COMO O MUNDO ME PARECE
DEDICATÓRIA: “Às crianças que
sempre sabem quais são as cores que pintam o mundo.”
Não
sei.
Pensava saber muita coisa, se
não um pouco de tudo, de tudo um pouco.
Gostava de olhar com muita
calma para o que passava diante de meus olhos, mas nem sempre meus olhos
enxergavam o que eu pensava olhar.
Criança enxerga muito.
Enxerga até o que não se vê.
E não precisa provar que é verdade.
Criança faz a verdade
aparecer.
Eu sou uma criança assim.
Com “assim” quero dizer que sou uma criança igual a todas as outras crianças. E
vejo o mundo com os olhos que “sou”.
Não corrijam minha frase,
já vou mostrar o que quero dizer.
Esta é uma história de olhar
e ver. Deixe para ler depois que a leitura tiver terminado. E leia para fora,
não para dentro.
Não leia as letras, olhe as
palavras. Deixe que elas se desenhem em seu mundo do jeito que você quer.
Conte quantas vezes você vê o
texto e deixe o texto lhe mostrar o que você não vê. Não se iluda pensando que
agora você irá ler o que escrevi.
Eu desenhei letras e elas
sozinhas não dizem nada. Temos em comum, a chave para muitas portas.
Decida o que você quer ver.
Esta história é sobre o que parece e o que pode ser.
Não sei dizer verdades, não
sei se elas existem ou até mesmo se elas vêm de algum lugar, mas juntos, eu e
você, podemos construir imagens de tudo o que queremos ver.
Não há limites para a leitura
que vamos fazer. Mas veja que esta leitura não está na palavra que você pensa
que lê. Esta leitura está na imagem que você pensa e vê.
Mas eu não sei desenhar
imagens, sei riscar letras quando elas se deixam pegar. Não posso começar a
história sem você participar.
Algumas letras depois de: "Era
uma vez...”, eu penso que começa o fim de uma história que vou contar pelo
meio. Não pelo meio/metade, mas pelo meio/ meio... Então seria assim:
Um menino de cabelos
compridos, encaracolados em forma de anel largo, entendeu que queria aprender a
aprender.
Matriculou-se em cursos e
escolas, fez provas de “B-E-A-B-A”, de X e Y, de matemática, culinária e
ecologia.
Conheceu muita gente e muita
gente desconheceu.
Fez garimpo pelos livros,
pelas letras escorregou, encontrou minas e buracos, foi e depois voltou.
Esse menino pensava alto,
subia na cadeira para falar.
Quando não entendiam o que
dizia, ele aproveitava para desenhar.
Foi morar na Índia, para
aprender as muitas línguas que lá contavam existir.
Na matemática do menino, as
palavras deveriam nascer por lá: muitas línguas = a muitas palavras.
Pelo tempo que ficou,
conheceu as línguas e os homens. Aprendeu a meditar, a falar sem dizer nada,
mas não conseguiu carregar nem as línguas nem os homens. Inseparáveis, ficaram
para trás.
Cheio de perguntas sem
respostas, esse menino-procurador, inscreveu-se em um cruzeiro para trabalhar
como tradutor. Não como tradutor de palavras, mas tradutor de sinais.
Precisava avisar a tempo
quando o tempo deixava de ser. Algo como adivinhar tormenta só olhando para o
céu.
Era tarefa difícil, nada
aprendera sobre isso. Mas cheio de coragem e perguntas, colocou-se no navio.
Ocupava os lugares mais estranhos; da
proa ao porão, caminhava cheirando o ar.
Olhava de olhos fechados,
cantava antes de olhar, rezava palavras estranhas e até parecia sussurrar:
coisas que só o vento entendia se tivesse vento para escutar.
Olhava de dia e de noite,
quase sem folga, sem parar. Queria
entender os sinais, e seu emprego preservar.
Navio moderno, bem equipado
tinha tudo em matéria de instrumentos, mapas e orientações. Mas o capitão era
homem desconfiado e preferia “se” precaver.
Precaver é palavra difícil
e diz antes de dizer, era isso que o menino precisava aprender.
Mas a lição não era dada
em nenhum lugar especial. Navegava em mar revolto, cheio de mistérios
insondáveis.
Onde começavam os ventos,
onde terminavam as chuvas, quem começava primeiro?
Melhor do que aparelhos,
dizia o capitão, é o olhar atento e ligeiro de um tradutor de sinais.
O tempo não avisa quando e
como vai mudar, mas faz disso um movimento que a gente pode sentir.
Tem quem sente e não entende,
tem quem nem chega a perceber que sentiu e tem os que sentem e traduzem qualquer
mudança que está por vir.
Os cabelos encaracolados do
menino-tradutor cresceram e cresceram e cresceram.
Antes que o vento mudasse de
direção, os cachos longos avisavam.
Antes que a força do vento
aumentasse, a nuca arrepiava-se e o menino sabia o que esperar.
Antes que o mar se levantasse
em ondas engolidoras, o estômago do menino mandava um alerta.
E assim, um livro aberto foi
sendo gravado pelo corpo, pelos poros, pelos cabelos do menino-observador.
De tanto observar a natureza,
observou os homens também. Daí que o navio ficou pequeno para o quanto mais
queria aprender.
Desceu em um pequeno porto no
qual o navio atracou; desceu, procurou um espaço e por um bom tempo conviveu
com os moradores locais.
Aprendeu a pescar sem rede, a
comer flores e folhas, a compreender o humor das águas e a identificar as águas
que fazem o humor subir. Ou não!
Foi nesse tempo que descobriu
que nem sempre o que estava bom para um, estaria bom para o outro também.
Por mais confuso que parecesse
o que aprendia, escreveu em seu livro de sabedoria:
"Aprender a ouvir antes
de falar, a olhar duas vezes antes de enxergar; aprender a silenciar as
palavras que vêm à boca e até as que aparecem no pensamento pode ajudar um
menino a compreender sua natureza de menino."
"E até a natureza de uma
menina.
Para aprender, precisa
gostar de saber. E quando sabe, precisa fazer o que aprendeu."
“Gosto de aprender
especialmente sobre o que não entendo...”
E foi com uma experiência
difícil de aceitar que o menino-observador ganhou uma passagem para o mundo dos
que sentem, sentem e sentem até sem entender.
Na pequena aldeia,
conhecera uma menina tão observadora quanto ele.
Juntos, descobriram a
alegria de pesquisar lugares diferentes, de colecionar perguntas, de levantar
antes do sol para esperá-lo acordar, de passear sem rumo pelas praias cobertas
de conchas minúsculas, de gastar longos momentos procurando novos sinais na
linguagem da natureza.
Era uma parceria que dera
certo desde o primeiro momento: os dois sentiam.
Das longas pesquisas
sobre perguntas sem respostas, uma delas incomodava particularmente o
menino-observador.
Não conseguia entender o que
se passava com a saúde de sua amiga.
Tanto ele não entendia,
quanto se angustiava na tentativa de aceitar que sua amiga tinha uma saúde
muito frágil.
Isso era difícil.
Corriam par a par e ela
sempre ganhava no final. Sem qualquer vantagem que ele lhe desse, a
menina-perguntadora era mais rápida e muito mais leve do que ele.
Quando descobriam uma
amoreira, ela era a primeira a chegar ao topo da árvore. Ele não tinha a menor
chance quando se tratava de rapidez e agilidade.
Ainda assim, sabia que a
situação se agravava.
Ouvira muitas vezes a mãe da
menina chorar perto da praia. Ela chorava o choro das mães que sentem medo,
raiva e nada podem fazer para salvar os seus filhos.
Só entenderia isso mais
tarde, mas seria o suficiente para deixar em seu caderno de sabedoria uma
anotação tão tocante ao ponto de nunca mais voltar a ser lida por ele. Ele não
a leria, mas nós poderemos folhear o seu caderno mais adiante.
Teve certeza de que algumas
coisas na vida não podem ser modificadas, apenas aceitas, quando em um final de
tarde de sol quente sua amiga não apareceu.
Preocupado com a demora,
foi buscá-la na rústica casa coberta com folhas de palmeira imperial.
A menina estava, sim. Mas
não poderia brincar.
Talvez um milagre, um
milagre, desses que a gente espera, mas nem pensa que pode acontecer.
Talvez um milagre lhe
devolvesse a parceira de tantas buscas.
Esperou junto com todo o
povo da aldeia.
Ajudava a acender o fogo do
lado de fora para manter a todos acordados, ajudava a assar o peixe que era
dividido entre os que faziam a vigília.
Todos esperavam fazendo a sua
reza do jeito que sabiam.
Não havia o que fazer?
Dois médicos chegaram de
barco, mas não levaram a menina embora. Concordaram que era melhor ela estar
ali.
Sentia falta das perguntas que
seriam colecionadas, sentia falta de esperar o sol acordar ao lado dela, sentia
falta de perder as corridas pela praia...
Até as amoreiras sentiam falta da
menina-observadora. Seus frutos perdiam o viço e a doçura das amoras
escondia-se esperando a menina voltar.
Mas ela não voltou.
Seu corpo pequenino e leve fora
enrolado na mais bela toalha branca bordada com fios de seda pelas anciãs da
aldeia.
Recebera uma coroa de flores
colhidas por ele e trançada pelas crianças menores.
Estavam tristes.
Choravam baixinho para não
assustar uns aos outros, mas o que poderia ser pior?
Para onde fora a alegria da
aldeia de pescadores? Acostumados a viver alegremente com o que a natureza lhes
oferecia, os pescadores conheciam a abundância.
Era um lugar simples, tranquilo,
mas ao qual nada faltava.
Se um dos moradores tinha algo,
todos os demais tinham também.
Ali as pessoas sabiam viver bem.
Ninguém guardava “coisas” para
juntar.
Todos dividiam o que possuíam com
quem precisasse mais.
Aprendera a gostar do lugar.
Tanto gostava que se deixara ficar.
Estava aprendendo mais, convencia
a si mesmo.
E estava. Como no momento em que
sua amiga partira para não voltar.
Alguns o consolavam dizendo
que ela fora para uma aldeia perfeita, onde o sol era forte, mas não queimava.
Onde os peixes eram servidos prontos e nem se precisava pescá-los.
Outros diziam que ela estava
dormindo agora, mas que era um sono de anjo.
Ainda outros, falavam que ela
estaria sempre ali, na aldeia que amava, correndo pelas praias, juntando
conchas, apostando corridas...
Era assim para um e para
outro.
Poderia ser, poderia ser, mas
ele não sabia o que pensar.
Não era uma experiência que
desejara vivenciar.
Será que não estaria errado o
que aconteceu?
Tantas pessoas com muita idade
moravam na aldeia e diziam esperar a sua hora chegar.
Por que uma menina tão novinha
fora antes deles?
Era a vida, era coisa da vida,
explicavam-lhe com paciência.
Instalou-se um período em que
o silêncio foi seu maior companheiro.
Andava com ele pelos mesmos
lugares em que antes levava sua amiga.
Era assim que encontrara um
modo de sentir a sua dor. Uma dor diferente, muito diferente. Começava no peito
e parava nos olhos para outra vez voltar ao peito e daí não acabar mais. Era
uma dor que doía fundo, fundo, lá dentro do túnel da alma.
Já ouvira alguns falarem que o
tempo curaria essa dor. Mas nisso ele não acreditava. Como? O tempo era só uma
questão de perceber os anos passarem, ou não! O que o tempo poderia fazer com
tanta dor?
Sem qualquer resposta que lhe
desse um lenitivo, o menino-observador resolveu partir.
Precisava andar, andar, andar
com o silêncio empoleirado em suas costas para encontrar outras respostas.
Talvez um dia voltasse...
talvez!... e então, procuraria as amoreiras para descobrir se o doce das frutas
também voltara.
Cada um presenteara o menino
com o que tinha de melhor.
Ele não carregava só o
silêncio às costas, mas um pouquinho de cada um daquela aldeia.
Com certeza ele próprio não era
mais o mesmo.
Sua vontade de aprender o lançara ao
mundo e ele estava só nos primeiros passos.
Os olhos ainda ardiam com a
imagem de sua amiga.
Na garganta, um nó sem corda
apertava e apertava e apertava.
A saudade fazia o corpo
inteiro adoecer.
Mas ele precisava andar.
Observar o mundo é como
voltar para dentro do próprio umbigo deixando os olhos esbugalhados, o coração
em silêncio, os ouvidos atentos, a pele aberta. Aberta, sim, porque os poros,
apesar de diminutos, são ótimos em captar informações importantes.
Em uma parte qualquer da
estrada, ouviu falar de uma região onde o ouro já fora encontrado no quintal
das casas.
Ouro? E isso é bom ou mau?
Depende...
Dependia do que?
Eis outra pergunta sem resposta.
Pesquisou com os que encontrava
e traçou uma direção às minas. Era assim que chamavam os lugares que diziam
estar muito cheio de ouro.
Ouro... pouco ou quase nada
sabia sobre esse metal.
Por suas andanças anteriores
conhecera algumas pedras que os homens chamam de preciosas: topázio, diamante,
safira, jadeíta, granada, entre tantas outras.
Não sabia ainda se gostava ou não
dessas pedras, mas na verdade lhe interessava mais observar aqueles que as
procuravam.
Gostava de aprender com esses
homens sobre paciência, perseverança e até, algo que lhe fizera muito mal ao conhecer:
a inveja.
Os que encontravam pedras
valiosas temiam os menos afortunados. E ele demorou a entender esses jogos de
poder.
Mas agora ele chegava a uma
cidadezinha que diziam pertencer...
...?
É... assim chamavam o lugar
e...
Bem, aqui começa uma nova
história que será contada em outro caderno de anotações.
Você terminou de ler este?
Tem certeza?
Mas... você não deveria
esperar para dar esta resposta?
Dê uma olhadinha no
início/meio da história, ou meio/meio dela... !
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