TÍTULO: UMA RAZÃO PARA PROMOVER A LEITURA
SUBTÍTULO: Nesta casa não há livros nem para remédio
Os
sons da casa acordando chegavam até mim com a nitidez das ações que os
provocavam. Eu sabia quem acordava bem, quem não queria acordar, quem amassava
o colchão de palhas, quem resmungava entredentes na segunda chamada.
Éramos três irmãos, além de mim, se é que eu poderia ser contado como um
membro da família. A casa era pequena e muito fria. O vento entrava pelos
espaços mal cobertos pela madeira escassa. Atravessando o velho telhado eu
ouvia um mundo se abrindo em todas as direções que cabiam dentro de minha
imaginação escurecida pela falta de imagens.
Morávamos em um lugar que eu nunca vira, mas sabia ser frio, muito frio
e distante de outros lugares. Quando eu era levado para fora pelo meu irmão
mais velho, sentia vontade de me fundir ao vento e ir com ele, solto, livre,
leve, sem o corpo que nascera imóvel e sem luz. Mas eu ouvia bem, muito mais do
que qualquer um de minha casa. Ouvia as reclamações de meu pai sobre o tempo
que gastavam para cuidar de mim, o soluço sufocado de minha mãe que nada dizia
e a voz de meu irmão menor falando enquanto corria. Era ele que eu esperava
junto com o vento frio. Era dele que vinha aquela vontade de erguer a cabeça
para mostrar minha felicidade, meu contentamento que explodia em um som feio e
rouco. Meu irmão não reclamava, sabia que eu estava rindo pela felicidade que
se aproximava. Ele ria junto até me dizer que tinha mais tempo para ficar
comigo, pois adiantara todas as tarefas de casa e da escola. Ah! A escola, palavra
mágica que fazia percorrer um raio de satisfação por dentro de meu corpo
inerte. Eu sabia tudo sobre a escola, sobre a professora, sobre os colegas de
meu irmão, sobre o que aprendiam, e eu aprendia depois. Eu aprendia. Meu irmão
sabia que eu queria mais, então trazia tudo para mim. Eu sentia que ele vibrava
contando as lições e repassando os pontos que imaginava eu pudesse ficar
dúvidas tantas vezes quanto pensava ser necessário. Muitas foram as
interrupções que fiz com um grunhido mais ou menos rouco para ele continuar. E
ele continuava até chegar ao que eu esperava quase sem respirar. Meu irmão lia
para mim. Ele lia o mesmo livro, o único que tínhamos em casa, há muito tempo.
Eu conhecia cada som que vinha das palavras que entravam em mim e faziam o
mundo explodir e se movimentar. Todas as repetições eram novas, eram esperadas
como o único momento de minha vida que valia ouvir tão bem.
Eu ouvia, mergulhado
na voz de meu irmão e no mundo que nascia como que por encantamento. Eu via
cores sem nome, coisas que não veria, corria junto com as minhas pernas
enrijecidas, agitava os braços para acompanhar todo aquele mundo de pessoas que
sabiam fazer coisas diferentes, mas tão conhecidas. E eu pensava ser possível
viver apenas dentro daqueles momentos, quando tudo adquiria vida e se movia sem
pedir ajuda.
Meu irmão lia para mim
e eu existia. Então eu existia. Eu nascera para aqueles momentos e os esperava
com ânsia faminta e descontrolada. Eu era feliz dentro daquelas ondas de
palavras que me levavam junto. Elas entravam por todos os orifícios de meu
corpo e caminhavam donas de mim, donas de meu mundo, donas de meus olhos
apagados, senhoras de minha alma e de meu destino. Meu destino era ir sem
reclamar, era soltar-me sobre o corpo da primeira que chegava e desejar que
eternidade fosse feita só de palavras, palavras vivas e quentes.
Quando chegava a hora
de eu voltar para o meu quarto, para a cama que prenderia meu corpo mais uma
vez, as palavras escondiam-se em minha cabeça torta e por trás de meus olhos
secos eu as percebia procurando lugares para passarem a noite. Eu queria
sempre, sempre continuar a ouvir a leitura que meu irmão fazia. Mas ele era
necessário em outros lugares, com tarefas que exigiam suas mãos e suas pernas
fortes. Ele tinha dez anos, e eu lembrava a hora exata em que o ouvira chegando
à minha vida e mudando a escuridão de lugar.
As palavras que dormiam
comigo beliscavam minhas pálpebras exigindo que eu ficasse o máximo de tempo
acordado. Nessas horas, sem que ninguém da casa percebesse, meu irmãozinho
pulava para a minha cama e lia, lia, lia até sua boca secar. Eu amava meu irmão
e ficava quieto ouvindo sua respiração cheia de sono de criança. Quando isso
acontecia, pela manhã, ele era o primeiro a acordar e me prometer ler mais
assim que voltasse da escola.
Então eu esperava
para existir naquela festa de sons expulsos pela boca de meu irmão. Eu esperava
para existir junto com ele, naquela hora em que a vida assumia as formas que eu
imaginava e tocava sem medo e sem dor.
Em uma manhã que
parecia carregada por sons mais pesados e úmidos, eu ouvi meu pai dizer que
todos teriam que trabalhar mais e melhor se desejassem ter onde morar. E ouvi
meu irmão menor dizendo que levantaria mais cedo para fazer a sua parte, pois
queria continuar lendo para mim depois da escola.
_ Lendo? Lendo o
quê, se nessa casa não existe livro nem para remédio?
_ Eu leio para ele
"Memórias de um cabo de vassoura", de Orígenes Lessa.
_ Eu nunca vi esse
livro por aqui.
_ Eu leio na escola,
todos os dias e deixo as páginas dentro de minha cabeça para trazer para ele.
Então eu existi duas
vezes, três vezes... descobri a eternidade cheia de palavras quentes.
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