BICHO CARPINTEIRO parte II
A REVOLTA DAS CADEIRAS ANDANTES entrou para a história da escola. E Pedrinho foi eleito o diretor mirim por vários anos consecutivos. Alçado à liderança por um simples ato de mediar o óbvio:
_ O s.r. Diretor poderia deixar as crianças interessadas usarem as cadeiras andantes uma vez a cada quinze dias no finalzinho, beeeemmmm! no finalzinho do horário da merenda! Que tal?
Tal dito, tal feito. Política de negociação indireta.
_ Direta! Ele conseguiu o que queria.
_ Nem era ele que queria alguma coisa. Na casa dele ele usa a cadeira quando quer.
_ Na hora das refeições. Só na hora das refeições.
Tantas vezes quantas se fariam necessárias as forma de comportamento educacional dos pais de Pedrinho estariam na boca dos interessados e interesseiros.
_ Essa “coisa” de discutir a vida dos outros é já outro negócio.
_ É negócio mesmo! Tem gente ganhando dinheiro em cima disso.
_ Não entendi.
_ Você nunca ouviu falar em “estudo de casos”?
_ Não!
_ Pois é, um monte de doutor se junta para discutir um caso de alguém. Aí dizem que estão estudando um “caso”.
_ I é?
_ É!
_ Pensei que fosse “causo”...
_ Não! Nada a ver. “Causo” é quando estudam literatura.
_ Onde você aprendeu tudo isso?
_ Nos caminhos da vida! Nos caminhos da vida!
_ Você não foi à escola?
Quando os assuntos desembestavam para muito longe do centro, era quase impossível voltar. Voltar ao foco exigia determinação e força de vontade, se é que ambas não querem dizer a mesma coisa.
_ Falar é um exercício involuntário que qualquer ser humano dá conta, até sem perceber.
_ Pensei que fosse andar.
_ Andar é uma opção.
_ Falar também!
_ Então... o menino andador tem razão. Ele anda para pensar, não pensa para andar e fala quando tem vontade.
_ Quem disse?
_ Eu disse, estou fazendo uma conclusão.
_ Pois eu penso que você está fazendo c-o-n-f-u-s-ã-o!
Aceitar uma contrariedade dependia do nível de paciência da pessoa envolvida. E possivelmente, Pedrinho era o que mais se destacava nesse contexto. Acostumado às inúmeras contestações nos seus longos seis anos de idade, a aceitar o inaceitável da parte de quem o estranhava, aprendera a buscar certezas dentro de si mesmo.
_ Estou achando essa conversa madura demais para um menino da sua idade, meu filho.
_ Ué, papai. Foi você que me ensinou a dizer isso.
_ Foi?
_ Foi!
_ Então está certo. Se eu disse, e
é porque está certo.
Não se fazia necessário esconder o orgulho de pai que subia ao peito do genitor de Pedrinho. O menino era realmente muito bom menino. Além de andar, pensar, inventar, falar e mediar situações em nome do bem comum ele aprendia a repetir o seu pai. Muito bom! Muito bom!
No início das férias de inverno, Pedrinho recebeu um convite um tanto quanto diferente. Saído de um daqueles telegramas falados com a presença de palhaço, banda e cachorro de mentira, foi convidado para encabeçar uma passeata pela liberdade de andar...
_ O que é “encabeçar”, papai?
_ Já explico, meu filho, já explico. Deixe seu pai terminar de ler isso daqui.
O pai de Pedro precisou da ajuda da esposa para concluir o que concluiu:
_ É uma afronta!
_ O que é afronta papai?
_ Espere, Pedrinho. Espere!
_ É o fim do mundo, o fim do mundo!
_ Nós vamos morrer, mamãe?
Não teve outro jeito senão explicar de um jeito especial, arredondado, metafórico o que dizia o convite.
_ Sabe o que é, meu filho...
_ É... o inverno está começando muito forte esse ano.
_ Já compramos casacos grossos e várias toucas para você.
_ E luvas grossas.
_ Sim, para você caminhar bem aquecido.
_ Cheio de roupas, roupas quentinhas.
_ Eu gosto do inverno.
_ Nós sabemos, meu filho. Nós sabemos.
_ Então, o convite é para comprarmos mais roupas?
_ Não é bem isso, meu filho.
_ Eu gostei do palhaço, quero caminhar com ele.
_ É, ele é bem palhacinho mesmo.
_ Você deixa?
_ Não!!! Com certeza não!
_ Mas, por que, papai?
_ É que, o palhacinho não gosta de usar roupas de inverno.
_ Então, ele passa frio? Não tem roupas quentes? Ele anda muito para se aquecer?
_ É quase isso.
_ Ele trouxe o convite para mim.
_ Trouxe!
_ Então, papai! Lê para mim.
_ É... não precisa. Nós vamos traduzir para você.
_ Está escrito em outra língua?
_ Não! Não é exatamente isso...
_ Não enrola, papai. O que está escrito?
_ Você não vai e pronto!
_ Não vou aonde?
_ Não vai e é só isso.
_ Mas me conte aonde eu não vou!
_ Eles... o palhacinho e alguns amigos querem fazer uma caminhada pela...
_ Oba! Caminhada?
_ Não é uma caminhada como as que você faz.
_ Não?
_ Não!
_ Eles não usam as pernas?
_ Usam, claro!
_ Acontece que...
_ O que acontece, papai?
_ Eles... eles... não gostam de usar roupas.
_ Não?
_ Não!
_ Mas...
_ Por isso mesmo você não vai, meu filho. Isso é uma afronta!
_ Ah!...
_ Mas eu ando pelado aqui em casa...
_ Em casa pode, meu filho!
_ Pode!
_ Sempre posso fazer uma afronta?
Estava aberto o processo do grande mistério de transferir sentidos pelas palavras através de palavras que significam sentidos a uma criança que conhece um número reduzido de termos para ler o mundo.
Pedrinho não fez esforço para afrontar ninguém. Até mesmo porque gostava demais de usar roupas de inverno, especialmente aquelas coloridas, macias, que o deixavam alguns números maior do que era.
Contudo, o convite serviu de alerta aos pais do menino.
_ Veja no que deu deixar os outros conhecerem o nosso menino.
_ O problema não é esse, mulher.
_ É sim. Se ele estivesse andando só aqui dentro de casa, nada disso estaria acontecendo!
Pais também divergem entre si. Não é tarefa fácil decidir o que é melhor para o filho no período em que o filho ainda não pode decidir. Além disso, criar filhos é uma técnica que se aplica sem manual, exige mais dos pais do que se pode pensar. É comum acertar, errar e acertar errando ao mesmo tempo. Muito difícil. Muito difícil.
Pedrinho, envolvido em coloridas e quentes roupas de inverno, andava pelo bairro distribuindo suas falas de criança. Criança fala por falar, para dizer alguma coisa, para mostrar que existe, para pedir atenção e... lista sem fim.
E mais uma vez precisou ficar esperando na fila de vacinação contra uma tal gripe dos porcos.
_ Gripe suína, meu filho.
_ Não é tudo a mesma coisa?
Era e não era. Mais ou menos como caminhar e andar.
_ Andar e caminhar não são a mesma coisa.
_ Quem disse, Pedrinho?
_ Eu digo! Quer provar?
Por mais que fosse interessante descobrir o que Pedro pensava, poucas crianças estavam dispostas a apostar qualquer coisa com ele.
_ Vamos apostar?
_ ...
_ Vamos? Quem aposta comigo?
_ Eu aposto!
A voz da menininha se fez ouvir entre todas as vozes infantis que disputavam entre si.
Pedrinho gostou da música que entrava em seus ouvidos carregando aquelas duas palavrinhas. Gostou e sorriu em aprovação àquele pedacinho de gente, ainda menor do que ele, vestida com um gorro de lã superior ao tamanho de sua cabeça.
_ Oi! Eu sou o Pedro. Qual o seu nome?
_ Vitória.
Outro motivo para aumentar o sorriso do menino. Gostara do nome e da dona do nome.
_ Você quer apostar comigo?
_ Quero! Eu sei a diferença entre caminhar e andar.
_ Sabe?
Ela sabia. Ela sabia!
_ Sei! Vamos apostar?
_ O que você quer apostar?
_ Se eu ganhar, você para de andar na fila, de um lado para o outro.
Silêncio completo. Silêncio de criança é sempre completo, pesado e cheio de significados. Quem estava na fila ou fora dela queria ouvir a resposta de Pedrinho.
_ Eu aceito. Topo!
Para quem pensava que aquela seria uma frase impossível de se ouvir, Pedrinho a disse sorrindo com os olhos pequenos presos na menininha.
A fila se desfez para o desespero dos pais e dos organizadores. Mas tal desafio não seria diminuído por uma gripe qualquer. Além disso, ninguém saíra exatamente de onde estavam, senão dando pequenos passos para ouvir melhor o que um dizia para o outro.
_ Então, Vitória. Qual é a diferença?
_ Simples. Depende do uso. Andar pode significar bem mais do que caminhar.
_ Você gosta de pensar?
_ Gosto.
_ E de caminhar?
_ Muito!
_ Então, você caminha comigo assim que sairmos daqui?
_ Caminho, depois que você parar de andar na fila...
A risada infantil se fez ouvir para além do quarteirão. Uma genuína risada de criança.
Pedrinho parara quieto pela primeira vez. Ou melhor, deixara as pernas em repouso, pois dentro dele iniciara uma bela caminhada por razões que muitos jamais perceberão que iniciam.
Vitória e Pedrinho caminham todos os dias. Caminham, andam, correm, falam, conversam, pensam e descobrem com os movimentos da idade que existem para descobrir e inventar.
_ Você conhece a minha Nerbie?
_ Não! Não gosto de cadeiras andantes.
_ Não?
_ Não! Eu gosto de sentar para andar com a cabeça, com os meus pensamentos.
Dizem que as duas crianças riram sem parar.
Metáfora da felicidade?
Talvez, paródia de “bicho carpinteiro”.
Talvez!
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