NOTÍCIA RUIM TEM PERNAS LONGAS - outras histórias de tropeiros
NOTÍCIA RUIM TEM PERNAS
LONGAS
_ Não, cumpadre. Notícia
ruim voa!
_ Que voa, o quê!? Tô
carregano ela aqui comigo, sô!
_ Então...
_ Intão que vai ademorá prá chegá!
_ Tamo perto, cumpadre.
Tamo perto!
Florindo não se conformava
em carregar aquela notícia paga para ser dita com todas as letras. Onde já se
viu um homem não escrever uma carta a contento?
_ O homi não sabe
escrever, Florindo!
_ Pobrema dele! Que se
arresorvesse! Que se arresorvesse!
Para os tropeiros que
atravessavam o país, além das mercadorias que carregavam, cabia levar as
notícias boas, as notícias ruins e aqueles comunicados que ninguém gostava de
passar adiante. Era a morte de um parente, era o desfazimento de um contrato,
era a perda de um documento, ou até pedido de casamento. Carta que fosse boa
era entregue aberta, na confiança do tropeiro. Florindo mantinha a cara
amarrada expressando sua má vontade em ser portador de tão amargurante missiva.
Dizer assim, de cara pronta para uma dama o que fora pago para dizer? Onde já
se vira algo igual? Era o fim dos tempos, era o sinal do dilúvio que vinha para
lavar a terra, era o tal do apoclap... apocal...
_ Não é o apocalipse, Florindo.
É só um bilhete falado. Coisa dos tempos modernos!
_ Biete? Que biete? É mais
uma descaração, isso sim!
_ E por que você aceitou,
homem? Dissesse não!
_ Tropero num tem essas arregalia. Tem
serviço tem de fazê!
_ Então, não reclame
Florindo. Não reclame.
Florindo não gostou do rumo
da prosa. Seu coração lhe dizia que aquele seria o seu pior trabalho. Nunca
antes, em tantos anos de viagem atravessando mato e terra de ninguém fora
incumbido de entregar tal notícia. Não estava certo. Remoía dentro de si as
palavras memorizadas e se negava a aceitar o conteúdo delas. Essa tal
modernidade estava afetando a cabeça dos homens de bem. Quando poderia imaginar
ter de cumprir com algo tão... tão...
Com o trabalho de levantar a
ligal, pois a chuva pegara a comitiva em lugar descampado e perigoso, Florindo
embrenhou-se no trabalho que exigia força, mas não desfez a testa enrugada e
nem quebrou o silêncio para dentro do qual entrara. Era um homem de meia idade,
já vira muita coisa acontecendo no mundo, muita falta de vergonha na cara,
muita maldade. Mas aquilo ali era demais até para ele, homem curtido pela vida
de andanças e negócios de um lado a outro do país.
Passou a noite imaginando uma
forma de passar a notícia sem provocar o que sabia inevitável. Pela primeira
vez queria não chegar. Que a chuva atrasasse a tropa até alguma coisa acontecer
e ele não ser obrigado a cumprir com a tarefa de mensageiro. Pensando assim, o
compadre Diodécio tinha razão: notícia ruim voava nas asas do corvo.
_ Por que do corvo, Florindo?
_ E ocê consegui imaginá um
animar pelhor? Consegui?
_ É, por aí, você tem razão!
_ Mas num quiria tê!
_ O quê?
_ Razão, cumpadre Diodécio.
Razão! Num queria di tê razão!
Mas a chuva parou e o caminho
como que se abriu para a tropa chegar ao destino. Com a tropa, chegava a
notícia que Florindo carregara com tanto pesar. Precisava encontrar uma
determinada pessoa. Precisava entregar a mensagem tal qual a recebera. Palavra
por palavra. Dito como dito.
No estabelecimento de pouso
resolveu tomar um banho do jeito que só tropeiro sabia fazer. Mudou a roupa
surrada por todas as idas e vindas e até barbeou os ralos pelos grisalhos que
lhe cobriam parte do rosto. A ruga que atravessava a testa parecia ter nascido
com ele e aprofundado o sulco que cavara muitas e muitas vezes durante a
viagem. Era a temperança de um homem justo diante de notícia tão descabida.
Com a informação sobre o
paradeiro do destinatário da mensagem, Florindo parou diante de uma pequena
casa que possivelmente um dia tivera sido branca. À porta carcomida bateu e esperou.
Alcançou-o barulho de tamancos que batiam conta a madeira do chão. Esperar
multiplicava o desconforto dos últimos dias. O suor descia por seu rosto e
deixava o pescoço mergulhado em umidade pegajosa. Estava perdido. Teria de
dizer tudo tal e qual fora incumbido de dizer, pois o som se aproximava da
porta e ele não era homem de fugir das obrigações.
Por detrás da madeira que se
afastava do batente fazendo gemer as velhas dobradiças, o par de olhos mais
luminosos que jamais vira sorria para ele.
_ Sim?
_ É! É... eu procuro a Dona
Moça... chamada... chamada... A Dona Moça chamada Matilda.
_ Sou eu mesma!
Florindo sentiu que o chão
cavava a sua sepultura sem abrir cova no tamanho certo. Sentiu que a terra
engolia-o sem dó. A vida estava sendo cruel por demais. Deixaria de ser
tropeiro, deixaria de ser entregador de notícias, deixaria...
_ Posso ajudar, moço?
Ajudar? E ela ainda queria
ajudar? Estava terrivelmente pálido, vacilante, ao ponto de ser convidado a
sentar na primeira cadeira que se mostrava no cômodo da casa.
Recebeu um copo com água
fresca que bebeu de um gole só. A água bateu no estômago e avisou que iria
voltar pelo mesmo caminho. Tropeiro era um homem cuja coragem se fazia pelos
caminhos que enfrentava. Sabia disso. Mas não fora preparado para isso.
Com a água fazendo poço na
garganta ardida pela ansiedade, Florindo pediu desculpas em frases que mais
lembravam um gemido de homem em agonia de morte.
A moça Matilda não cabia em
si de preocupação. Aquele homem viria a falecer em sua casa. Mais um não, mais
um não! Já iniciava uma oração de pedido quando Florindo recuperou parte da voz
e da lucidez:
_ Do... dona... moça Matilda.
Eu lhe trago uma notícia.
_ Pois, sim?
_ Na verdade, é uma mensagem!
_ Sim? Pode dizer!
_ É... eu preciso dizer tal
qual me foi passado.
_ Estou ouvindo!
_ É... a mensagem é:...
_ Pois, sim? O senhor pode
dizer! Estou preparada!
_ Está?
_ Infelizmente, estou! Só
tenho recebido notícias tristes.
_ Então! É... sinto muito,
dona moça!
_ Não se avexe... pode dizer
tal qual.
_ É, tal qual...
_ Sim, tal qual! Pode falar.
_ Tá! Certo! A mensagem é de
Olívio. Tal qual me foi dito...
_ De Olívio?
_ Sim, dona moça. De Olívio!
_ Ai! Jesus! Não pode ser!
Ele sabia! Sabia que
carregava uma tragédia em palavras durante dias e noites. Dias e noites que
preferia estar atravessando a pior de todas as picadas levando às próprias
costas a carga das mulas vindas do sul. Não seria capaz de dizer o que fora
pago para entregar. Não seria!
_ Seu moço, por favor! Me
diga tal qual lhe mandaram dizer.
De um só golpe de ar fez a
úvula saltar para fora da caixa de ressonância vibrando em um único tom a
maldita mensagem.
_ Tal qual Olívio manda
dizer: NÃO QUERO MAIS CASAR-ME COM VOSMICÊ PRUQUÊ POR OUTRA ME TOMEI DE AMORES.
A dona moça Matilda não
expressou reação qualquer. Florindo entendeu que a dor fora tamanha que a
deixara incapaz de até mesmo de chorar, de gritar, de desmaiar.
A moça apenas sentara na
outra cadeira que fazia par com a cadeira em que sentara Florindo.
Com uma serenidade estranha,
muito estranha para a situação verbalizou:
_ Notícia ruim tem pernas
longas! Olívio, noivo de minha irmã, ainda não recebeu a notícia da morte dela.
Florindo saiu da casa
jurando mudar de profissão. A cada dia ficava mais difícil ser tropeiro nesse
Brasil de Deus!
Comentários
Postar um comentário