, uma espécie de lona feita de couro de boi, que
armavam para dormir embaixo, junto com as mulas e as mercadorias. Não havia tropeiro que não mantivesse na
comitiva saudáveis matilhas de cães para montarem guarda. O melhor e mais leal
amigo do homem já naquela época merecia a alcunha. Guardava os seus sem cobrar
troca de favores. A lealdade era mercadoria sem preço. Melhor creditá-la aos
cães, atentos e poderosos vigias. Fosse o perigo real ou não, davam eles sinal
a qualquer aproximação.
Não foram poucas as vezes
que homens e animais defenderam-se na união sem distinção. Chuvas torrenciais,
desmoronamentos, rios caudalosos, picadas estreitas encimando abismos
assombrosos, mulas-sem-cabeça e outros perigos incontáveis só poderiam ser
vencidos na matemática em que todos contavam com todos. Era esse o pendor da
viagem. Tropeiros não dispunham de outros meios senão aqueles que mereciam pela
natureza do risco que corriam. De empreitada em empreitada, a sabedoria
ampliava horizontes, ditava regras, abria espaço para ser passada de boca em
boca assegurando a preservação de outras comitivas e seus rebanhos carregados
de ouro ou mercadorias. Foi assim que se instalaram entre os tropeiros as
regras básicas de gastronomia: comiam para sobreviver, comiam para vencer o
cansaço, o frio, as doenças que surgiam pelo caminho. O café da manhã era passado
sem que o pó preto e forte fosse coado e obrigatoriamente era seguido por um
gole de cachaça pura. Dessa forma acreditavam eles, fortaleciam o corpo e a
alma, necessários os dois para levar a contento o que se buscava alcançar nas
viagens pelo interior do Brasil.
Por dias, semanas, meses
até, os tropeiros viajavam abrindo rotas e desenhando caminhos que seriam
percorridos por outros e mais outros tropeiros, todos engajados no trabalho de
fazer chegar as mercadorias e o ouro extraídos das minas. Cada qual com o seu
ponto, cresciam as viagens e as necessidades dos povoados motivando os homens
de coragem a aventurarem-se por lugares inóspitos.
Tornara-se lei entre
esses homens de negócio que o uso de muita, muita gordura na comida garantia a
vitalidade da comitiva. Carregavam comidas secas, de longa validade, como a
carne-seca, o torresmo, o toucinho, o feijão, a farinha de milho, de mandioca e
a já conhecida paçoca.
A interação da tropa
era outra garantia para o sucesso da viagem. O que estava à frente do caminho
por força do destino ou da Mão Criador era desconhecido, mas nada poderia ser
pior do que conviver com o inimigo e dele depender em casos de perigo. Todos
por todos era a lei dos tropeiros do Brasil. Esses homens que abriam com a história
pessoal os caminhos para a história de todos nós.
Comentários
Postar um comentário