PRIMEIRA ANTOLOGIA ALAB




                    CONTO: AMOR SEM VOLTA                           
                                                                                                    
            Conhecia o caminho que a levava para fora da pequena vila. Madrugada ainda buscava a brisa que se esgueirava por entra as árvores altas. Frio. Talvez um anúncio do inverno próximo. O som da natureza levantando os olhos para o céu acalmava os passos apressados. Caminhar sozinha pelo maior tempo possível até não despertar atenção. Passar despercebida, ficar entregue aos pensamentos que floresciam voluptuosamente. Pernas esticadas quase à frente dos pés, cabelos em desalinho, pequeno agasalho sobre os ombros entorpecidos pela noite insone. No bolso um cigarro que nunca acendia. Não gostava de fumar. Gostava de se imaginar fumando, em largas e másculas tragadas que subiam rente ao nariz afilado. Com o calcanhar desnudo pisava a grama ou qualquer erva que encontrasse para só depois descer a planta do pé na terra úmida. As folhas provocavam-lhe um formigamento rápido e profundo, enquanto a terra que escondia pedras e pedregulhos ofertava-lhe pequenas dores novamente aliviadas pela próxima planta. Amarelinha. Pulava amarelinha sem o equilíbrio estético da brincadeira infantil. Já se iam anos sem que qualquer brincadeira lhe fizesse gosto. Caminhar era o começo e o fim de algumas horas de consciência. Plantas e pedras. Um bálsamo, várias recordações. Um quilômetro, dois, três. A brisa diminuía o fôlego, devia voltar. Pesavam os pés negando o retorno, pedindo mais espaço, gemendo por liberdade. Voltar era uma ordem cumprida à risca e em tempo. O caminho chamava para mais longe, mais longe, mais longe. Não era mulher de quebrar a rotina. Se fosse...
            Na casa de madeira que em nada indicava suas moradoras, ela entrava sem lavar os pés. Batia-os na soleira da porta para anunciar que o dia começava.
            Três mulheres moravam ali. Três gerações em um espaço pequeno, corroído pelo tempo e pelas amarguras que têm a singular capacidade de entranharem-se em madeiras e ferros marcados à mão. Os pés descalços raspavam as tábuas alinhadas em forma de assoalho. Gemiam diante do fogão aceso e atiçado com carvão fresco. Só o carvão lembrava frescor naquele lugar. Era um lugar, apenas um depósito de dores e abandono sem nada que lembrasse o universo feminino das três gerações. O carvão espalhava seu cheiro e a fumaça passeava pelos corredores emudecidos. Um, dois, três, quatro quartos e uma porta fechada. Em uma mesa abancava-se a mais velha, e ali permanecia pelo tempo que o dia lhe abençoasse com os olhos abertos. Olhos com mais de oitenta anos, só viam lembranças, nada mais. A segunda mais velha sentava de frente para a porta, olhando o caminho aberto em duas vias que passavam lambendo a casa no primeiro degrau da escada carcomida. Era um caminho de ir e voltar. Ela esperava, não voltava ninguém. Fora-se o marido. Ficara a filha descalça e estranha. No fogão erguido com tijolos e barro, as panelas coziam receitas amargas. Os pés saudosos respiravam com dificuldade sobre as tábuas desgastadas. Sua avó lembrava, sua mãe esperava e ela, ela se resignava com a estultice de seus sentimentos.
            Se ela fosse uma mulher de coragem...
           O calor do fogo e os pés sem proteção misturavam sentidos e sentimentos. As labaredas enroscavam-se nas bordas do carvão levantando as imagens que tentava abandonar. Em vão. Em vão.
           Se pelo menos a porta abrisse mais uma vez! Ela poderia tentar chegar até aqueles lábios trêmulos, surpresos, assustados.
           A água na chaleira empretecida lembrava-lhe o banho interrompido. O medo de não ser correspondida. A bacia esmaltada cheia de espuma e a toalha que desfalecera até o chão. A pele doce, o cabelo macio.
            As vias do caminho à frente da casa não se abririam trazendo de volta o amor de seu primo. Fora-se, impelido pelo desejo de ficar para sempre, para sempre, para sempre.
            Se ela fosse uma mulher de coragem tomaria a via de ida sem olhar para trás.
            Os sons das lembranças debatiam-se em cadências desvairadas.
           Três mulheres, quatro histórias, um amor sem volta.
            Amanheceria outra vez! Os pés descalços lamberiam a saudade da noite vazia.

            Amanheceria...

Comentários

Postagens mais visitadas