1º Parte
A menina e os animais
A menina e os animais
Ivane Laurete Perotti
Dedicatória: "Aos sensíveis, pelas
lições de indignação"
"À Isabela Cardoso,
uma fada inteligente e criativa, doce e amorosa, linda... linda... linda..."
_
Peguei!!!
_ Solta
esse gato,...
_
Peguei!!!
_
Solta!!! Ele está fedido...
_ É um
gatinho...
_ Está sujo!
_ É tão
novinho...
_ Deve
estar doente, cheio de pulgas!
_ É tão
lindinho!!!
_ Que nojo! Ele
fez cocô!!!Eca!!!
_ Ele
está com fome... tão sozinho!!!
_ Eca!!!
Você não tem nojo dele?
_...
_ Solta!
Solta logo!
_ Não!
Ele precisa de carinho...
_ Ai! Que
eca! Isso é nojento.
_ Não sei
o que é “isso”... “esse” é um gatinho e o nome dele é BEL.
_ Bel? É
nome de menina!
_ “Ele” é
uma menina!
_ E... como você sabe?
__...
_ V...
voc... você olhou nas... nas “coisinhas” dele???
_ Quer
ver? Olha...
_
Nãoooooooo!!! Eu não quero olhar a bun... as coisi... a... a... EU NÃO QUERO
OLHAR ESSE GATO!!!
__... Gata!
_ Você
deveria soltar esse gato-gata logo! Já! Suas mãos devem estar sujas... e...
além disso, você parece...
_ Olha! Olha
só! Lá tem mais gatinhos... veja só! São muitos!!!
_ Jesusinho!!!
Mais coisinhas fedidas!
_ Não são
lindos?
_ Não!
_ Será que a
mamãe deles morreu? Ou se perdeu? Vamos lev...
_ Não e não e
não!!!
_ Mas...
_ E não
também!
_ Eu nem...
_ Não!!!
Nem sempre os
“nãos” significavam
não para Vi! Foi mais
ou menos assim que ela foi descobrindo o discutível e vulnerável valor das
palavras. Especialmente as que se dirigiam a situações envolvendo bichinhos sem
dono!
Alguns parentes
mais próximos acreditavam que no futuro todo o poder de argumentação da menina
deveria ser dirigido a questões mais interessantes.
_ Ela será uma
excelente advogada!
_ Advogada é pouco! Ela
poderá ser uma excelente juíza...
_ Advogado fala
mais!
_ Você é quem
pensa! Os juízes...
Sem precisar, mas indicando o que todos
pensavam, impressionava a qualquer um o poder de convencimento de Vi.
Em se tratando de
animais e assuntos de suas necessidades, ficava difícil não ceder às palavras
que brotavam dos sentimentos dela, dos olhos dela, das mãos dela que desenhavam
frases inteiras e cheias de exclamações. Isso quando não apareciam as famosas
lágrimas de desespero, última fase estruturada
pelo temor de perder a
petição:
_ Ele pode ficar
aqui em casa?
_...
_ Posso ficar com
ele só por alguns dias?
_...
_ Diz que sim...
vai?!
Haja palavras,
mãos e olhares pidões
para tantos
sentimentos!
_ Eu não tenho
olhar pidão!
_ Tem sim!
_ Eu nem sei o
que é isso, vovô!
_ Tem a ver com o
que a gente sente e entende olhando para esses seus olhos de “faz o que estou
pedindo”.
_ Ah! Então você vai
deixar o Gambi ficar aqui?
_ Gam...?
_ Ele não parece um
gambazinho?
__...
_ Olha o pelo
dele...
_...
_ O rabinho dele...
_...
_ As orelhinhas...
_ O “fedorzinho”!...
_ Ele precisa de um
banho, vovô!
_ Com certeza. Mas,
gatos não gostam de água! Ou... gostam?
Alguns acreditam que
o prazer pela pesquisa tenha começado por aí. As conversas com Vi nunca foram
muito lineares. E seu avô, particularmente, colaborava para isso. Além de
ajudá-la nas “campanhas” de adoção, quando grandes
cartazes eram
elaborados pelos dois com frases e fotografias dos bichinhos órfãos,
participava ativamente da construção de suas primeiras leituras de mundo.
Nem sempre as
campanhas davam conta da “demanda” de órfãos em estado de adoção e era aí que
começava outra grande batalha.
_ Tem lugar para
ele, sim!
_ Mais um? Não!!!
_ Mas ele é tão
pequenininho, nem vai ocupar muito espaço!
_ Já temos um
zoológico com superpopulação aqui em casa. Definitivamente ,
não!
_ Mas...
_ Não!
A batalha mudava de
cenário sem alterar a razão da disputa.
_ Vovô?!
_ Sim, minha neta. Ele
pode ficar aqui por enquanto!
Se era o poder das lágrimas
salgadas ou o pedido desesperado implicado no vocativo, ou o fato de o avô de
Vi também gostar de animais, ou ainda algo nunca dito por ele, interessava a
ela tão somente que mais um orfãozinho tivesse uma família.
E sim, era assim que ela
pensava: os animais adotados adotavam as famílias e passavam a cuidar delas por
todo tempo em que estivessem vivos.
Muitas vezes, esse
argumento inusitado estimulava as pessoas a acreditarem que Vi pensava demais
para a idade que tinha.
_ Essa menina está
parecendo o avô...
_ Está amadurecendo
cedo demais!
_ Ela não pode
consertar o mundo... vai sofrer sem necessidade!
_...
A voz do avô se
sobressaía clara e firme:
_ Pensar não dói! É um
exercício de inteligência e sentimentos agrupados na mesma situação.
Ai!!! Ela realmente
saíra ao avô, que também pensava e que só não sabia ainda que gostava de
animais, especialmente desses assim... assim...
_ Eles estão sujinhos
por que moram na rua, papai!
_ Tá! Mas você não irá resolver
o problema recolhendo todos os bichos que encontrar na rua, não é?
_ Eu sei disso!
_ Então!, tem de
achar uma solução!
_ Essa solução está
crescendo comigo, papai! Mas enquanto isso, eu preciso fazer o que aparece!
_ Ô!!! Não é bem
assim, Vi. Nem sempre você pode resolver tudo o que aparece. Ou pelo menos, não
desse jeito: carregando o problema consigo!
_ Papai, eles não
são “o problema” e eu só preciso “carregá-los” porque alguém não os levou
junto.
_ Ô!!!...
_ Pense bem: eles
foram abandonados. Você faria isso comigo?
_ Espere aí, é muito
diferente!
_ Diferente como?
_ Você é minha
filha! Eu sou responsável por você...
_ Alguém também deve
ser responsável por eles, papai.
_ Mas, eles são
bichos!
_ Animais, papai!
Animais!
_... animais!!!
Como em todas as
tribos familiares sempre existem aqueles que fazem prognósticos baseados em
fatos repetitivos, alguém sugeriu que Vi desenvolvesse um sentimento excessivo
de posse, ou de medo de perder, ou de excesso de controle, ou de... qualquer
outra coisa que gerasse lá na frente, muito lá na frente, um problema maior.
Quase decidiram que era hora de Vi parar de se envolver com o que estava fora
de seu controle.
Quase! Pois, a sábia
intervenção do avô permitiu que a menina desse espaço aos seus sentimentos de
cuidadora.
_ Tudo isso é muito
bom! Minha neta está expressando sua sensibilidade pelo mundo.
_ É... mas pode gerar um
problema lá na frente.
_ Lá na frente é
muito longe, e só se resolve um problema quando ele aparece. Se aparecer...
_ É, mas você poderia
colaborar.
_ Tem razão! Vou colaborar
sim, vou aumentar o tamanho dessa área coberta para abrigar mais alguns órfãos.
Não só o espaço
físico abrigava as ideias de Vi e as irmãs dela; bem menores, elas iam pelo
mesmo caminho. O que naturalmente triplicava a preocupação daqueles que se
sentiam impotentes diante das certezas da menina.
Vi, acostumada com
as intervenções alheias, preparava um sorriso colorido pela compaixão e deixava
passar qualquer desejo de defender-se.
As defesas estavam
prontas para aqueles que verdadeiramente necessitavam de suas palavras.
Para que gastá-las?
Os princípios de economia passados pelo pai começavam a fazer sentido. Ou
melhor, tudo fazia sentido quando se sabia pensar.
Um acontecimento
não muito comum tornou-se lenda na família, até entre aqueles que nunca
conheceram Vi pessoalmente.
No retorno de uma viagem, o
pai trouxera na bagagem uma pele de marta. Belíssima...
_ Morta?
_ É claro! Você
queria que seu pai trouxesse um animal vivo dentro da mala?
_ Morta? Morta?
Quem a matou, papai?
_ Sei lá! Eu só
comprei a pele e...
_...
_ Vai ficar muito
bem no sofá da sala!
_ Mas ela está morta!
_ Sim, Vi, a
marta está morta. A marta morreu!
_ Não morreu,
não! Ela “foi” morta!
_ Sim, mas agora
está morta!
_...
_ Essa é só a
pele dela!
Durante semanas e
semanas não se falou em outra coisa. Nem mesmo com todos os esforços
linguísticos e estilísticos do pai, a pele de marta foi para o lugar destinado.
O sofá da sala continuaria vazio.
Mas para Vi,
aquela pele simbolizava outra preocupação, literalmente expressa em letras
enormes diante do avô filósofo.
_ Vô Toni,
onde está a marta?
_ Explique-me
sua pergunta, minha linda!
_ Eu quero
saber onde está a marta!
_ Bem..., a
pele dela está aqui.
_ Disso eu sei! Eu quero
saber onde “ela “estᔓ!
_ Bem!, talvez
fosse melhor nós dividirmos a sua pergunta.
_ Não entendi.
Só quero saber onde ela está!
_ A pele dela
está aqui!
_ Eu sei! Eu
sei!
_ A outra parte,
a parte mais importante, deve estar em um lugar muito especial, que foi
preparado para receber as martas.
_ Hummm!!!
_ Entendeu?
_ Não sei! Eu
acho que você não está me explicando nada... mas ainda quero saber: a marta
morreu e o papai está
com a pele dela lá em casa. Como posso ficar bem?
_...
_ Eu quero saber
onde ela está! Não vou parar de perguntar até você me responder.
_ Os animais
voltam para o mesmo lugar de onde vieram.
_ Ah! Vô Toni,
você está tentando me enrolar.
_ Não é
exatamente isso, acontece que é mais difícil de explicar do que acreditar.
_ Mas eu sou
inteligente, posso entender.
_ É!!!, você
pensa! Então, entenderá!
__...
_ Bem, ou mal, a
marta não está mais aqui.
_ Disso eu sei. Mas
“onde” ela está?
_ Não sei,
exatamente!
_ Ah! Vô... eu
preciso saber.
_ A parte dela que
você conhece...
_... a pele que o papai trouxe!
_ Isso! Essa pele é
como uma espécie de roupa para a marta, e eu acredito que o mesmo acontece para
com todos os outros animais.
_ Tá... estou
pensando.
_ Ela, a marta, de
um modo ou de outro, não precisou mais da pele.
_ Não!? Então... ela
ainda pode estar viva! Com outra pele!?
_ Com outra pele,
sim. Mas, viva... do jeitinho que você está pensando, não!!!
_ Viu!? Eu disse
que...
_ A marta morreu! Ou
melhor, foi usar outra pele.
_ Mas... está
complicando! Quantas peles ela tem?
_ Uma!
_ Vô Toni, eu não estou
brincando!
_ Nem eu, minha neta.
Nem eu! Mas está difícil de explicar!
_ Então, tenta! Quantas
peles a marta tem?
_ Eu acredito que todos
os animais têm uma pele para andar por aqui e outra, não tão visível assim,
para andar pelo lugar de onde vieram.
_ Hum!!! Você quer dizer
que ela voltou para o lugar de onde veio.
_ Isso! Mais ou menos
isso!
_ Vô! Isso ou mais ou
menos isso! Uma coisa ou outra!
_ Minha linda, um pouquinho
de cada coisa!
_ Continua!
_ A pele da marta que está
lá na sua casa não é mais exatamente “da marta”...
_ De quem é, então?!
_ “Foi” da marta!
_ É... mataram ela e ficou a pele!
Pobrezinha!
_ Hum!Hum! Mas a marta, a
marta animalzinho, já não precisa mais daquela pele.
Comentários
Postar um comentário