PRÊMIO OURO pela ACIMA/Milão/Itália



                           CONTO:  A MORTE PESA

                            Brenúlio era um homem de gestos largos. Bom de conversa, apesar de manter as palavras trancafiadas para além do muito abaixo de sua garganta.. Nascera menino franzino e tomara corpo pelas rezas das tias envolvidas com os filhos das outras. Vivia de fazer um pouco de qualquer coisa que aparecesse diante dos que não gostavam de fazer coisa qualquer. Limpava, carregava. Tratava animais de grande porte, sua especialidade. Não pegava touros pelas guampas, mas lustrava as guampas de todos os touros que pisavam as arenas dos grandes rodeios. E era bom no embelezar cavalos de raça, o que valia alguns apelidos jocosos. Que não se imaginasse esse “embonecador” de garanhões com pouca presença. Era um bruto homem de mais de 1,90cm de ossos, carne e gordura firme. Fazia amizade fácil, um dos primeiros a convidarem para as festas de casamento, batizados, velórios, primeira comunhão. Chegava na hora e não excedia o tempo de ficar. Morava na casa herdada da mãe, lugar certo para quem precisasse de favor ou de coisa plantada na esmerada horta.  Uma companheira? Não faltavam interessadas, mas Brenúlio parecia não investir nessa direção. Tal comportamento causara estranheza, mas como todas as coisas se adaptam e todos os acontecimentos com o tempo caem no esquecimento...
                             Nos quarenta e cinco anos que dedicara a fazer de tudo um pouco e um pouco de tudo, sua principal função era colocar-se ao largo das alças dos caixões funerários. Conhecia o voluntário ofício. As urnas de madeira, molhadas pelas lágrimas dos que ficavam, seguiam o trajeto natural da vida e do vilarejo. Era costume que o morto percorresse os lugares pelos quais em vida mostrara preferência. Bares, casas de amigos, praças, ruas de conversas soltas, casas de... dependia dos amigos deixar o corpo "defuntado" aproximar-se um tiquinho que fosse das “casas das moças”, de modo a não ofender a viúva pranteadora. Era lei a presença do grande e silencioso vizinho que não aguardava ordem para iniciar o cortejo. Brenúlio caminhava na cadência de quem vai medindo, contando cada pedra do caminho. E metáforas aproximadas pelo conjunto das horas, se alguém visse o suor escorrendo por suas costas nem se dava ao trabalho de comentar. Brenúlio suava em cascatas, daquelas que deixam a água seguir seu curso à revelia de qualquer impedimento. Águas que descem da testa de um homem carregam bênçãos. Não reclamava e parecia ter gosto em acompanhar os amigos à última morada. Permanecia longo tempo sentado ao pé do túmulo do recém-enterrado. Comentavam de sua misericórdia pela alma do defunto. Imaginavam intermináveis conversas entre o que ficara e o que partira. As cogitações derivadas da atitude de Brenúlio deitavam lenha nas fogueiras quase apagadas.
                       _ Homem piedoso! Por que você não se mostra para ele, Alma?
                       _ Mostro, mãe! Ele não vê!
                       _ Se você não fizer alguma coisa, a filha da dona Otília vai passar na sua frente.
                       _ Ora...
                       _ Sei das coisas! Reparei em como ela deixou cair a coroa lá no cemitério!
                      _ E foi?
                      _ Foi! Deixou cair e juntou do chão com muito custo e demora!
                      _ Safada!
                      _ Esperta, minha filha. Esperta!
                      _ Não carreguei coroa...
                        Brenúlio não dera mostras de ver a coroa de lírios ir ao chão nem os movimentos gordos de intenções da moça a sua frente.
                       As costas de Brenúlio apresentavam uma leve curvatura.
                      _ Prova de sua honradez!
                      _ Como assim?
                      _ Homem que tem as costas empenadas carrega muita responsabilidade, muito juízo.
                      _ Acho feio!
                      _ Feio? Feio é uma moça de sua idade estar ainda dentro de casa arriando as tetas!
                      _ Mãe!?
                      _ E não tenho razão? Encurte a alça de sua combinação que logo não vai dar para esconder a idade dos seus...
                       _ Mãe!
                      _ Ora! Vai falar das costas de um homem bom como aquele? Esqueceu que ele levou quase sozinho o caixão de seu pai, o vigarista?
                      _ É, ele tem compaixão!
                      _ Trate de mostrar que você existe! Ou vai querer que sua velha mãe lhe ensine como fazer?
                       Brenúlio foi convocado para “embonecar” os garanhões que se apresentariam em um famoso rodeio. Pelos, patas, chifres, crinas, rabos e orelhas exigiram dele o melhor que sabia fazer por mais de uma semana. Ao contrário de outras ocasiões em que tal empreitada o deixava sorridente, estranhava-se um quê de silêncio maior, sombrio, no quase vaqueiro maquiador. A sisudez de Brenúlio culminou com o seu sumiço. Uma mulher na casa do rapaz a tirar-lhe o fôlego? Ele merecia viver o que é bom na vida!
                       _ Não! Tanta moça passando da hora aqui na vila...
                       _ É homem...
                       _ É homem, mas tem as suas obrigações!
                        Inflamaram-se a tal ponto as mães das moças "passadas" que conseguiram ver a dita que ganhara o coração e o resto dos órgãos de Brenúlio.
                      _ É ruiva, cheia nas ancas.
                      _ Boa parideira...
                       _ Deve ter ciúme das moças direitas e está a garantir-se dentro de casa.
                       Lá pelo quinto dia do sumiço de Brenúlio, uma comissão de senhoras devotas do bom comportamento enveredou em direção à casa do moço.
                       Listaram todo o tipo de comentários que fariam ao bater à porta e darem de cara com a ruiva assanhada.
                       _ Deve ser moça da cidade!
                       _ Moça da vida!
                       _ Tantas moças direitas aqui esperando por ele...   
                        Bateram até a preocupação destituída de egoísmo fazê-las dar a volta na casa. Engoliram todas as palavras. No centro da horta de gordos e polpudos tomates, acelgas, repolhos e outras hortaliças, abria-se uma cova profunda e bem feita. Ao lado, uma pá, em pé, amparava um cartaz escrito à mão:
                       PEÇO AOS AMIGOS E AOS INIMIGOS SE HOUVER QUE ME CUBRAM COM A TERRA SEPARADA. DEIXO UM BILHETE ENTRE AS MÃOS QUE EU MESMO CRUZEI.
                       Alguém desceu sobre o caixão de madeira colocado singularmente na terra aberta e resgatou o bilhete das mãos do defunto Brenúlio. Entrecruzadas, prontas para o adeus, envoltas no terço que fora da mãe guardavam um pequeno bilhete. Um papel foi retirado do caixão sem flores. Para os presentes leu-se a frase final:
                         A MORTE PESA!




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