História de Tropeiros IV


TROPEIRO DE BESTAS
 BESTA  NÃO É

                  _ Precisamos passar este rebanho antes do anoitecer.
                  _ Impossíver, ainda tamo longe do rio.
                  _ Vamos apressar o passo!
                  _ Se apertá mais, as mula arria.
                  _ Essas mulas são de primeira linha. Chegaram ontem de Montevidéu.
                  _ E eu num sei?
                  _ Então!?
                  _ Intão que elas pode de tê vindo de Montevidéu, mas continuam seno mula, sô!
                  _ Arre! Não podemos pegar os fiscais pelo caminho.
                  _ Cortemo eles, uai!
                  _ O quê? Cortar os fiscais?
                  _ O caminho, sô! O caminho!
                  Não era fácil desviar dos fiscais da Coroa que além de cobrar pedágio, muitas vezes confiscavam os melhores animais em nome do rei.
                  _ Vamos adiantar o passo e ponto final!
                  _ O ponto finar ainda num chegô, tá longe! Mas se vosmecê diz, tá dito!
                  Naquele dia, a comitiva de João Ararides conseguiu passar sem maiores perdas, tanto pelo posto desviado quanto pela correnteza do rio que ajudara sem saber. Obra da lua certamente. O quarto minguante parecia não revoltar as águas sobre o longo leito. Mas não se deveriam brincar com a sorte. Transportar aquele rebanho de mulas atravessando o país era um risco que não sem tamanho nem garantias. Com certeza venderiam todas elas para os tropeiros que levavam o ouro até o litoral. E precisava chegar cedo, antes das chuvas atrasarem o percurso e fazerem os lucros desmoronarem.
                        No primeiro pouso, depois da janta farta, os tropeiros costumavam gastar horas conversando e trocando informações. Da conversa mais séria até os ditos desnecessários, todos conversavam. Era uma forma de se manterem unidos e com todas as informações transmitidas entre todos.
                        Se a viagem já era difícil mesmo contando com a sorte, aquela noite anunciava alguma coisa por vir.
                        _ S'ingana quem pensa qui lua minguante num traiz sombração.
                        _ Ô! Lá vem ele outra vez com suas histórias de lobisomem.
                        _ Lobisomi não, qui eu nunca vi e num sô homi de mintiras. Tô falano de otras cosas.
                        _ Que outras coisas, Gervásio?
                        _ Coisas qui só homi munto macho podi de dá conta!
                        Mesmo que rissem do companheiro, não o faziam de cara lavada, porque tropeiro que se preza respeita o conhecimento alheio. E aquele ali tinha lá as suas ciências que ninguém era burro para não reconhecer o quanto o homem era sabido de sabedoria natural. Gervásio conhecia muitas ervas e juntando-as mais a aguardente que carregavam já curara muito tropeiro avariado. E lá alguém deixava de olhar para ele com respeito? Mas esses assuntos assim, de coisas de outro mundo não eram exatamente assuntos sem provocação. De um jeito ou de outro fazia parte da conversa "mangar" do outro que puxara o assunto, ou a assombração.
                        _ Num podi puxá sombração! Homi nenhum podi puxá cosa ruim prá perto du beiçu.
                        _ Ô, Gervásio, ninguém aqui tá com vontade de beijar a mula, o lobisome, ou...
                        _ Ô?
                        _ Ou o quê, homem?
                        _ Ô quem mais vosmicê ia chamá?
                        _ Sai prá lá Gervásio, que eu não tô chamando ninguém! Ô!
                         _ Prá módiquê eu ovi...
                         _ Você não ouviu nada! Nada! Nada! Fala aí do seu lobisomem...
                         _ Lobisomi num tem dono, sô! Ele é dono dos homi...
                         A conversa foi longe. Entre um toucinho e mais alguns goles de cachaça, os tropeiros vararam a noite entre o descanso e a vigília.
                         Poucos souberam do que aconteceu ou se deixara de acontecer. Mas ainda hoje contam a boca solta que a matilha de cães que acompanhava a comitiva, durante a parte mais escura da noite, soltou-se das amarras e enveredou mata adentro uivando sem parar. Alguns tropeiros mais afoitos tentaram segui-la, mas temeram perder-se por onde nem a luz das tochas acesas conseguia alumiar.
                         Assustado e não querendo deixar o medo do inexplicável tomar conta da comitiva, João Ararides queria dar o caso por encerrado. Mas Gervásio foi taxativo:
                         _ Tropero di besta num é besta, sô! Quem quisé que acriditi!
                         Sábias palavras, Gervásio! Sábias palavras!














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