A MENTIRA TEM PERNAS CURTAS


PARTE II


 A língua de Mariana tremera várias vezes naquela tarde.
                         Os sinais concentrados, audíveis, visíveis, diziam sem falar: aproximava-se o momento.
                        A pequena menina suportara até ali sem reclamar. Mas precisava recolocar a língua a serviço de toda a sua vontade de... romancear. 
                      E isso tem a ver com vontade? Tem?
                      Onde está escrito que mentir não é pecado?
                      Está escrito em algum lugar e ninguém contou esse detalhe para a Mariana.
                      Ninguém contou.
                      Esqueceram-se de contar.
                      Esqueceram que o talento da menina estava em algum lugar não visto a olhos nus. Talento quieto quando sai da quietude junta a força de vários furacões. Explode, mesmo que silenciosamente, explode!

                        Era isso! Durante semanas e semanas represara a língua grande e agora... agora era o momento de, lentamente, saborear o efeito de novos romances.
                      Sim! Efeito!
                      A ninguém poderia passar despercebido o foco de profunda entendedora que abria múltiplos suspiros diante dos olhares dos outros.
                      E os sinais da natureza confirmaram o antevisto: Mariana convencera as outras crianças a participarem de sua mentira.


                      Com direito a muitas lágrimas, choro coletivo, gritos de “eles chegaram! eles chegaram!” e debandada para todos os lados (algumas crianças foram encontradas horas depois escondidas embaixo dos bancos da igrejinha central), a praça lembrava um cenário de filme de... terror!
               
                        _ O que está acontecendo?

                        _ Quem chegou?

                        _ Calma, calma!

                       Nada de calma, só a correria desembestada de meninos e meninas histéricos. Quando um era colocado para sentar, em seguida voltava a gritar e espernear.
                       Ouviam gritos e frases desconexas.
                        Foi Dona Otília, com sua sabedoria ancestral que teve a inspiração de fazer Mariana sentar em seu colo:

                        _ Minha filha, se eles chegaram, a gente precisa fazer um lanchinho para recebê-los bem. Você não acha?

                        Aquele par de olhinhos brilhantes vislumbrava mais uma oportunidade de mentira vantajosa. Enfim alguém adulto que sabia fazer parte dos r-o-m-a-n-c-e-s!

                         _ Eu posso ajudar? Só eu sei o que os ETS gostam de comer.

                         _ Claro, minha filha! Claro! Certamente você sabe o que os ETS gostam de comer...

                          Demorou um tempo para que a notícia chegasse até os pais transtornados e fizessem bom uso dela.

                           As crianças pareciam realmente acreditar no que diziam e para qualquer um dos presentes aquela mentira fora longe demais.

                           _ Foi uma brincadeirinha...

                           _ Brincad...

                           _ Coisa de criança...

                           _ Mariana já foi longe demais! Qualquer brincadeira que provoque riscos deixa de ser engraçada...

                           _ ...

                           _ ...não é mais uma brincadeira.

                           _ ...

                           _ Entendeu?


                            Não! Nem todos pensavam da mesma maneira! Nem todos entendiam!
                       As mentiras de Mariana estavam dando o que pensar. E contar.
                      Contar um romance requeria ciência, poder de sedução, garantia de público, manuseio de técnicas linguais, gestuais, corporais... e muita, muita criatividade.
                      Além do ensaio mental que se fazia de antemão já prevendo todo o prazer que adviria da língua solta, “romanceando” fatos que todos, absolutamente todos sabiam ser mentira.
                     Mentira que talvez contivesse uma verdade possível, indireta, escondida.

                      Vai que uma parte fosse verdade. E daí?
                      Daí não teriam dado ouvidos àquela menina de olhar esgazeado, cheia de sentidos e significados em tudo o que contava e... acrescentava.
                       Muita gente costuma costurar verdades em grandes mentiras, ou o contrário.
                      Essa “coisa” de misturar as estações e não mostrar a fronteira de um fato entre outros fatos cria muita confusão.
                     Há até quem diga que toda a verdade não passa de uma grande mentira bem conduzida.
                      Mariana tinha essa capacidade. Parecia falar a verdade, aquela verdade presumida diante dos fatos que o comum das pessoas conhece.
                     Mas algo nas palavras da menina colocava a dúvida onde talvez ela já estivesse, esperando quietinha por uma criança de cinco anos de idade dona de uma língua muito grande e uma coragem para criar ainda maior.
                         Criar sobre o criado.
                         Mariana jamais fizera uso de uma mentira impossível. Jamais contara ter visto um jacaré voando no espaço, com a bicicleta do irmão e usando a jaqueta do secretário do Papai Noel. Nada disso! Muito pelo contrário! Suas mentiras ganhavam o lugar das verdades exatamente pela possibilidade real de serem messssssssssssmo uma verdade.
                         Era assim, fácil, fácil!
                         Aumentar o nada dá em nada. Mas mexer no que todos acreditam dá outra coisa...
                        A menina conseguia arrancar um silêncio sólido dos adultos que a ouvissem.
                        Fosse o assunto que fosse, ela construía os dados da mentira como se brincasse com uma pequena bola em suas mãos. Bola pequenininha bola bem redondinha, que ia crescendo e se movendo de uma mão para a outra sem que de fora alguém pudesse prever os movimentos de comando.


                        Ela jogava bem.
                        Passava jogadas adiante e o escolhido ou a escolhida de um modo ou de outro participava do que ela queria.
                       Todos jogavam ser a menor noção de que o faziam. Ela sabia comandar com os olhos pregados nas reações do público presente.
                        Dias antes de completar cinco anos, Mariana construíra uma mentira tão sólida, mas tão sólida que as pessoas envolvidas tiveram grande dificuldade em acreditar que tudo partira de uma cabecinha daquele tamanho. 
                        É uma imagem comum essa de que para ser inteligente o ser humano precisa carregar uma cabeça com o dobro do tamanho de seu próprio corpo. Pode? Pode! É o que alguns chamam de conhecimento popular (até a ciência provar alguns conhecimentos tão antigos e populares quanto o próprio homem, mas não sei se é o caso do tamanho da cabeça e a correspondência com a inteligência da pessoa. Realmente não sei!).

                        Mas Mariana sabia mais do que se poderia provar com uma boa análise e ajuda de quem entendesse de “romances”.
                        A literatura está cheia de grandes romances e romancistas: homens brilhantes que se tornaram famosos, mas quanto a serem bons em mentiras... é outra história!
                        E quem vai dizer sobre a história de construir outras histórias e a forma de fazê-lo é quem está dentro dela. De fora nada se prova. Ou prova? Talvez... mas daí começa tudo outra vez. Parece até “coisas” da Mariana: construir “nós” na cabeça das pessoas. Construir nós com palavras colocadas no lugar certo, na hora certa, do jeito certo... claro! Claro e certo para ela... claríssimo!

                         Mariana sabia ver dentro dos olhos esgazeados tanto quanto conseguia antecipar o momento em que seus ouvintes abriam a boca para deixá-la assim: aberta.


                            Era o momento exato em que o espanto e a incredulidade se fundiam para empurrar a mandíbula em direções opostas: arcada superior bem para cima e arcada inferior bem para baixo.
                              Isso mesmo!
                               Boca aberta!
                               Bem aberta!
                              Sinal de entrega total ao sabor do romance que a menina construía.
                              Ô capacidade para escancarar a boca dos outros!
                              Há quem garante que nesses momentos era possível ouvir o zunido do ar passando por entre os dentes em separação e reconhecer o barulho estalado da língua se recolhendo para o fundo das gargantas secas.
                              Língua que se preza sabe reconhecer o poder que vem de outra língua.
                              Língua comprida de menina mentirosa é sempre um poder a ser reconhecido com ênfase.
                              Línguas se recolhem diante de outra mais poderosa, em especial, língua comprida de menina romancista.

                                _ Romancista, não! Mentirosa, mesmo!

                                _ Mas é só uma menina... nem sabe o que está fazendo?

                                _ Não? Ela não sabe?

                                _ É muito pequena para saber...

                                _ Não sei!... não sei!...

                            
                                E outros nós iam se fazendo na cabeça de quem discutisse o assunto.
                                Mariana instigava as pessoas a pensarem, pensarem e como era de se esperar, cada uma pensava o que lhe era possível pensar.
                               Cada qual com os seus próprios nós!
                               Cada qual costurando mais botões às “casinhas” abertas pelas mentiras de Mariana.
                               Não havia quem já não fora envolvido em pelo menos um de seus r-o-m-a-n-c-e-s! Ou não fora tomado por eles.

                               _ Ô menina cheia de ideias!


                                _ Ô menina mentirosa!

                               Vozes iam e vinham na tentativa de explicar o inexplicável. Não que existisse alguma dificuldade de explicar o que era e o que não era. Nada disso! O problema estava no fato de ser uma criança, uma pequena menina a levantar tamanha confusão.

                                 _ Confusão?

                                 _ Sim, confusão! Ou você não soube da última mentira da Mariana?

                                _ Última de quando?

                                _ Dessa semana, ô! Ainda está fresquinha. Nem deu tempo de esfriar. Coisa recente...

                                 _ Conta logo!

                                 _ Espere... se eu conto uma mentira, sou mentiroso também?


                                 _ Conta logo, depois a gente decide isso. Conta!

                                 _ Bom... sei lá. Mas a pequena entrou na casa da Dona Cida pedindo socorro. Tanto gritou e tanto chorou que quem estava por perto acudiu: Seu Norberto, Seu Rodriguez, a Dona Júlia, Dona Nena, Seu Flori, Dona Benha, Seu Ti...

                                _ Sei! Sei! Conta logo a mentira...

                                _ Não é mentira...
    
                                _ Conta “PELAMORDEDEUSO”...

                                _ Pois é, todo o mundo correu e acorreu por causa dos gritos e do choro da menina!!!

                                _ E daí?

                                _ Ela pediu socorro como se tivesse fugindo do...

                                _ Tá! E...

                                _ A Dona Jacimura falou que era coisa do “coiso”, mesmo...

                               _ Entendi! Mas conta o que interessa!

                               _ A menina pediu socorro para todos os santos. Aos gritos disse que tinha visto duas cobras lá na árvore velha, aquela em frente ao...


                               _ Eu sei que árvore é... conta!

                               _ ... então! Estava apavorada! Era tanto grito, tanto desespero que quem ouviu correu: Seu Gero, Seu Tonho, Dona Li...

                              _ E daí!? Tinha cobra lá? Tinha?

                              _ Ói! Se tinha ou não tinha, não deu para saber, mas por via das dúvidas, levaram toda a criançada para o hospital.

                              _ Hospital? Então tinha cobra lá... eu sabia! Eu sabia, aquela árvore é muito velha, deveria ter sido derrubada, não deixo mais os meus filhos brincarem lá!


                              _ Pois é!

                              _ Pegaram as cobras?

                              _ Sei não!!!

                              _ E as crianças, estão no hospital?

                              _ Não! Estão em casa mesmo...

                              _ Não correm risco?

                              _ Risco? Que risco, compadre Osório?

                              _ Ora! Você sabe, com veneno de cobra não se brinca!

                             _ É... nem com veneno de cobra e nem com a verdade!

                             _ ...sim, mas!


                             _ Nada de mas, nem meio mas, compadre. Mentira tem pernas curtas...

                             _ Eu sei, eu sei, mas quero saber das crianças...


                             _ Pois é, estão todas em casa...

                             _ Estão bem cuidadas?

                             _ Com certeza! Depois dessa, ninguém mais vai querer seguir a Mariana em suas mentiras.

                             _ Não entendi...

                             _ A Mariana e a criançada toda foram levadas para o hospital.

                             _ Claro! Era o mínimo!

                             _ É... claro! Mas ainda não inventaram injeção contra língua mentirosa! Inventaram?

                             _ Então!!! Era tudo mentira?

                             _ Parece que sim. Pois lá no hospital, na frente de um monte de injeção comprida que as crianças iam ter de tomar, a Mariana quebrou as pernas da mentira!

                             _ Quebrou?

                             _ É... terminou contando para os pais que as duas cobras haviam pedido socorro para um dinossauro vermelho que carregava um sino pendurado na pata direita.

                             _ Então... não tinha cobra!

                             _ Parece!


                             _ Melhor, né compadre! Já imaginou cortar aquela árvore tão antiga...

                             _ Não pode cortar, compadre. Não pode cortar!

         
                             _ Eu sei... eu sei...


                            Não há quem conte se foi a última mentira da menina Mariana, mas dizem que depois do grande susto, ela recebeu uma carta pelo correio.


                             _ E...

                             _ Na carta, estaria escrito:


                              A PARTIR DE HOJE, QUALQUER CRIANÇA QUE MENTIR TERÁ DE FAZER AS UNHAS DOS PÉS DE TODAS AS MENTIRAS QUE TIVER INVENTADO.


                                 _ E só?

                              _ Só? Você já imaginou quantas pernas tem uma mentira comprida?

                              _ Mas, não foi você mesmo que disse que mentira tem perna curta?

                              _ Ai, compadre. Chega de falação...
























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