PRÊMIO FNLIJ 2013
CONTO FICCIONAL
PRÊMIO NACIONAL PELA FUNDAÇÃO NACIONAL DO LIVRO INFANTIL E JUVENIL - 2013
PRÊMIO NACIONAL PELA FUNDAÇÃO NACIONAL DO LIVRO INFANTIL E JUVENIL - 2013
TÍTULO: EU SEI QUEM
ESCREVEU…
A folha amarrotada colava-se em mim pelo lado
de dentro da camisa. Quanto mais perto melhor. Sentia cada verso entrar pele
adentro até instalar-se em meu coração. Ainda ouvia a cadência da última voz
que os lera duvidando de meu pedido:
"A estória é minha mas o passarinho e o
peixinho
não são meus..."
Morar nas ruas daquela cidade que
abraçava tantos mundos não apagava o desejo de estar em outro lugar. Queria entrar
no espaço das palavras que guardava e me deixar levar pelo vento que as
trouxera. A solidão das ruas não tem a bênção do silêncio, mas tem milagres que
acontecem quando a gente fecha os olhos.
Fazia mais de um ano. A
senhora parada em frente ao chafariz desligado não tinha uma moeda para me
alcançar. Junto com o sorriso que me ofereceu, entregou-me a folha que
carregava. Dobrada em dois, a folha de caderno com linhas duplas continha
letras coloridas. Devolvi. Não sabia ler. A escola era a ilusão de um lugar que
não fora feito para mim. Um vento forte soprou a folha para longe dela e para
mais perto de meus pés. Juntei contrafeito achando que poderia parecer um gesto
furtivo, daqueles que às vezes a gente usava para malandrar algum trocado. Ao
estender-lhe a folha de caderno em devolução os olhos dela tornaram-se líquidos
e demoraram-se dentro dos meus. Antes que minhas costas bloqueassem aquela
visão, ouvi sua voz dizer a primeira linha:
"A estória é minha mas o passarinho e o
peixinho
não são meus..."
O chafariz estava seco
desde o último inverno. Os peixes vermelhos haviam morrido pelo excesso de lixo
deixado na borda de pedra. Não era disso que ela falava. Ninguém que eu
conhecesse na rua tinha peixe ou passarinho. Era nosso o que se via de longe, muito
longe, quando o perto estava do outro lado do mundo que nos cercava.
Ela lia.
Aquela senhora lia para
mim com tal encantamento e força que me paralisei estupefato. Nunca antes, nos
dez anos de vida, pude sentir tamanha emoção.
"Até
que é fácil possuí-los. Basta um aquário e uma gaiola..."
Abriu-se um oásis em
meu peito. Uma onda de calor tomou conta de minhas pernas e braços e sentei ali
mesmo. No chão, o melhor lugar do mundo naquele momento. As palavras chegavam envoltas
em diversas cores e cheiros, tamanhos e formas. Eu não sabia ler. Eu sabia
ouvir e ouvindo chorei. Chorei pelos peixinhos vermelhos e pelos pássaros da
praça que via descerem em busca de migalhas. Chorei porque a voz daquela senhora
vinha trazida pelo vento que me abraçava carregando lembranças de um menino que
não era eu. Chorei em silêncio para não abafar a voz que lia:
"Mas não me importa tê-los na mão. Aprendo a
me
satisfazer pelos olhos, assim como os pássaros
e peixes
que
não têm mãos. "
Poderia ser eu. As
palavras tinham um pouco do que era meu, do que ninguém sabia que eu
trancafiava no fundo da parte de trás de meus olhos sempre abertos.
Minhas mãos vazias
encheram-se de alegria. Agigantaram-se tocando as nuvens, o sol, as estrelas,
as camas com lençol limpo, as mesas postas, o colo de uma mãe com nome e
endereço, o pão que saía da padaria marcando a hora do café da manhã.
Fazia mais de um ano que
eu encontrara aquela senhora olhando para o chafariz vazio. Há mais de um ano
eu carregava junto a mim o papel dobrado com as letras coloridas a lápis de
cor. E entre todas as vozes que repetiam os versos, a dela era a que ficava
ecoando dentro de mim como se percorresse meu sangue.
Memorizara todas as frases, todos os versos
que embalaram o milagre junto ao chafariz. Ainda assim, era diferente quando
alguém lia para mim. Era sempre novo e diferente.
Pelas ruas da cidade
que me adotara como filho de ninguém, eu não mais pedia um trocado. Pedia uma
leitura. E tal pedido causava tanta estranheza que muitos fugiam com a certeza
de se tratar de mais uma estratégia de malandragem. Menino de rua em cidade
grande vira malandro antes de crescer, se lhe derem tempo para isso. Eu queria
tempo. Queria tempo para aprender a ler. Queria tempo para descobrir quem
escrevera aqueles versos.
"Lê para mim?" Era um pergunta
simples, mas negava-se diante do quadro que eu fazia: magro, feio, exalando o
abandono de meu corpo desengonçado. "Lê para mim?", pediam meus olhos
antes de minha boca abrir-se para soltar a súplica: "Lê para mim?",
"Lê para mim?"...
Quando convencia
alguém, minhas mãos tocavam o céu. O mesmo céu e as mesmas palavras chegavam
novas; molhavam com leite morno o forro de minha alma. Nem gaiola, nem passarinhos atrás das grades,
nem aquário de vidro, nem peixinhos vermelhos no chafariz. Nada se manifestava
mais forte e encantador do que o som das palavras lidas embalando-me com as
riquezas do mundo.
Milagres acontecem
diante de olhos fechados e mãos vazias.
"Quer ler
comigo?"
Os meninos de rua que
são filhos de ninguém devem ser amados pela natureza, pois às vezes ela vem até
eles e abre sorrisos que engolem o tempo.
"Quer ler esses
versos junto comigo? Eu sei quem os escreveu. Era um lindo menino e se
chamava... Bartolomeu! Bartolomeu Campos Queiroz. Leia comigo!"
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