Colorante sobre tela/Ivane 
AIRAM   
          Minha avó Maria

 Ivane Laurete Perotti


                Dedicatória:
                                         "Às crianças que abrem janelas para a vida e enquanto crescem abrem o mundo.”

                                      Nós duas temos um segredo: se é segredo, eu não irei contar, claro! Mas posso falar um pouco sobre o quanto esse segredo me deixa feliz. Isso eu posso, não é?
                                      Minha avó é diferente.
                                      Ao invés de colecionar rugas, ela coleciona sorrisos. E ama todos os bichos. Todos os bichos do ar e da terra, os da água também, pois ela “dá um dedinho” para estar em todas as pescarias.
                                     Minha avó tem o nome de Maria, mas eu prefiro dizer AIRAM, que é Maria de trás para frente só para mostrar o quanto ela é diferente.
                                   Eu tenho avô também, mas em outra ocasião eu falo sobre ele, já que irei precisar de muitas palavras para falar sobre o meu avô. Muitas palavras...
                                    Airam deve ter nascido menina-avó. Entende como é!?
                                   Algumas meninas nascem assim: elas sabem desde pequenininhas o que desejam ser quando crescerem.
                                   Minha avó deve ter desejado ser avó desde que nasceu, ou quando ainda estava dentro da barriga de sua mamãe.
                                    Quando nós duas conversamos, acredito que ela já sabia que eu iria existir. E hoje, eu sou importante, muito, muito importante, porque quando nasci ela realizou o seu maior desejo.
                                    Eu ainda não sei se quero ser avó, mas sei que ter a minha avó também me faz ser diferente.
                                   A casa dela é meu lugar preferido.
                                  Gosto de procurar por coisas que ainda não sei para que sirvam, gosto de vestir algumas roupas antigas que ela guarda conservadas em saquinhos perfumados, gosto de subir na cadeira para vê-la amassar biscoitos.

                                   Eu tenho uma cadeira especialmente para mim. Quando me sento nela, minha avó me chama de princesa.
                                  Eu sou uma princesa. Uma princesa pequenininha, mas vou crescer e ocupar um trono de verdade.
                                Airam coloca sobre os meus ombros uma linda toalha bordada e faz uma coroa de papel dourado para combinar com meus cabelos. Fico linda e me sinto uma princesa real.
                              Nessas horas eu gosto de fazer perguntas, todas as perguntas que minha cabeça fica guardando durante dias. É a hora em que minha avó senta no chão e me responde com histórias que ela busca há anos e anos e anos atrás.
                                Perguntei outro dia com que idade eu poderia namorar. Antes de responder, ela sorriu apertando os olhos e me perguntou se eu queria ouvir uma história.
                                 Sempre quero ouvir histórias. Gosto de todas as histórias que ela conta, pois terminam com um final feliz; mesmo que a história seja triste, Airam sabe fazer um final feliz acontecer.
                                 Essa era engraçada.
                                 Minha avó lembrou que, quando ela era uma princesa da minha idade, também havia pensado sobre esse assunto, mas não tivera coragem para perguntar.
                                Há muito tempo atrás, as crianças não perguntavam sobre esses assuntos. Não era permitido. Era assunto de adulto e só poderia ser falado na hora certa.
                               Airam esperou muitos anos até entender que estava na hora de pensar sobre o assunto.
                              E um jeito que os antigos tinham para avisar que chegara a hora, era dizer à mocinha que ela poderia passear com uma tia. Uma tia mais velha que prestaria atenção ao comportamento da mocinha e ao mesmo tempo tomaria conta dela para que não se aproximasse de algum menino.
                                _ Não poderia falar com um menino, vó?
                                _ Não! Até falar com um menino levava muito tempo.
                                _ Então, como você sabia se queria namorar o menino?
                                 Airam contava de um jeito tão colorido e alegre que eu até conseguia ver o seu vestidinho verde de passear na praça.
                               _ Posso usar este vestido, vovó?
                      
                               Ela costuraria um para mim quando chegasse a minha idade para namorar.
                                _ É?!
                                _ Sim!!!
                              Aquele ficara perdido em algum baú ou outra menina o usara para passear também. Não sabia onde estava.

                               Mas a tia que a levara para o primeiro passeio fora muito clara e direta. Que Maria lembrasse sempre: nada de conversar ou ainda menos de chegar perto de alguém. Só as meninas conversavam entre si. Caso contrário ficaria mal falada.
                              _ O que é “mal fadada”, Airam?
                              _ Não! Mal “fa-la-da”... naquela época, as pessoas prestavam muita atenção ao comportamento das mocinhas.
                             Ninguém queria ficar “mal falada”, princesa. O que até poderia significar ficar sem passear por muito tempo!
                              Mas as tias-acompanhantes eram sempre cuidadosas. E as meninas sabiam que não deveriam desobedecer. Quem iria gostar de ficar em casa nos finais de semana, se o melhor momento era aquele de passear na praça?
                              _ Na praça, vovó? Vocês não iam ao “shopping”?
                              Eu gostava muito das risadas de minha avó, especialmente as que vinham acompanhadas por vários beijos em minhas bochechas.
                              Mas a minha avó-menina não conhecia “shopping”. Naquele tempo, que nem faz tanto tempo assim, a praça era o melhor lugar da cidade para passear, conversar e “olhar” um namorado.
                              _ Só olhar, Airam?
                              Era assim que começavam e era assim que ficavam os namorados por bastante tempo. Até os pais saberem quem ele era, o que fazia: se trabalhava, se estudava, quem eram os pais dele e por aí...
                             Mas até olhar... bom! isso também demorava alguns finais de semana. Por isso, era costumeiro as meninas caminharem em círculo no centro da praça, enquanto os mocinhos ficavam parados, apenas observando.
                              _ Que feio, vó! Minha mãe já me ensinou que é muito feio observar o que as pessoas estão fazendo. A gente precisa ser.. ser...
                              _ Discreta! Sim, nós éramos todos, meninos e meninas, muito discretos. Mas era com os olhos que encontrávamos aquele que nos interessava.
                              A praça era mais ou menos como é hoje, e nos dividíamos por idade.
                             As mocinhas mais novas ficavam no centro, e logo acima, ficavam as mais velhas, só um poucochinho mais velho.
                             Os mocinhos ficavam parados enquanto nós conversamos e caminhávamos cada uma no seu grupo certo. Sempre sob os olhos da tia-acompanhante.
                             Era divertido!
                                 _ Eu não gostei disso vovó, parece muito chato. Eu iria preferir tomar sorvete. Não tem graça ficar assim, caminhando , caminhando, caminhando...
                                 _ Mas naquela época era interessante. Conversar era a melhor diversão. E até hoje eu acho que é muito bom, conversar aproxima as pessoas.
                                _ Mas vocês só conversavam com as meninas...
                                _ Sim, mas enquanto conversávamos, víamos os moços que estavam solteiros e em idade para namorar. Falávamos deles entre nós.
                                _ Sem graça! Mas você achou o vovô na praça?
                                Ganhei mais um montão de beijos na bochecha.
                                Eu amava o riso de minha avó.
                                Ela sabia fazer a gente entender o quanto era bom ser amada por ela.
                                Do meu trono e embaixo de meu manto bordado, eu conseguia imaginar a minha avó caminhando, caminhando, e de jeito algum achava aquilo interessante. Era chato. Só achava divertido imaginar os vestidos que elas usavam, já que Airam me contava o quanto se preparavam para os domingos.

                                  Ainda prefiro passear no “shopping”, tomar sorvete, andar de bicicleta, jogar bola, ir ao cinema...
                                  _ Vovó, vocês não iam ao cinema?
                                  _ Íamos, sim. Quando passava uma fita..
                                  _ Fita? Não era filme?
                                  _ Era... era filme, mas naquela época o filme era gravado em uma longa fita... outro dia lhe mostro como era!
                                  _ E os namoradinhos podiam ir ao cinema?
                                  _ Sim, sim! Mas sempre acompanhados.
                                  _ Quem ia com você, vó?
                                  _ Seu tio-avô, meu irmão mais velho. Ele ficava atrás da poltrona onde nós sentávamos e passava o tempo todo fiscalizando. Nós poderíamos dar a mão um para o outro apenas quando estivéssemos noivos!
                                  _ Noivos? Igual à tia...
                                  _ É!!! Igualzinho...
                                  _ Depois pode casar...
                                  _ Sim... muitos fazem assim, ainda hoje. Primeiro namora, depois fica noivo e então... casa!
                                  _ Vó, princesas podem casar só com príncipes?
                                  Mais risadas e mais beijos em minhas bochechas. Eu era uma princesa muito feliz.
                                  Assim, minha Airam contava sobre como era na época dela. E eu acho que eles brincavam mais do que agora. Muito mais.
                                  Eles brincavam na rua; brincavam de esconde-esconde, de bola, de queimada...
                                 As famílias levavam as cadeiras para fora enquanto os filhos brincavam. Conversavam até à hora de dormir.
                                 _ Ninguém gostava de assistir novela, vovó?
                                 _ Gostavam sim, mas nós “ouvíamos” novela.
                                 _ Não entendi...
                                 _ Nós ouvíamos pelo rádio. As novelas e as notícias eram ouvidas pelo rádio. E...

                                 _ Que estranho! Onde ficavam os atores?
                                 _ Os atores eram conhecidos pela voz... Só mais tarde a televisão foi parar em todas as casas.
                                _ Não tinha filminho para crianças?
                                _ Não, as crianças brincavam, ouviam histórias, liam livros... e brincavam outra vez!
                                _ Ah!...
                               
                                Eu tentava imaginar as crianças sem televisão e sem filmes em casa. Achava muito estranho. Estranho demais!
                                 Mas acredito quando Airam conta que as brincadeiras eram saudáveis e que todos participavam. E eu penso que minha avó gostava de ser menina naquela época.
                                  Eu gosto de ser princesa hoje e de ter a minha avó para me contar tantas histórias.
                                  Uma dessas histórias aconteceu no clube da cidade. E só poderia ter acontecido naquele tempo!
                                 Que mico!!!
                                 Um micão!!!
                                 Mas Airam garante que fazia parte da tradição.
                                Como poderia? As pessoas não sabiam o quanto é importante cuidar da água? O planeta precisa de...
                                   _ Sim, com certeza absoluta. Precisamos economizar água para o planeta não passar sede. Mas acontece que, há muitos anos atrás, ninguém falava sobre isso. As pessoas pensavam que a água existiria para todos e para sempre... e... é! não estava certo!
                                   _ Não estava certo, não estava mesmo vovó! Já deveriam economizar naquele tempo para não faltar hoje...
                                   _ Assim como devemos economizar hoje, para... é! Você está certa novamente. Mas, infelizmente...
                                   _ Vocês gastavam água e ainda “pagavam um mico enorrrrrrrrme!”. Um micãozão!Um...
                                  _ Mas acreditávamos que era a melhor diversão. E todos participavam, com muito papel colorido...
                                  _ Papel? Que papel, vó?
                                  _ Era assim: quando chegava o fim do verão, o clube organizava uma festa muito bonita. Fazíamos roupas de papel “crepom”. Um papel grosso, crespo, colorido... (vamos ver no dicionário? Agora a vovó está assim: quero ter certeza sobre a escrita da palavra! Aqui... olhe só! É assim mesmo que se fala: C-R-E-P-O-M.).
                                  _ E porque vocês escolhiam esse papel?
                                  _ Ora!...além de ser mais grosso, as cores dele eram vivas, fortes e facilitava na hora de cair na piscina.
                              _ A hora de “pagar o micão”....
                              
                              _ É, quando chegava o final da festa, pulávamos na piscina... era muito engraçado! E bonito! A água ficava colorida...
                              _ E suja! Ninguém mais poderia entrar...
                              _ É, ficava suja de papel e muito colorida... até virar uma cor só. Sabe, há muitos anos atrás, tirava-se a água da piscina para a temporada de inverno.

                              _Vó? Você também saltava na água?
                              _ Sim, eu saltava. Gostava de fazer umas fantasias bem coloridas para usar em cima da roupa de banho...
                              _ Outro micão! Está parecendo um zoológico só de micos...
                              Entre risadas e comentários chistosos, nós duas alimentávamos o nosso segredo.
                              Eu até ganhei uma Estrelinha.
                              Ela tinha muitas penas, bico brilhante, brilhante. Gostava de comer milho quebrado e botava ovos gordinhos, gordinhos.

                             Estrelinha era uma galinha poedeira muito esperta. Mais esperta do que todas as outras galinhas juntas. E ela ainda gostava de esmalte vermelho. Pode perguntar para a minha avó!
                              _ Sim, é verdade...
                             Está vendo?
                             Airam entendia de bichos. Não importava a quantidade de patas que o bicho tinha, ou até mesmo se ele tinha patas. Se era um bicho, lá estava ela, conversando com o fulano.
                             As línguas faladas pelas avós amorosas são universais. Nem precisam de tradução e são entendidas por quem quer que seja.
                             Mas ela também sabia falar com a amoreira, com a jabuticabeira, com o pé de ameixa... e ela até!... Ops! quase contei nosso segredo. Esse é um segredo de segredo, não posso contar. Mas queria dizer que Airam tinha um paraíso ao redor dela. Um paraíso que eu também aprendera a amar.
                              Foi por causa desse paraíso que eu descobri que muitos jardins, muitos bichos, muitas avós com netos e até aquelas que eram vovós-sem-netos, estavam secando por falta de amor.
                             Até então, eu pensava que a seca se fazia por falta de água. Nunca antes imaginara conhecer um jardim que morresse devagarzinho, devagarzinho... por falta de gente. 
                            Nunca imaginara que uma avó-sem-netos pudesse colecionar tantas rugas ao invés de sorrisos, nem jamais pensara que uma avó-com-netos pudesse ser esquecida e secasse de tanta saudade.
                              Vovós secam. Ficam murchinhas, murchinhas quando não podem mais andar no quintal, conversar com as flores, brincar com os netos... mas elas morrem aos pouquinhos quando o quintal não vai até elas, quando ninguém lhes leva flores, quando os netos deixam de visitá-las.
                               Vovós viram crianças. Precisam brincar com os netos para não murcharem em pé.
                                Vovós gostam de sorrisos, de beijos na bochecha, de biscoito de leite com mel, de histórias que sempre repetem, de crianças que pedem bolo, caramelo e...

                                 Eu conheci uma vovozinha triste. Ela não tinha netos e quando me viu de mãos dadas com a minha vovó Airam, gritou com uma voz arrastada:

                                 _ Bela princesa! Alegre minha bochecha enrugada com um beijo bem estalado...

                                 Claro que eu a beijei.
                                 Minha avó conhecia essa vovó há muito tempo.
                                Airam a visitava toda a semana para que pudesse brincar um pouco de “jogar cartas” (uma brincadeira para adultos, muito sem graça, mas da qual vovôs e vovós costumam gostar).
                            Airam levava flores para ela. Fazia bolos deliciosos para comerem nos curtos intervalos das brincadeiras com as cartas.
                             Era uma vovozinha que secara em pé.
                             Quando conheci seu quintal, triste e abandonado, esquecido e esturricado, entendi de onde vinha a beleza viva do paraíso que vovó Airam cultivava.

                              A minha vovó é uma rainha cheia de brilho.
                              Eu sou a luz que faz minha Airam brilhar.
                              Meu trono de princesa vou passar para alguém... ou não! na hora em que a hora chegar.
                               A coroa de papel dourado vou guardar embaixo do travesseiro em todas as noites de minha vida de menina, mocinha, mulher... vou juntar ao meu manto, o manto de minha avó e costurando os dois com jeito, vou fazer um ainda maior.
                            Vou cultivar um quintal em segredo, colher flores, comer frutas tiradas do pé, vou cuidar de Estrelinhas, viajar, aprender a falar outras línguas.
                             Não quero viver sem sorrisos, ainda menos... ainda menos ficar sem beijos e abraços e biscoitos de leite com mel.
                            Vou colecionar sorrisos e as rugas...
                             As rugas só contarão sobre as viagens que fiz, para as quais fui e das quais sempre voltei!
                             Voltarei para o nosso segredo, e a ele me manterei fiel.
                              Vou esperar Airam voltar, para dizer que eu cheguei. Ou então, quando a encontrar, em segredo lhe direi:
                               _ Vó! Eu amo você!


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