Pulando estrelas
PULANDO ESTRELAS
Miquelito era demais. De seu primeiro pulo ninguém sabe nada, mas
conta-se e reconta-se que ele já viera assim: PPP _ pronto para pular.
Não que tivesse algo de fenomenal, pelo contrário, tomava a todos de
surpresa quando inventava seus pulos. Digo inventava porque muitas vezes
parecia que ele tirava um elástico de algum lugar, ou que desvendara o segredo
dos cangurus já que seus pulos eram tantos, a Austrália ficava logo ali!
Quem poderia dizer alguma coisa
de sua capacidade tão assombrosa? Não! Nem mesmo a mãe tinha o que dizer. Tão
lerda, tão rota, não entendia porque o filho era diferente dos outros onze irmãos.
Sempre pulando, sempre indo para onde ela nem imaginava existir.
Bem, ela garantia que o parto havia sido normal. Mas já o médico que amparara
Miquelito ao nascer, tinha lá suas angústias. Não era bem o que ele pensava _
coitado! Não tinha muita coragem de afirmar com precisão o que vira, pois isso
o deixaria em uma posição pouco confortável. Porém, vez ou outra desabafava:
_ Ara! Esse menino nasceu com os pés virados para a lua.
E para os que insistiam muito, muito, ele contava o que vira. Vira, mas
duvidada ainda e se preciso fosse, negava!
Miquelito nascera em uma quinta – feira de muito sol, sem dar aviso
prévio. Foi simplesmente colocando seus pés para fora E que pés!
Poderia ser a luz da sala de parto, mas também poderia não ser. Afinal,
todos os presentes viram e não entenderam. Examina daqui, examina dali, colhe
sangue, urina, ranho, belisca para ver se sai e nada! Nenhuma conclusão. Nenhum
diagnóstico.
Mas estava ali, aos olhos de todos. De quase todos, pois Miquelino
Miquelito pôs muita gente a correr. Para onde? Nunca se descobriu. Depois que a
notícia tomou a rua, as carolas, as fofoqueiras, as parteiras aposentadas, as
rezadeiras de prontidão e até os parentes desapareceram.
E não era para menos!
Onde já se viu um menino nascer com a planta dos pés colorida?Era isso
mesmo. Miquelito tinha as cores do arco-íris estampada embaixo dos pés. O azul pegava
todo o dedão, o amarelo ia até o calcanhar. E o rosa! Este parecia que estava
em todo o restante da pelo. Mas ainda havia espaço para o verde, o lilás e as
outras cores que confundiam os observadores.
Lavaram muito os pés de Miquelito. Até ervas foram maceradas pelas avós.
Os médicos haviam desistido. Possivelmente
tudo não passava de um processo de pigmentação temporária. (Era o processo
temporário ou a pigmentação que tinha data para desaparecer?) Sabia-se lá? O
único entendimento que todos tinham é que aquela estranheza deveria passar logo,
para a cidadezinha voltar ao normal.
A bem da verdade, nada mais poderia ser normal. Miquelito carregava as
cores do arco-íris por onde quer que andasse, ou melhor, pulasse. E ele pulava.
Houve uma vez, entre tantas vezes, que o menino foi procurado pela
cidade inteira e nada! Vira tronco sobe em árvore, procura na torre da igreja
até o padre fez novena _ e, nada!
No finalzinho da tarde, quando as carpideiras preparavam o choro, eis
que o dito aparece. Como quem de nada sabe,
apareceu caminhando miudinho na única rua calçada da cidadezinha.
Olhava para cima como que se tivesse perdido alguma coisa lá no alto.
E perdera!Mas quem iria acreditar?
Para os que quiseram ouvir, Miquelino Miquelito contou que pulara até as
nuvens. Pulara e tão entusiasmado ficara que
não resistiu em conhecer todas as nuvens do dia.Sim, pois as nuvens
mudam muito rapidamente e, lá se foi a que parecia um cavalinho, desmanchou-se
a que parecia um sorvete de morango, e
assim é. Elas são viandantes, viageiras por
profissão.
Foi pulando de uma para a outra, entregue ao prazer de sentir aquela
“coisa” sem explicação em baixo dos pés; roçando os braços, fazendo cócegas no
nariz, pegando o cabelo... era um afunda e pula , afunda e pula sem tamanho de
bom _ palavras do próprio _ que deu no que deu deixara cair do bolso a sua
tampinha.
Não era uma tampinha qualquer, havia fechado uma garrafa de refrigerante
com bolinhas no seu único aniversário lembrado.
O presente viera da avó Rosina única parente a dar conta das estórias do
menino de pés coloridos.
Ela ouvia e ouvia e ouvia. Não dizia nada.
Apertava o avental em volta da cintura gorda como que procurando uma pergunta
que nunca vinha. E como as perguntas não vinham, as estórias de Miquelito
continuavam e a tampinha de refrigerante com bolinhas virava uma chapinha fina
e lisa. Cada vez mais lisa, nem de longe lembrava sua antiga forma.Mas era isso
mesmo que ele queria. Dedo a dedo e dente a dente, apertava e... dentava a
pequena peça. Faltava pouco para ela virar ouro, como
fora perdê-la?
Cadê dar conta de revirar nuvens tão fofinha, fininhas e levinha?E se
chovesse logo? Choveria a chapinha na cabeça de alguém?
Com essa preocupação a roer seus pensamentos, Miquelito deixou para trás
os que ouviram e não acreditaram. Precisava encontrar uma forma de localizar
sua tampinha lisinha, lisinha.Pular toadas as nuvens outra vez seria arriscado
àquela altura da tarde.Esperar até o outro dia? As nuvens não estariam mais
ali, nem seriam as mesmas nuvens. \mas a chapinha era sua obra-prima, seu
tesouro, seu futuro. Ficar sem ela seria triste, muito triste.Aliás, ela já era
um pouquinho ele e ele já era um pouquinho ela.
Que destino!
Mas como Miquelito não conhecia limites encontraria sua tampinha a
qualquer custo.
Esta experiência o deixava mais decidido, mais maduro. Uma enxurrada de reflexões
o levou a questionar os bolsos. Isso mesmo!Para que servem os bolsos? Para
carregar coisas. E porque se carregam
coisas?
Verdade verdadeira: nunca mais usaria bolsos. Mas... e como seria? Suas
roupas eram um bolso só!?
Qual nada! Sem bolsos, sem roupas, sem roupas, sem bolsos. Seus próximos
pulos seriam lisinhos em pelo. Nada de cometer outros erros, nada de carregar coisas desnecessárias.
Dormiu melhor naquela noite, pois confiava encontrar seu tesouro perdido.
Mas o sonho que fizera, segundo alguns, alterou toda a sua vida.
Miquelino Miquelito sonhou com uma tribo indígena de costumes muito
parecidos aos seus. Lá, todos mordiam tudo: madeira, tabaco, perda, barro,
ossos, orelhas _ orelhas? Essa não fora a melhor parte. De mordida em mordida,
iam construindo seus objetos mais importantes.
Havia um detalhe para além do incrível _ esta palavrinha existe? __, os
índios dentadores sabiam identificar seus objetos como se neles tivessem
colocado identificação. Não havia confusão, não havia objeto perdido que não
encontrasse seu dono ( foi exatamente isso o
que eu disse: que não encontrasse seu dono ).
Tão rico foi o sonho que Miquelito especializou-se na arte de morder
coisas e reconhecer-se nelas. Bem, decorre daí um probleminha : não era
exatamente “morder “ coisas, mas sim “dentar” coisas.Nada melhor do que algumas dentadas para deixar uma assinatura
em algum lugar. (Ver: Cunha, Geraldo Antônio. Dicionário Etimológico da Língua
Portuguesa. Ed. Nova Fronteira, 2º edição, SP, l982, para confirmar a grande
diferença entre /morder/ e /dentar/. Vale o esforço procurar as páginas 247 e
532 desta obra colossalmente marcada pelo seu autor
–pesquisador-dentador-mordedor.)
O problema não estava mais só na valência do verbo “morder” ou “dentar”,
pois o menino tão impressionado ficara com o sonho que sem tréguas
exercitava-se na arte indígena do" imprint” (que tal pesquisar esta?).
Enquanto procurava a chapinha “um dia
tampinha de refrigerante com bolinhas”, tornava-se um “dentador” de primeira
grandeza.
Dentou todas as árvores da pracinha, os bancos da igreja, os quadros da
escola, o andor dos santos, a capa dos cadernos _ dos lápis e canetas nem se
fala.
Tanto dentou, tanto marcou, que o povoado esqueceu as esquisitices
anteriores.
Pés com as cores do arco-íris?Teriam sido apagados pelo crescimento
natural do menino? Teriam passado para outras partes do corpo?
Demais essa criança; se não uma coisa, outra coisa.
Alguns ainda sabiam de seus pulos, mas o assunto passara a ser outro: o
que Miquelito iria morder agora?E para que?
Faltava-lhe um corretivo, era a voz do
povo. Menino que inventa o que fazer termina criando problemas: rezava a boa
educação (hummmmm!???) Menino bonzinho não imagina além do que vê e nem quer o
que não tem.. Esta é uma sábisábia lei. (eeeeeekkkksssss!)
Miquelito precisava ser chamado à atenção antes que os outros meninos gostassem
da ideia de inventar coisas. Já se falava a boca pequena que algumas crianças mal educadas, claro! _
estavam discutindo seus sonhos. Longe dos pais _ coitados! Sempre são os
últimos a saber sobre as artes de seus rebentos. As crianças estavam formando
um grupo de apoio às estórias de cada um.
E se isso se espalhasse?Quem seguraria a imaginação destes meninos?Um
Miquelino Miquelito já era demais. Outros criadores de estórias? Outros
inventores de não sei o quê?
Ah!Não!?Alguém deveria fazer alguma coisa e já!
Chama-se o padre, recorre-se
ao vigário, pede-se ao prefeito, fala-se com a primeira-dama e... a todos
Miquelito ouve sem pestanejar.
Nu em pelo _ ou melhor, em pele __, ouve a esta última com dedicada atenção.
Acabara de voltar de uma de suas excursões , ou incursões pelas nuvens do dia e
os cabelos fofos no rosto fofo de tão fofa senhora deliciaram-no.Sequer lembrou
de cruzar as pernas ou de esconder seu reluzente traseiro.
Deu no que deu: além de dentador esquisito, criador de histórias, livre
demais, pulador demais, conhecedor de lugares que não se sabia existirem, agora
o menino dera para mostrar-se despudorado.
Lá tinha ele idade para apresentar-se sem roupa? Ei!!!Até que idade
pode-se mostrar o traseiro?E o pi... pi... a torneirinha que os adultos chamam
de pe...pe...pe...? E que idade tinha o Miquelito?
Esgotaram-se as perguntas e perderam-se a respostas.
Afinal, quando nascera o menino pulado?Sua mãe insistia basear-se na
idade do penúltimo filho, mas não era boa em cálculos. O pai, ora, o pai tinha
certeza de que ele já fizera hora e peso para pegar na enxada, mas desistira de
procurá-lo em lugares inimagináveis. Cabeça nas nuvens, não teria herança
qualquer da roça que plantavam.
A única que mostrava saber, mas não dizia era a avó Rosina. Redonda e
sábia avó continuava a ouvir Miquelino Miquelito sobre toadas as suas pulações.
Ouvira dele e acreditara que a Terra, lá do alto, parecia uma moranga azul. Moranga?
É, daquelas mais lisinhas, sem gomos, meio achatadas. E que a água era tanta
que dividia as terras em lugares e línguas diferentes. Isso de línguas diferentes
não era muito fácil entender, mas deveria ser verdade, pois outro dia Miquelito
havia lhe presenteado com uma caixinha colorida, bonitinha, com uns riscos
estranhos que ele afirmava ser uma escrita em chinês. Qual era
mesmo a palavra?Ora! Não importava. Mas a caixinha permanecia protegida no
bolso interno de seu avental, longe de olhos despreparados.
E foi a avó _ como geralmente são elas... _ a primeira a preocupar-se:
estavam “olhando" Miquelito. O que antes parecia apenas uma diferença
transformava-se em perigo.
Ela percebia os olhos do povo crescendo, agigantando-se sobre
os feitos de seu neto. Grandes olhos, olhos grandes, enviesados, tortos, semicerrados,
impacientes. Rezou com ervas catinguentas sobre a cabeça do menino. Benzeu seu
umbigo com urtiga braba e amarrou fita vermelha nos dois pés coloridos.
Miquelito achava graça: coisas de avó. Mas respeitava seus conhecimentos
e para aproveitar as rezas, pediu que Rosina inventasse uma reza especial para
trazer sua tampinha de volta.
Ara! Isso lá não era coisa para se pedir, e
de mais a mais, a este tempo a tampinha já deveria ter sido engolida pela
terra. E como na época de seu desaparecimento o menino ainda não era versado dentador,
a bichinha não saberia fazer o caminho de volta até seu bolso _ que também
precisava lembrar, tinha deixado de existir. Sem bolso, sem roupa, sem roupa,
sem bolso. Era isso! Que sossegasse um tiquinho só. Que fosse passar uns pulos
em outro lugar para depois contar-lhe as belezuras das terras que jamais conheceria.
Estava velha demais e não nascera abençoada pelas cores do arco-íris.
Menino também chora. E chora grosso, molhado, faz escorrer ranho sem
estar resfriado.
Foi o avental de vó Rosina que acolheu esta tristeza: deixar de lado a
procura de sua tampinha lisinha, lisinha?Miquelito P.P.P. jamais aceitaria tal destino.
Destino?Que destino?Ele tinha uma estória inteira para dentar e pular _ ou
pular e dentar _ até reencontrar a sua chapinha. Ela viraria ouro e ele não
perderia este acontecimento por nada deste mundo nem do outro!
Talvez estivesse na hora de tomar uma atitude diferente.
Enquanto a avó colhia mais ervas catinguentas, comprava mais fita
vermelha e tentava lembrar-se de outras rezas, Miquelito procurou outras
crianças. Não qualquer criança, mas aquelas que estavam contando suas estórias
e discutindo seus sonhos. Foi através delas que o menino pulador tomou
conhecimento do C.O.C.O. _ Centro de Observação e Controle da Ordem __, órgão
dirigido pela primeira-dama do município e demais membros de boa educação por ele
escolhidos. Há alguns dias, o grupo de crianças estava preocupado com "um"
tal documento que estava para ser divulgado. Sabiam que tinha a ver com
crianças que sonhavam, pulavam, não usavam bolsos, ou melhor, não usavam
roupas.
Ora, era só mais um C.O.C.O., ao entender de Miquelito. Sua verdadeira
preocupação era discutir uma maneira mais eficaz de encontrar sua
chapinha-tampinha-lisinha.
Ah!Bom! isso realmente importava Já não era sem tempo que se encontrasse
tão precioso objeto, marca pessoal de dedos, dentes, saliva e histórias. Muito
justo depois de tantos exercícios de "dentação". A cidade inteira era prova do
esforço de Miquelito para tornar-se excelente dentador. Mas voltando ao
assunto, ou melhor, parando nele: não seria de suma importância Miquelito
sonhar outra vez com a tal tribo indígena?Sim, posto ter vindo deles a arte de
reconhecer-se nas coisas e vice-versa _ por que não versa-vice?Versa-vice
pode?Poder podia (poderia?), mas o grupo agora precisava versar sobre outro assunto:
seria possível sonhar duas vezes com o mesmo sonho? Hum!... parecia complicado. Mas nada que uma
boa pesquisa não resolvesse.
Organiza daqui, organiza dali, dividem-se em grupos e eis as tarefas
cabalmente resolvidas. Sim, após muita leitura, pesquisa e até algumas ligações
telefônicas, cada grupo de trabalho conseguiu arrolar (bonitinha esta palavra,
não é!? O povo da UNICAMP parece gostar muito dela... parece!Ninguém está
afirmando nada, tudo não passa de mera especulação de participantes dos COLE _
não sabe o que é? Bom motivo para pesquisar.) algum tipo de informação comprovadamente
científica e outras nem tanto assim , acerca do universo onírico dos sonhos (onírico...em
que sentido? Tudo bem, tudo bem! Com certeza o leitor irá à outra pesquisa.)
Mas retornando, seria possível que Miquelito sonhasse outra vez o mesmo sonho?
De acordo com alguns, o sonho recorrente era possível, porém involuntário; de
acordo com outros, não existia qualquer possibilidade de inferir nos elementos
psíquicos do sonho; ainda para alguém, o sonho era uma grande viagem através do
inconsciente, enquanto para outro alguém era só o resultado de um dia
estressante. Crianças! As informações estão se avolumando de modo nada prático.
Pode-se ou não levar o Miquelito para o sonho anterior?
Acontece que o rol (lindinha também,
né?) de informações é ainda maior, algumas discordantes, outras aproximadas,
outras estapafúrdias. Estapafúrdias? Talvez essas possam ter algum elemento
importante... Então? Então?
Bem, bem, bem.... de acordo com um autor
que não se deve citar _ já que até hoje não se sabe que fim ele levou ou que
fim deram nele ou mesmo se ele teve fim _, existe um exercício para conseguir
sonhar tantas vezes quantas se fizerem necessário com o mesmo tema. Caramba! E
vocês demoraram tudo isso para dizer algo importante? É que... não parece tão fácil assim, e ele
mesmo escreve que aprendeu esta prática com um índio muito antigo. Quem sabe,
essa coisa de índio com índio, não faz você sonhar com aquela tribo inteira,
hem?!
Ensina daqui, treina dali, tenta e
tenta e tenta... nada de Miquelito sonhar com a tribo de índios dentadores. A
torcida crescia dia a dia. Outras crianças aderiam ao G.A.I.A. _ Grupo de Apoio
à Inteligência Ativa _ na mesma medida em que crescia o número de simpatizantes
ao C.O.C.O.
A cidadezinha dividira-se. Mas não
de todo, pois o grupo dos que temiam tomar uma posição, irmanados por aqueles
que realmente não sentiam qualquer apelo para sequer pensar no que ocorria , formava
um cinturão de ignorância. Afinal, isso era mais comum do que se poderia
esperar e então estava dentro da normalidade.
Normalidade perigosa para a urgência que Miquelino Miquelito imputara ao
seu intento. Sonhar, sonhar, sonhar...
Algumas vovós, tocadas pela angústia do
neto de Rosina, esqueceram suas divergências e carolices e esmeravam-se na
produção do melhor chá calmante, chá sonífero, chá espanta-olho-gordo, chá
chama-coisa-perdida... Nessa de coisa perdida,
o padre que não ocupara lugar algum na arena das discussões, lembrou-se de uma
forte oração para Santo Antônio, inconteste achador de objetos extraviados. Dá-lhe
oração para Santo Antônio , já que orar
não faz mal algum à alma do povo.Bem pelo contrário. Grande parte dos sem
parte, tocaram-se pela novena das terças-feiras e além do terço inteiro, ainda
rezavam o Responsório ao Santo achador de todas as coisas _ até mesmo das
impossíveis, como dizia Dona Cacilda, lembrando-se de seu casamento após
fervorosa novena ao Santo que carrega o Menino Jesus no colo.
Ocorre que, no furor em colaborar ou prejudicar os intentos miquelínicos,
foram todos perdendo a razão inicial do movimento. A cidadezinha tomara-se de
um espírito novo, nada ainda muito definido, mas suficientemente detectável no quadro social. Modorrentos
agora, só os cachorros vadios. E estes já faziam um pequeno número.
Miquelino passara a dormir mais, ou tentara fazê-lo. Diminuíra seus pulos;
suas incursões pelas nuvens contavam de pequenas idas, pequenas voltas entre
aquelas que antes tanto prazer lhe proporcionavam. Dentar? Não, nem pensar. A
ordem era sonhar, sonhar, sonhar, para encontrar uma forma de reaver sua
tampinha-lisinha.
As cores do arco-íris na planta de seus pés esmaeciam E para não
inventar estória, mais uma vez foi vó Rosina quem deu conta das mudanças. Ara!
Que coisa essa que estava murchando a alegria de seu neto. Nem mais estórias
ele sabia contar, não fora a nenhum novo lugar... isso não estava bom. Não
estava bom mesmo.
A cidade fervia contra ou a favor, contra ou a favor do que? Será que
alguém lembrava o que era que seu neto estava procurando?Ara! Ara!Ara! Avós
também podem tomar atitudes. E vó Rosina tomou.
Trocou seu avental por um florido xale _ presente de seu único e sempre
grande amor, Feliciano, avô de Miquelino _, prendeu os cabelos no coque redondo
das vovós, passou água de alfazema, respirou fundo e pôs-se a caminho. Sabia
onde deveria estar seu menino. Com tanta tristeza derrubando seu beiço, só tinha
um lugar para ele ficar.
Não é que ela estava certa? Deitado, encolhidinho, encolhidinho, Miquelino
escondia os olhos do brilho do sol, na linha que faz a gente pensar que o céu
encosta na Terra. Ele fora longe, movido pela saudade e decepção. Contrariando
toda a ajuda que seus amigos do G.A.I.A.
lhe davam, ele andava insone. Logo ele
que precisava tanto dormir para sonhar.
Deixa estar. Vó Rosina sabia de tudo isso e muito mais. Sem falar
palavrinha, tomou o pequeno em seu colo, aninhou-o em seu farto peito, cobriu-o
com o xale perfumado e cantou. Vó Rosina cantou com o coração, cantou com os
pulmões, cantou com as mãos, com os olhos, com os lábios. Cantou como só as
avós sabem cantar.
Os pássaros silenciaram para ouvi-la, as árvores não ousavam farfalhar
suas copas com medo de quebrar o encantamento. Até mesmo o sol amainou seus
raios para confortar o pequeno Miquelino.
Se se pudesse traduzir vó Rosina, talvez se chegasse a um canto mais ou
menos assim:
"Voe, voe, voe meu pequeno garotinho,
voe alto e sempre
alto veja o ninho
ele espera por
você aqui, quentinho
voe alto, vá
buscar seu presentinho.
Vá sem medo, vá sem dor,
Não há hora para
voltar,
Esse tempo é só seu agora,
Nada tema, vá brincar.
Suba montes e montanhas
Não irá se cansar
Veja do alto o
seu ninho
Quentinho,
quentinho
Aqui ele está.
Beije flores e
nuvens,
Dance com os pardais,
Visite a todos
eles,
Tem seu tempo
para brincar.
Voe, voe, meu
menino,
Voe alegre e feliz
Você é
livre, é criança
Deixe aqui o que não quer.
Olhe as
cores de seus sonhos
São puras e são reais
Faça todos
os seus planos
Com
castelos de cristais.
Sem
gigantes, sem dragões,
Nada tema meu
amor
Voe alto,
muito alto,
Vá buscar o que quiser.
Voe, voe, voe...”
É, eu disse “se” se pudesse traduzir... Vó Rosina assim ficou, por horas
ou dias, ninguém deu falta deles. Braço de vó não cansa, colo de vó não murcha!
O horizonte encolheu sua linha para proteger os dois. Os animais fizeram
um círculo, cada um deu um pouco do que podia. Sombra, penas, calor, olhar de compreensão,
até que... espreguiçando feito lagartixa feliz, ei-lo de volta! Mais desperto
do que quando nascera, Miquelino beijou a avó, lambeu, beijou e lambeu tantas
vezes quanto teve saliva para mostrar seu amor.Os dois viraram uma grande e
fofa bola colorida com um restinho de odor de alfazema
A linha do horizonte voltou para seu lugar, que céu e Terra também não
são de ferro, precisam namorar. Os pardais afinaram o canto e por todos os
lados novas sinfonias cortavam o ar. A fofa vó carregava triunfante seu fofo peito.
Áh! Colo de vó é uma coisa de outro mundo com sabor das melhores coisas deste.
Miquelino não fechara a tramela desde o momento em que acordara. Tinha
tanto para contar que precisaria de muitos dias inteiros da avó só para ele.
Na medida em que se aproximavam da cidade, os fofoqueiros de plantão
acionaram os ouvidores de prontidão. Conta daqui ouve dali, passa adiante acolá.
Todos, todinhos ficaram sabendo do retorno de Miquelino e da presença de
sua avó. Com certeza ela fizera reza braba, e haveria de contar. Ai dela se não
desse a receita.
Os amigos do G.A.I.A. chegaram primeiro, mas não menos atrás os
participantes do C.O.C.O. Eita!, que a junção estava boa.
A primeira-dama bem que tentou
ocupar seu lugar _ isto é, o lugar que ela pensava que era dela, seja bem dito!
_, mas com um dar de peitos, vó Rosina posicionou-se devidamente. Xale em punho
beijou a testa do neto, fez três cruzes na testa e espalmou a mão sobre seu umbigo.
Que tentassem entristecê-lo outra vez, haveriam de ver-se diretamente com ela.
O pedido por explicações apressou a fala de Miquelino. Queria tranquilizar
a todos, estava tudo bem. Sim ele conseguira sonhar, e até bem mais do que
isso, mesmo que não soubesse explicar.
Contou como criança sabe contar, desde o princípio, fazendo caras e
bocas e mexendo muito as mãos, quando não levantando as solas dos pés,
iluminadamente coloridas.
Dormira e sonhara sem parar. Não, não encontrara a tribo de índios, nem
pensara em procurar.
Pois seu sonho tinha sido um voo alto, muito alto, que o
ajudara a pensar.
Até um anjo ele encontrara, em um castelo de cristal. Muito fofo e carinhoso,
o anjo carregava um xale e coisa e tal. Cheirava alfazema e era lindo como
ninguém. Cantava músicas do céu enquanto brincava sem parar. Esse anjo lhe
mostrar que a tampinha-lisinha-lisinha já se tornara ouro e por isso não pudera
ser encontrada.
Ouro? Tinha certeza? Virara ouro assim, de tantas dentadas?
Que dentadas qual o quê, não era essa a magia. A
tampinha- lisinha-lisinha servira apenas de pretexto.
Pré... pré... texto?
É, mais ou menos isso. Miquelino contou
o que sentira, deixando de lado o que talvez pudesse ter acontecido. Explicou
como gente grande que sabia ter nascido diferente, mas que tudo isso era bom,
pois todos nascem com alguma marca de distinção. Apenas, em alguns, a marca não
fica tão visível assim. Outros, não gostam das diferenças e esforçam-se ao
máximo para serem iguais _ iguais a quem? _ Iguais aos que eles acreditam sejam
os melhores, ou piores, o que é muito ruim. Bem, daí que, por todos terem
sempre acreditado que ele era muito diferente, ele se sentira reforçado para
fazer tudo o que fez. E que continuaria fazendo, pois se sabia capaz de fazer
muito mais. Nascera P.P.P., com a cor do arco-íris, com capacidade para dentar,
mas, não sabia cantar, por exemplo, e queria aprender. Queria aprender o que
não sabia e ensinar o que nascera sabendo. Para isso, seria membro ativo do G.A.I.A,
e convocava todas as crianças para fazerem parte dele.
Quanto ao C.O.C.O., bem, isso
seria um detalhe para os adultos resolverem. A começar pela sigla, o nome e o
resto parecia não cheirar bem.
Mas e a tampinha? E a tampinha
com as marcas de sua estória?
Eu sonhei e entendi que minha
tampinha dentada está aqui, em todas as marcas que fiz e farei. Minha estória
está apenas começando.
Mas ela transformou-se em
ouro, você precisa saber como, para fazer outras.
Não fui eu que transformei
minha tampinha em ouro, foram todos vocês que transformaram em ouro a minha estória.
Agora, se me derem licença,
preciso carregar o xale de minha avó Rosina, ele pesa muito e ela é muito
fraquinha. Vou com ela para casa... estou com saudade de seu colinho.
Não é que os dois, ao
voltar para casa, encontraram um pote de... Ara! Isso fica para outra história,
esta já tem ouro demais.
FIM... ou
não?
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