O HOMEM QUE PERDEU O SAPATO    
                         

DEDICATÓRIA:
                           "A todos aqueles que se foram sem dizer: ‘até logo’ !"

                
           Marino conhecia todos os caminhos da cidade. Até aqueles que davam em lugar nenhum.
        Sua vida era carregar os olhos com o que via e o que pensava ver.
         Não só conhecia as portas e as janelas das casas que visitava por fora e por dentro como sabia de antemão quando uma nova leva de cupins se apossava de alguma delas. “Madeira que é madeira precisa de atenção...” era sua frase preferida.

                 Se lhe parassem para pedir ajuda ou solicitar informação, sem hesitar, levava o desinformado pela mão.  O que para alguns era um problema: quem disse que poderia ser assim, pegando pela mão? Mão é coisa séria, muito pessoal, cada um tem mão, ou não tem, mas elas existem para... hum!!! para deixar certo espaço entre as pessoas, criar um distanciamento sério e... onde está escrito que se deve ir grudando uma mão em outra mão? Assim, sem mais nem menos? Ora!!! Instalava-se um problema nas mãos de Marino. Ou não...

               Marino não fazia distinção: queria ir para algum lugar?, ele ajudava a chegar. Não sabia se a mão era nova ou velha, se era branca ou preta, amarela ou verde, lisinha ou enrugada, se tinha dedos ou não tinha, se estava limpa ou sujinha, se sofria do medo das “mãos que não se tocam”... era assim que ele via o que via. Uma mão levando a outra mão. Só uma troca de gentileza.
             Por conta desse seu costume, muito desaforo ouviu. Isto é, ninguém tem certeza se ele ouviu ou fez de conta não ouvir. No lugar de qualquer palavra instalava um sorriso no rosto e mostrava onde queriam chegar.
             Calçado e paramentado, iniciava seus movimentos ainda muito cedo, lá pelas horas de o sol levantar.
              Repetia todos os dias o dia que só ele fazia. Na mão levava um guarda-chuva antigo: cabo de madeira _ comprido feito bengala _, copa larga... poucas vezes abriu. Quando desabava uma chuva, alguém o recolhia a tempo de não se molhar. Era uma porta conhecida, um portão que salvara dos cupins, uma xícara de café quente, um varal que ajudara a esticar, sempre alguém que já conhecia aparecia para convidar: “Entra logo Seu Marino, senão vai se molhar.”.
               Na cabeça, o chapéu de feltro parecia não ter cor. Teria sido do pai do pai do pai, alguma coisa como tataravô; bom tecido e marca certa durava por várias cabeças.
               Era assim da manhã à noite, indo de rua em rua, de esquina em esquina até quando o sol se punha a cair. Junto com a noite vinha a lua e era daí que Marino sumia. Ninguém tinha certeza de nada, mas alguns diziam que ele desaparecia.
              Como não inspirava perigo, nada se fez para descobrir: “Seria mesmo um sumiço, ou Marino também ia se recolher?”.
 
              Para os menores que corriam nas ruas, as mães gostavam de dizer: “Entre agora, moleque levado, Seu Marino vem lhe buscar.” Qual nada que ele viria todos sabiam e riam de tal. Mas já se tornara mania das mães assim chamarem os seus. E eis que eles acudiam, fazendo acreditar que, o Marino da noite, viria mesmo lhes buscar.

                 Bastava nascer o sol, apontava o Marino na rua. O chapéu aparecia antes e depois vinha o “Bom dia!”. Era bom dia de todo o lado, pois as janelas em função já esperavam as novidades que se sabia viriam subindo e descendo a cidade.


             De pijama ou “chambre” de lã, as mães preparavam o pão; de uniforme e sacola, os meninos aguardavam a condução. Às vezes, a depender do dia, o Marino embarcava junto e até à escola ele subia. As professoras gostavam dele, pois elegante se fazia e a todas cumprimentava com mesuras e mestria. Passeava entre as salas, demorando-se diante das paredes forradas.
           Mas havia um momento que todos esperavam apesar de não se saber o que nele acontecia. Marino se deixava ficar por um tempo que não tinha fim diante do mural sobre geografia. Quando o chapéu sem cor descia lentamente para o peito e os olhos de Marino brilhavam como contas de vidro apontadas para o sol, sabiam todos que ele encontrara o “mapa-múndi”.


                   Numa reverência velada ao que ele via ninguém perguntava o que era, onde era ou o que significava. Marino assim ficava em um lugar jamais sabido, pelo tempo que suas pernas o sustentassem. Vezes sem conta uma mão carinhosa o chamava de volta dizendo-lhe algo que ele também não ouviria.
                         Era comum que se retirasse ainda mais silencioso, deixando atrás de si o som áspero dos sapatos raspando o chão da sala.
                        Todos viam Marino parar inúmeras vezes e consultar o céu, ajeitar o chapéu e só então desaparecer na ladeira íngreme que circundava a escola. Os pares de olhos que o acompanhavam demoravam em voltar à sala e pelos vidros das janelas a escola se enchia de perguntas redondas e gordas de curiosidade.

                   A cidade era pequena, e dava até para dizer que todos se conheciam.  Conheciam manias e hábitos, costumes e formas de agir, cuidavam um do outro e muitas vezes, muitas vezes!, até onde não deveriam. Era comum alguém passar da conta e dizer o que não poderia dizer. Verdade que a vida particular é da conta de cada um e falar do outro inequivocamente vira mexerico, gera intriga, e é pura bisbilhotice.

                   Diante de casos assim, em ruas de pouco fazer, Marino apenas sorria e não dava a entender. Se ele concordava ou não com a informação do dia?... bastava uma pequena trégua e da fofoca ele fugia.

                   Houve um dia que ficou na história da cidade e ninguém deixou esquecer, pois Marino precisou ser rápido para o guarda-chuva defender.

                  Caminhava como sempre, cumprimentando a quem via e eis que não se dá conta do que na rua havia: duas comadres antigas, famosas pela boa vontade em conversar, estavam a dirimir dúvidas sobre quem estivera com quem contando para além. Uma de avental na mão brandia-o em altas sílabas, chamando a antiga amiga para sair. Que abrisse o portão. A mais cautelosa delas carregava um velho penico na mão. De longe parecia estar cheio, mas ninguém parou para ver, nem mesmo o Marino soubera dele até precisar correr.

                     Descuidado avançou por entre as duas, com o mesmo sorriso de sempre, dizendo “Bom dia!, senhoras! Bom dia!”
                    Não deu tempo para a resposta, mas o movimento ele viu, o penico voou alto e do outro lado da rua explodiu.
                  Antes que visse tudo e com clareza desse conta sentiu o cheiro ácido de urina amanhecida. Nas costas escondeu o guarda-chuva que ia lá bem mais à frente ladeando sua perna direita. Foi um “upa!” sem fôlego e com um salto desviou-se.

                  Quem viu não teve dúvida: Marino fora ligeiro. Tratava-se de uma rapidez sem precedentes. Onde encontrara tamanha agilidade, foi assunto que rendeu pregas. Além do penico cruzado, da urina e das faladeiras, a notícia varou a cidade e ganhou a capital. Mesmo contada de muitos jeitos, com aumento de pontos e penicos, Marino era o centro da história.
Um dizia de sua perna voadora, outro da cabeça que espichara; ainda outro contava do braço e da fumaça que aparecera. Eram tantos os detalhes que até jornalista quis saber: seria lenda da cidade, ou seria fato para ver?

              Outras façanhas tomaram corpo, muito e muito se falou. História é sempre um pretexto para se dizer o que quer, especialmente aquela que o povo conta e não tem medida para conter; palavras ingênuas e soltas não se amarram bem assim, é outra história essa história e ... coitado de quem decidir o fim.

             Ainda assim, Marino era o homem que escapara do penico, em rua sem nome e sem data, entre comadres e mexericos. Reza a lenda contada por outros que a rua tornou-se famosa e que as comadres faladeiras fizeram as pazes depois.
             Mas quando uma história engata outra é fácil esquecer-se da primeira. É um tal de colar palavras, detalhes e impressões que de boca em boca cresce o conto quando não se apaga este também.

              Marino ficara alheio à fama que vem e some; era homem de falar com os olhos, palavras poucas, nada em demasia!            
               Guardava em algum lugar os pensamentos que tecia, a ninguém revelava o que em sua alma cabia.
             Mas eis que em um dia muito estranho que ninguém conseguiu descrever, encontraram um sapato perdido na porta da estação de trem. Era um sapato de homem, sem meia e muito chulé. Tinha marcas de passos andados, parecia com o sapato de alguém. Mas alguém é por demais vago, precisava-se saber quem.
“Quem” tem nome e número, endereço, pai e mãe. Essa coisa de identidade que diz “quem é de quem”... E será que é possível alguém ser de alguém? Não ter nome nem endereço, nem saber do pai e da mãe, se isso é possível, de onde “quem” vem?

             Pergunta aqui e confirma lá, reuniu-se a pequena cidade: quem perde um pé de sapato conserva o outro no pé? Sapatos andam em par, um para cada pé... a não ser que apenas um pé ocupe o lugar dos dois. E daí... daí seria coisa para se falar em reunião de alta categoria. Isso de pensar sem ter resposta provocava agonia... parecia ser melhor quando alguém tinha a resposta. Dizer “eu não sei” incomodava a maioria.
            Pelos trilhos do antigo trem que cortava a cidadezinha, procuraram o outro sapato. Nem sapato nem marcas de pé.
           Uma chuva grossa e morna banhou a cidade por tantos dias quanto durou a curiosidade do povo local.

           Quem deixaria um sapato e levaria o outro no pé?
           Coisa estranha!... procurava-se nos bares e nas igrejas. Quem podia sentava na praça e longos comentários tecia. O sapato ganhou uma caixa na porta da ferrovia. Lia-se em um cartaz permanente:


           “PROCURA-SE O OUTRO PÉ!
             O DONO AQUI RECLAME
             E DEIXE ESCRITO QUEM É!"
             
             

           Estranhava-se não ver o Marino entrar por alguma porta, descer uma rua qualquer e oferecer o fiel “Bom dia!”.
           Na escola as professoras esperavam noite e dia. Até repintaram o mapa-múndi esperando vê-lo aparecer. Acostumadas às mesuras, sentiam falta da gentileza que sem preço ele oferecia.

          Pequenos e grandes, os alunos penduravam-se às janelas, grudavam o ouvido à rua, espichavam os olhos ansiosos.
         Onde estaria o Marino que há dias não se fazia ver?
          Estranheza é uma sensação dupla de desconforto e saudade, difícil de ser explicada até por quem gosta de explicar. Era assim que a pequena cidade expressava o que não sabia: fazia falta o Marino, de chapéu e guarda-chuva, fazia falta o Marino no final do dia e na rua.
         Alguma mão estranhara o gesto rápido de oferecer a mão? Fizera alguma viagem sem comunicar a ninguém?
          A procura pelo Marino deu lugar a outro cartaz:

           “PROCURA-SE PELO MARINO
            CONHECIDO EM TODAS AS RUAS
            FAVOR AVISAR A CIDADE
            QUE SABE QUEM ELE É!”


           Muitas chuvas se passaram e os cartazes perderam a cor.
           Nada de Marino, nada de aparecer.
           Até no jornal anunciaram, do sumiço fez-se notícia. Perguntavam do Marino a quem pudesse saber. Era muito para a pequena cidade sozinha responder. Perdia-se no mesmo dia um pé de sapato e alguém. Alguém de nome, chapéu e guarda-chuva... e o sapato seria de “quem”?
           Em outro dia indescritível uma criança decretou: “Vou recolher o sapato, guardá-lo junto com os meus...”. Cheio de boa vontade carregou o velho sapato, tirou o pó que o cobria e colocou-o no pé. Claro que grande ficara, mas isso não importava. Era o sapato de alguém e isso o intrigava. Puxou um sorriso de lado e percorreu as linhas e marcas... parecia um sapato já visto, em algum lugar do passado.
         Contam que o menino à rua saía calçado, caminhando como alguém que lembrava outro alguém não identificado. Com apenas um pé de sapato, o moleque passeava. Sorria como quem guardasse o segredo de alguém. E como para ninguém contasse, o segredo foi além.
        Dobrou esquinas e ruas, subiu ladeiras, seguiu o trem.
        Segredo de criança tem força, engorda, ganha espaço, cria razões.
        O menino usou o sapato em toda vez que desejou... só não respondeu a pergunta: “E o Marino, alguém achou?”.
           


           

       

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