MARIA COTOVELO

DEDICATÓRIA: "Para as crianças mineiras e suas histórias de janela aberta."



                   Agarrado ao pescoço de minha avó cutuquei seu braço pelo menos umas cinco vezes.
                  Espetei o dedo no cabelo colado.
                 Balancei o corpo na direção de sua orelha.
                  Apertei as bochechas cor de chocolate esperando que ela gritasse: “Pare!, moleque traquinas!”
                  Gritei perto de seu ouvido imaginando pregar-lhe um susto.
                  Nem uma coisa nem outra. Ela não tirava os olhos da rua. Cotovelos fincados na janela sem tinta, Maria Cotovelo só sabia olhar para o mesmo lugar.
                 A mim parecia que alguém a plantara ali. Sempre ali a olhar para fora, em um tipo de silêncio que eu não conseguia aceitar.




                  Não me deixavam subir na cadeira para ver o que ela via.
                  Bem que eu queria... ah! Como eu queria saber do que ela ria.
                Olhos abertos de par em par, nada mais fazia senão olhar para o que ninguém via.
               Maria Cotovelo era a moradora mais antiga da casa de minha avó.  Já morava ali antes da avó da avó de minha vovó.
              Ninguém mexia com ela. Bem, ninguém além de mim, claro!
              Mexer com a Maria correspondia a desenvolver uma sabedoria cuja importância eu ainda desconhecia.
             Sabedoria e persistência!
             Somente muito tempo depois eu pude pensar na importância vital que Maria Cotovelo tivera em minha vida.
             Eu aprendera com ela a não desistir.




           Colecionei durante anos vários tons de: “Volte menino!”, “Não mexa aí, seu menino!”, “Não derrube a Maria, menininho curioso!”, “Cuidado com a Maria, seu menininho!”.
            O “Pare menino”! é uma das falas que ainda retumbam em meus ouvidos, mesmo que as lembranças sequer identifiquem de quem era a voz na vez de tentar me impedir de chegar a Maria Cotovelo.
                 Nos quatro apoios, engatinhando sobre minha vontade, eu só fazia esperar a hora em que ficasse mais firme para escalar até onde ela estava.
               A hora chegava.
               Mesmo sem noções de tamanho e distância, eu sabia que o espaço que dela me separava diminuía, diminuía diariamente.
                Pelas vozes de “Ele está crescendo! Ele está crescendo!” e pelo tanto que eu conseguia fazer meus dedos chegar mais perto, eu sabia.
                Mas enquanto esperava fiz uso do choro que todos atendem, fiz beiço de menino pidão, entortei meus olhos lacrimejantes para todos os lados, mas o máximo que conseguia era: “Parem o menino!”.





                 Demorou até poder alcançar sozinho o seu cotovelo.
                 De cadeira em cadeira, de ano em ano, fui subindo os centímetros que me separavam do que ela via.
                 Desenhei ranhuras nas paredes vizinhas, descobri a resistência das cortinas de algodão e a força dos “Desce menino!”.
               Apenas ela, a minha Maria, nunca, em nenhum momento, nunca, nunca!, reclamou de minhas tentativas.
                Não que estivesse ausente do que acontecia. Muito pelo contrário, eu sabia que ela apenas não queria tomar um partido e me aguardava com paciência hercúlea.

                Nossas conversas lambiam o mesmo tema: o que se passava para além da janela.
                  Eu ouvia e imaginava, sentia os cheiros entrando pela minha pele enquanto meus olhos furavam a parede para ver o que ela via.
                 Ah! Ela sabia ver.
                Ela via o que ninguém mais conseguia ver. Eu sabia disso e sabia mesmo!
                Não era algo que tivessem dito ou mostrado. Eu apenas sabia. Sentia. Percebia e acreditava que Maria Cotovelo sabia ver.
                Ela via sem parar.
               

                                Ficava ali, parada, só para ver, olhar, enxergar.
                               Maria Cotovelo sabia das coisas.
                              Eu também queria saber.
                              Olhando-a de onde eu a olhava, minha admiração criava asas. E nessas asas eu subia e subia e subia.
                               Havia quem pensasse que eu estava a tramar outra forma de escalar a janela.
                              Eu escalava com o desejo de ver o que Maria via.
                              Meus olhos espichavam-se em curva dupla e atravessavam junto com ela aquele espaço que eu queria preencher.
                               Eu conseguia ver pelos sons que ela ouvia e cheirar pelo aroma que descia pelos seus cabelos.
                               Maria Cotovelo queria me alçar para cima, eu sabia que ela queria.
                              Então, os olhos espichados grudavam-se nos olhos dela e dançavam diante de quadros que eu só imaginava.
                               Passos transformavam-se em grandes estrondos que eu tremia de prazer ao espreitar. Pés se juntavam para passar embaixo da janela do lado que eu não sabia existir.
                             Tudo acontecia em tempo e espaço único, ninguém mais via. Apenas Maria sorria de meus olhos de tição.
                              Fôlego cortado, mãos prontas para agir, peito levantado pela respiração de permanente surpresa, eu esperava subir.

                          

                Maria Cotovelo esperou-me por no mínimo três anos e muitos olhares em comum.
               Tocar seu cotovelo frio, duro e chocolate não diminuiu o prazer de vê-la pela primeira vez balançar um pouco.
              Parecia descer da janela, parecia em dúvida sobre ficar ou vir para o chão onde eu ainda estava.
              Na dúvida, decidi por nós dois. Empurrei-a devagarzinho para o lugar de sempre e aboletei-me ao seu lado.

                 Olhos esbugalhados, pés soltos no ar, cotovelos fincados na madeira e... nossa!!!
                 Eu via, via Maria!
                 Eu via aquele corredor imenso e torto a que tantos insistiam chamar de rua, de lugar perigoso, de... de sei mais o quê!
                Se tão perigoso era, porque corriam nele de um lado para o outro?
               Ô! Maria! diga-me quem é aquele que grita lá... e aquela bola com duas pernas?
               Aquele chapéu, de quem é? Eu vi uma bicicleta e um casaco azul. Maria, o que é aquilo do outro lado? Gato ou cachorro?
                 Um passarinho olhou para cá. De onde saem as pipocas? Quero um desses Maria, também quero aquele lá. Não é para mim? Quem lhe disse Maria? Conta mais uma história da gente que passa no corredor?

                           Maria Cotovelo contava uma, duas, três, quatro... até o primeiro grito de alguém entrar no meio e fazê-la silenciar. Descia eu e ela ficava.
                          Maria esperava até eu voltar.

                            Entre uma subida até os olhos de Maria e o tempo que me deixavam longe dela desenhava-se um silêncio turbulento em minha mente.
                           Eu queria ver e perguntar.
                          Maria sabia falar.
                           Eu queria saber, eu precisava saber o que não me contavam.
                    Maria contava e contava e contava.
                     Maria sabia ver.
                     O corredor da rua era espaço pequeno para o tanto que ela via.


                           Maria conhecia o segredo do céu, da chuva, das nuvens de algodão, das nuvens de carneirinho, do sol que iniciava o dia, da noite que aparecia em forma de lua quebrada.
                          Maria também sabia quando a lua enchia as bochechas ou quando era hora de cortar uma fatia.
                         
                          Quem comia o pedaço da lua? Onde fica a casa dela? Porque ela não desce até aqui? Desce? Por onde ela caminha? Tem escada para chegar ao céu? Onde fica a portinha? Quantas portas o céu tem?

                          Maria visitava a lua sem avisar.
                         Chegava de mala e cuia e até pedia para ficar.
                         Leva-me Maria, eu também quero viajar!

                          Às vezes, um pescoço mais caridoso erguia-me. Maria sorria e eu poupava esforços para gastar mais tarde.
                       Então, Maria sussurrava de um modo que ninguém mais ouvia. E eu ria do que via. Ria alto do que Maria via mais. Ria com a barriga cheia de alegria amarela, rosa, branca, azul, verde... só Maria sabia das cores de minha alegria.

                         Era assim que eu vivia com Maria Cotovelo.
                         Era motivo de outros risos minha fixação pela Maria. Ninguém ouvia. Ninguém sabia que eu e Maria conhecíamos o mundo. Nosso segredo era saber os segredos. E eles se avolumavam na mesma medida de minhas perguntas.


                     Foi também a própria Maria quem contou minha primeira tristeza. Tristeza sem cor, com gosto de remédio amargo. Tristeza que virou saudade com jeito de xarope de agrião sem açúcar nem mel..
               Ninguém sabia dizer, ninguém sabia falar. Todos silenciaram e por muito, muito tempo me deixaram ficar, como se esquecessem da cadeira, dos perigos da janela, da rua e até da Maria.

               Com o cotovelo grudado ao dela eu entendi.
               Ela ajudou a encontrar. Não enxerguei bem a portinha, mas vovó soubera entrar.
               Lá no céu tinha escada, tinha porta e janela também. Vovó sabia disso, só esquecera-se de me contar.

                      Agora eu tinha mais coisas para ver. Queria encontrar a porta para visitar a vovó. Queria descobrir a escada para bater na casa dela.
                       
                Foi Maria quem me disse que eu não precisava subir. A janela era um bom lugar de onde a vovó poderia ouvir.
                Assim conversei com as duas e melhorei o gosto da saudade. Ficou com sabor de menta, meio doce, não tão amarga, não tão difícil de engolir.
                     Eu cresci com as duas olhando para mim e eu olhando através delas.

                      Vovó não desceu a escada, nem Maria deixou a janela. Acho que as duas sempre gostaram de conversar. Deve ter sido por isso que tão cedo a vovó me apresentou Cotovelo.
                   Avós sempre conhecem segredos e os contam sem contar.  Conhecem portas e janelas, corredores e ruas também. Conhecem passagens secretas, curvas, atalhos e longos caminhos que vão e vêm. 
                     Todos os dias eu visito a janela e ouço a conversa das duas.
                   Às vezes fico em silêncio, tenho muito a aprender. Elas riem colorido e disso não posso esquecer.
                   A rua parece pequena, mas sei que é só ilusão.
                   A rua é do exato tamanho que meus olhos podem ver. Se a Maria sempre soube, eu continuo querendo saber.
                  Olho tudo duas vezes, ou ainda outras mais, vai que em uma dessas olhadas, eu descubro o que ela vê?
                  Maria Cotovelo, eu disse quem é você?

                  Quem tiver curiosidade, não precisará de cadeira. Só precisa de uma janela, em uma rua mineira.
               Maria se multiplicou e virou namoradeira.
              Fincou seu cotovelo na história das Gerais.
             Quer saber das histórias? São muitas, são tantas... talvez eu conte mais.



              
 

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