PARTE I DIÁRIO DE UMA MULHER QUE NÃO QUER TRAIR


PARTE I


DIÁRIO DE UMA MULHER QUE NÃO QUER TRAIR

   Confissões Esfarrapadas



PRIMEIRO DIA DAS ANOTAÇÕES:


      Convencendo a mim mesma sobre a necessidade de um diário


                                             Se resolvi escrever resolvi resolver. Pelo menos é o que penso. Ou é o que desejo acreditar.
                                             Parece fácil olhando de fora. Está difícil enxergar por dentro de mim mesma. Não que eu tenha dificuldade em desenhar os contornos de meus incômodos. Facilmente descrevo o que afeta essa outra eu que mora do meu lado de dentro. Incomoda-me o fato de encontrar tantos incômodos.
                                              São lugares que ficam bloqueados, esperando um resumo racional que preencha ou justifique o ponto interrompido.
                                               Não gosto de reclamar. Gosto de entender. Em entendendo basta-me a compreensão atingida, mesmo que dela eu desgoste.
                                                Casei comigo mesma antes de casar com o homem que amo. Fiz uma escolha clara pela vida a dois uma vez que eu já vivia muito bem comigo mesma.
                                                 Acreditava ser a fórmula básica para dar certo. Eu o amo, ele me ama, nós nos amamos e podemos juntar esse amor em um espaço comum.
                                                  Espaço esse que me parecia ser apenas uma extensão do que acontecia em termos de sentimentos. Se existe amor, o resto vem pela força da relação.
                                                  Obviamente eu não conhecia essa força, “... essa força estranha / no ar...” (Caetano Veloso escreveu e Roberto Carlos cantou). Mas enquanto o Rei cantava sobre o tempo, o vento o sol, eu precisava escrever sobre o que deixava de ser no tempo, no momento, na vez.
                                                   “A vida é amiga da arte...”, diz outro pedaço da letra de Caetano. A força estava em algum lugar que para mim ficava para além da arte da vida. Eu precisava encontrar a força da relação que abrigava o sentimento no qual eu apostara.
                                                    Decidir escrever parecia com decidir correr para perder peso. E eu estava precisando perder muitas dezenas de peso. Dizem os especialistas que além da boa alimentação há de se mover, mover, mover s-a-u-d-a-v-e-l-m-e-n-t-e. Não sei das garantias, mas como me alimento bem, falta correr mais. Então, convenço-me a escrever com a intenção de perder o peso que pesa dentro e fora de mim.
                                                        
PRIMEIRO DIA DE INCÔMODO

                                                            Há vinte e um dias moramos na mesma casa. Casados. Com direito a véu, grinalda e flor na lapela do paletó. O álbum das fotografias ainda não chegou e nem todos os presentes foram abertos.
                                                             Hoje é um dia como outro qualquer e eu sabia que pelo trabalho extenuante de contar o dinheiro dos outros o dia inteiro (meu marido trabalha em uma instituição bancária), ao chegar em casa ele precisaria desabafar. Coisas corriqueiras: falar da incompetência dos colegas, da falta de qualificação do chefe, da intransigência dos clientes, ou de qualquer desses pequenos “acidentes de trabalho” que afetam a vida dos mortais trabalhadores. Eu ouvia sem muitas intervenções, dando espaço para que a “limpeza” do dia dele chegasse ao fim.
                                                    Falar faz bem, claro!
                                                    Não sei!
                                                    Ele falou muito hoje, quase demais, para a pouca compreensão que eu tenho sobre o assunto. E por demais eu quero dizer em tamanho, volume e tempo. Assei uma carne ao forno, gratinei batatas, lavei legumes... Jantamos, comemos enquanto eu ouvia e ele falava.
                                                    E ele falou...
                                                    Falou de todos os colegas sem exceção. Ninguém escapou aos comentários de desagrado de meu marido.
                                                    Ouvi repetidas vezes e compartilhei de seu julgamento em silêncio: “ninguém queria nada com nada! São todos incompetentes. Mal amados. Cornudos. A fulana, eu tenho certeza, está dando o... para o... e dando lá dentro mesmo, em horário de expediente. Não sei onde, mas que está dando para ele, está”.
                                               Sim. Talvez fosse verdade. Mas não estava me fazendo bem ao estômago comentarmos sobre o assunto. Afinal, se alguém dava alguma coisa para alguém não era e nem deveria ser assunto dos que estavam de fora.
                                                _ E aquele imbecil do.... Puta merda! O cara é uma porra! Não faz e não deixa os outros fazerem. O cara nasceu "podre”
                                                _ Sabe o fulano... hoje ele me disse que faria o que eu pedi. Faria sim, "na medida do possível!" Pode? O que ele come? Desculpas? É isso que ele come? Eu não quero explicações, quero resultado. Não se explica o que deu certo. Para que explicar? Para que falar? Conversa não enche a barriga de ninguém.

                                                Depois de bem mais de 90 minutos em que eu o ouvia, desconfiei que ele não me via,  não sabia que eu estava ali tentando interagir com olhares diretos para os seus olhos, sua boca, suas mãos que subiam mostrando raiva e desagrado.
                                               O medo bateu em forma de sentimentos de menos valia. Senti desconforto em não fazer parte daquele momento. Para quem ele falava? Qual era o lugar de tantas palavras ditas de modo tão agressivo?
                                                Meu marido conseguia falar e engolir, falar e beber o vinho que dizia gostar.
                                                Senti frio. Mas não quis interromper aquelas falas, poderiam ser importantes para ele. Aumentei o gole de vinho. Ele não percebeu a minha taça vazia.
                                              Eu estava invisível aos olhos de meu marido. Movimento imperceptível para a instalação do primeiro incômodo, um quê sem sentido, uma vez que me esmerava tanto em estar ali, tentando sentir o que ele sentia, ver o que ele via, compreender o que ele dizia.
                                                Eu e as paredes brancas cumpríamos com a mesma função: estar em silêncio enquanto ele falava para si mesmo. Falava de tudo e de todos.
                                                Falava!
                                                Não estava c-o-n-v-e-r-s-a-n-d-o comigo. Apesar de meu esforço em apresentar comentários que poderiam instalar um diálogo.
                                                 Bom, talvez fosse obra do cansaço! Sim, ou não, era uma questão de escolha improvável. Escolhi não escolher e ouvi várias vezes tudo outra vez até o meu marido adormecer, entre as cobertas brancas de nossa enorme cama.
                                                 Da cozinha para a cama, o que grudou em nós foi aquele monólogo recheado por palavrões e descontentamento. Minha cabeça no travesseiro teimava em rodar em círculos emocionais que mais pareciam um gargalo de uma garrafa vazia a puxar-me para dentro, para dentro, para dentro do vazio de um bojo frio, sem fundo, sem fim.
                                                Aproximei-me do peito de meu marido que dormia a sono solto, queria  encostar em seu corpo para sair fora daquele gargalo apertado. O contato com sua pele não me deu o alívio que procurava. Temendo acordá-lo, voltei para o travesseiro e o bojo da garrafa vazia.
                                                  
 CONTINUA...

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