Em uma CIDADE com NOME de SANTO - parte 4
Pedro rompeu todos os muros e
erigiu o primeiro templo para o perdão.
Há quem diga que perdoar a si
mesmo é tão impossível quanto apagar o passado. Mas os bebês nascem sábios e
prontos. Não temem o que já foi dito nem se atêm ao passado que passou.
Os bebês vivem na
impecabilidade do agora que é. E então é! Ou são! _ sãos? ()..
Pedro não foi embora. Marcou
as cenas e ficou.
Colos enriquecidos pelo calor
de suas fraldas adentraram na sala para todos os gostos. E cheiros e cores e
sabores. Era a sala dEla.
Paramentada como rezam os
manuais das melhores casas, comandava do alto de sua esguia altura – Ela era
muito alta! – um pequeno exército.
Brancos como a neve que reluz
ao sol, enluvados até o pescoço, revezavam-se entre panelas ainda mais
brilhantes e fumegantes.
A impressão que se tinha era de
um espaço criado entre o Céu e a Terra, coroado por inúmeros arcos de névoa
úmida.
Apenas o rosto dEla ficava
visível embaixo da touca branca.
E do rosto via-se o sorriso tranquilo
e nada mais.
Nenhuma palavra saiu daqueles
lábios.
Nenhum comando foi ouvido
durante a inesquecível experiência.
Não era possível enxergar o
conteúdo em cozimento, mas os pais já não tinham qualquer necessidade de ver
para crer.
Acionadas pelo olfato e pela
memória, as glândulas salivares davam conta de produzir a certeza dos que
duvidam.
Água na boca não faltou:
lambe beiço, engole saliva, esfrega o nariz, mastiga as lembranças.
Ai! A casa de todas as tias e
avós em domingo de festa, de Páscoa e Natal, em dia de aniversário, de chuva, de
inverno, em qualquer dia para se chegar.
Ai! Que cheiro doce, grosso,
encorpado, cheiro de caldo de canela, de ambrosia, de coco na panela.
Ai! Que cheiro de mandioquinha
amassada com cravo e leite em pó.
Ai! Que cheiro de lambe-dedo
saído quentinho do forno a lenha e regado a mel, ou molho de abricó.
Tudo se passou como era para ser.
Colheres de pau para cada um, pequenas
provas na palma da mão, mais um pouco pode ser?
Está no ponto, quero mais. Lambe este que eu conheço, provou? Quero
também.
Mãos ávidas e lambuzadas dançavam
em contagiante alegria.
Sem comando nem coreografia
executavam o balé do contentamento, da infância bem vivida em rodas de família,
dos alegres sábados de Aleluia, dos dias de folia.
Não ouviram as gargalhadas soltas
e os comentários sem freios, mas saídos de suas próprias gargantas escreviam
uma ode ao dia.
Com os potes embaixo do braço, ou
apertados contra o peito, esquecidos de onde estavam foram para onde desejavam
estar: das portas abertas, das janelas escancaradas, dos porões assaltados, dos
sótãos revirados jorravam em cascatas abruptas os antigos sonhos.
Reprimidos e esmagados durante
anos e anos de silêncio aniquilador, avolumavam-se vestidos ou despidos, nus ou
crus, vivos ou mortos para fora do arcabouço.
As paredes desceram uma a
uma e com os cheiros grudados em cada fio de cabelo, os pais demoraram a
perceber que estavam diante de um conhecido lugar.
A sala era pequena.
O quadro ainda era verde.
Inúmeras cartolinas coloridas
por letras monumentais emplacavam as paredes.
Janelas grandes e luminosas
davam para um pátio singular.
Pequenas cadeiras
acompanhavam mesinhas dispostas de três em três.
Liam-se os nomes com letra
caprichada no espaldar de cada uma: J..., B..., G..., A..., M..., E..., V...,
H..., N..., L..., R... (...) O nome de todos estava lá.
Será que ainda conseguiriam
sentar?
E o tapete com as almofadas? E
os brinquedos no aparador?
Era giz colorido na caixinha,
letrinhas recortadas em paspatu, fotos no quadro das flores, nomes com
estrelinhas brilhantes... tudo estava no mesmo lugar.
Como a “adultice” já ficara
para trás, o assento das pequeninas cadeiras serviu a contento.
Sentados, ouviram a alegre voz
“da que tudo sabe”.
Parecia uma menina.
Mas era a própria: olhos de
jabuticaba, rosto ponto para os beijos melados, beleza de princesa em conto de
verdade verdadeira.
Carregava as surpresas de todos
os dias e ainda fabricava as que estavam por vir.
Armazenava letras e palavras
em rodas de criatividade, embaralhava cartas de sentido literal, pregava
cartazes de apoio às inclusões, participava da O.A.B. (Ordem de Amparo ao Bem)
e ainda sobrava espaço para ser “tia” sem ter qualquer sobrinho à vista.
Amava e era amada pelos
pequenos e nem tão pequenos assim.
Poucos sabiam, mas “a que
tudo sabe” conhecia a linguagem dos sinais. Suas mãos abençoadas subiam ao céu
e desciam ao coração tecendo silenciosos textos por entre os dedos delicados.
Alguém poderia não
amá-la?
Fazia história na história de cada um.
Era peça fundamental nas
iniciações simbólicas, semânticas, lógico-abstratas, linguísticas e lúdicas da
primeira fase escolar. Já alcançara o status de mito.
E outra vez e mais outra e tantas
outras, competentemente, cumpriu com sua função.
Motivados pela revisitação,
os pequenos “adultosos” ouviram a própria voz.
Reidentificaram-se em
espelhos pendurados no nariz alheio.
Ressignificaram episódios
marcados no tempo passado e presente e olharam sem medo para o movimento
processual das relações entre pais e filhos.
A compreensão parece ter um pé
calçado na quietude. Pois foi o silêncio o discurso mais eloquente.
Um a um, recolheram as estrelas
na parede, regaram as flores dos cartazes, recolocaram as pequenas cadeiras e
em fila desfileirada beijaram a professora.
Do lado de fora,
aveludados braços os aguardavam.
E pendurados aos
pescoços de todos os tamanhos foi que reencontraram o caminho para casa.
De longe, as janelas
estendiam ao “sol que dava as caras” suas coloridas colchas-de-retalhos; as cadeiras-de-balanço
ensaiavam o velho rangido, os porta-retratos sacudiam o amarelado do tempo, as
caixas de fotografias dispensavam suas tampas, o coreto da pracinha esperava os
primeiros enamorados.
Ninguém falou. Todos
entenderam.
Quando a noite
chegou encontrou mesas abundantemente servidas. Cobertas pela cumplicidade e
pela compreensão amparavam cálices de perdão sereno, doces recheados com boas
recordações, salgados à moda de cada um, licores de todas as fases, vinhos
envelhecidos em boa companhia.
Recolhidos entre as
cobertas lembraram-se de seus respectivos potes.
Em nenhuma das
casas, até hoje, qualquer tampa foi encontrada. E os potes de diferentes cores
e tamanhos permanecem na pequena cidadezinha, guardados abertos, em local
fresco e arejado.
Aos poucos
descrentes que acorrem à procura de provas do que se passou, oferecem uma
cadeira de balanço, e a prosa de um avô.
Idas e Fridos
contam sobre um lugar que ficou distante dali.
De volta ao meu
banquinho de madeira de demolição, vi a caixinha de giz bentinho-da-silva
fechada em minhas mãos.
Ainda não saíra da história
do menino perguntador, mas as minhas canelas estavam aquecidas por aquilo que
não pudera chamar de final.
Por entre as
portas entreabertas tive a impressão de ver uma mulher alta e esguia.
Senti cheiro
de... doce de... doce de... doce amarelo, cozido em boas horas de fogão.
Não resisti.
Nariz de
perdigueiro, nariz de farejamento, nariz de cheiramento!
Mas as
palavras estragaram meu olfato.
Compreensivamente, o “fazedor” alcançou-me um pote de vidro.
Disse-me que eu
mesma poderia abri-lo, quando assim o desejasse.
Havia sido um
presente dEla.
Dela?
Pelas agulhas de
minha avó, poderia conversar com Ela?
Hum!?Hum!?
Poderia
conhecê-la?
Um sorriso foi a
resposta.
Imediatamente
senti que pedira demais.
Agarrada aos
princípios básicos da boa educação não insisti.
Como lenitivo,
embriaguei-me com os cheiros que invadiam a oficina.
Com o pote e a
caixinha na mão, tive ajuda para entender que eu estava na terra dos sinos, na
cidade “real” com nome de santo, onde o Padre Magro religiosamente abençoava
giz colorido em todos os 06 de janeiro, cumprindo com a tradição religiosa.
E as três letrinhas
que também apareciam inscritas em algumas portas eram as iniciais dos nomes dos
Três (...). Ora! Para que servem as reticências?
Era ela outra vez.
Saía pela porta da
frente.
Sei que vi algo
amarelo e alongado sendo carregado em seus braços.
Seria possível!? Eu juro que
vi uma...
Seria?
Mas...
Parecia...
parecia... uma...
E a história
continua!
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