MINHA MÁXIMA CULPA...
MINHA MÁXIMA CULPA
Zelinha era uma daquelas mulheres que sabe sorrir com a alma. Bom,
melhor dizer o que ela mesma diz:
_ Eu sabia sorrir! Sabia!
Segundo as falas de Zelinha, sua alma transbordara em sorrisos, alegria,
boas amizades e todo o restante das manifestações que fazem a vida valer a pena
ser vivida. Zelinha sabia viver, até o dia em que decidiu desposar Aureliano.
Existe um axioma popular que determina o início dessa história ainda
real:
_ Água e vinho não se misturam, minha filha. Não se misturam!
_ Ora, minha mãe! Não é água e vinho. É água e óleo!
_ Que seja! Estou dizendo que muitas misturas não dão certo.
_ Mas ele é tão bonzinho...
_ Bonzinho não é a palavra certa.
_ Mas... é honesto.
_ Sim! É!
_ Então, mamãe! Se ele é a água e eu o vinho...
_ O óleo!
_ Não! Prefiro o vinho...
_ Hum!!!
_ Talvez a mistura faça bem para nós dois.
_ Desde quando você gosta de água tingida?
_ Você está sendo severa, mãe!
_ Melhor você pensar... agora ainda dá tempo de desistir.
_ Eu gosto dele!
_ ...
_ Às vezes ele me lembra o papai.
_ Nunca! Seu pai gostava de vinho puro e...
_ E, o que?
_ Seu pai era um homem vivo!
_ Mamãe!?
_ E sabia abrir a boca para conversar.
_ ...
Esse era um ponto.
Zelinha pensava que por trás do silêncio de Aureliano estava uma grande,
absoluta e quase intocável timidez. Timidez essa que a alegria contagiante
expressada em sorrisos, bom gosto musical, inclinação para as danças quentes e
movimentadas fariam por cavoucar, extrair, arrancar.
_ Você não é
tímido!
_ ...
_ Você é egoísta!
_...
_ Meu Deus,
Aureliano. Você não abre a boca nem mesmo para se defender?
_ ...
_ Eu respeito o seu jeito, mas nós dois precisamos conversar.
_ ...
_ Você é o meu parceiro, eu quero conversar com você!
_ ...
_ Casei com você para sempre! Nós vamos envelhecer e precisar um do
outro...
_ Estou me sentindo sozinha!
_...
_ Está bem que você não goste de nem de vinho, nem de água, nem de óleo,
nem de azeite...
_ ...
_ Eu não sei do que você gosta!
_ ...
_ Aureliano, olha para mim!
_ ...
Quarenta e oito anos depois, com um rol de diálogos traduzidos pelo
silêncio de Aureliano e as tentativas de Zelinha ela entendeu o
incompreensível:
_ Você não sabe se está vivo, Aureliano.
_ Au! Au! Au!
_ Bonitos vocês dois! Diz para o seu cachorro que eu não quero que ele
se meta na conversa!
_ Au! Au! Au!
_ Desisto!
De acordo com Zelinha, desistir também era uma forma de aceitar o que
não poderia mudar. Tentara, e quem a conhecia sabia do esforço que fizera
durante mais de quatro décadas.
Esforçara-se para descobrir do que Aureliano gostava. Incentivara-o a
participar do que ela gostava. Tentara descobrir com ele novos gostos. Buscara
amigos que gostavam deles e queriam ajudar na empreitada de devolver a alegria
à mulher que soubera sorrir. Buscara ajuda para Aureliano descobrir sozinho.
Nada!
Ou melhor: tudo estava perfeito da forma que estava, para o Aureliano,
claro!
Ele vivia da forma que gostava. Vivia bem, segundo olhares externos. Não
mostrava sinais de qualquer tristeza, de enfado, de desconcerto, de cansaço...
tanto quanto não apresentava qualquer outro sinal. Aureliano vivia.
Simplesmente vivia, como que sugando o ar que lhe passava sem pressa e preço
pela frente das narinas.
E parecia viver ainda melhor desde o dia em que descobrira sua afinidade
visceral com os mamíferos da raça canina.
_ Eu não quero esse cachorro na nossa cama!
_ ...
_ Não quero!
_ Au! Au! Au!
_ Ora! Você pare de latir que a conversa ainda não chegou aí.
Chegara! A conversa chegara até o universo canino dos vira-latas que
Aureliano trouxera de algum lugar. Chegara e fazia efeito sobre as percepções
do bicho.
_ Pode uma coisa dessas? O seu cachorro me responde e você, depois de
todos esses anos continua sem falar nada!
_ Au! Au! Au!
Era demais para Zelinha. Tudo bem aceitar o marido mudo, quieto e parado
já que não havia escolha. Mas deixar um cachorro ocupar o seu lugar na cama, já
era demais até para ela, escolada em paciência e boa vontade!
Conversou com o filho que a apoiou inconteste. Era também difícil para
ele conviver com aquele pai silencioso que em nada expressava estar ciente da
vida que levava.
_ Ele não é doente, mamãe! Simplesmente é o jeito dele!
_ Que ele não é doente, eu sei. Mas eu estou ficando!
Sabia disso!
Não havia dúvidas sobre a distância que Zelinha e Aureliano mantinham
vivendo juntos há tanto tempo. Quem os conhecia lamentava a situação que sombreava
dia a dia o semblante antes iluminado de Zelinha.
Ela deixara de dançar, para não ofender a honra de Aureliano e a sua
própria: mulher casada deve ficar com o marido. Sim, ela ficara!
Deixara de
sorrir, por que fora perdendo o viço que lhe subia da alma. Sorrir sozinha?
Para quem e por que motivo? Mulher casada se comporta como mulher casada!
Deixara de ir a festas porque Aureliano não a acompanhava. Mulher de
família acompanha o marido. Ela acompanhara, na solidão em que sua vida se
transformara.
O filho, como todo filho, cresceu rápido demais e tomou o próprio rumo.
Zelinha só tivera um filho, um único filho para alegrar sua existência. Nem
sabia exatamente como e por qual milagre o tivera, pois Aureliano também
esquecia de comparecer em suas obrigações maritais.
_ A partir de hoje, vou dormir em quarto separado.
_ ...
_ Ouviu, Aureliano?
_ Au!Au!Au!
_ Você, eu sei que
ouviu, não é?
_ Au!Au!Au!
_ Mas é claro! A cama agora é toda sua!
_ Au!Au!Au!
_ Minha nossa! Estou conversando com um cachorro! Acho que fiquei
maluca!
_ Au!Au!Au!
_ Você não acha nada, Totó! Nada!
Para garantir a sua sanidade mental, Zelinha esmerou-se em organizar o
novo quarto. Com a ajuda do filho e da nora, pintou as paredes de uma cor viva,
alegre, aberta. Comprou uma cama de viúva...
_ Mamãe!
_ Meu filho, eu sou realista! Realista!
Com o apoio da nora, instalou um computador, conectou-se a todas as
redes sociais disponíveis, assinou canais pagos de televisão, reformou o antigo
aparelho de som e...
_ Estou virando gente!
_ Não exagera, mãe!
_ Isso é pouco, meu filho. Muito pouco!
Ainda com a ajuda da esposa do filho, aprendeu a acessar as músicas que
gostava via internet, a enviar e-mails com anexo em alta velocidade e a usar a
câmera do computador.
_ Mamãe, será que precisa instalar essa câmera?
_ Por que não?
_ E por que sim?
_
Deixe sua mãe, meu amor. Ela está se relacionando com o mundo. Deixe.
_ Ah! Vocês duas...
_ Cuidado, meu filho. Um percentual seu é do Aureliano.
_ Ô!, mamãe, só estou preocupado com a sua segurança!
_ Há quase cinquenta anos estou segura
demais! Demais!
_ Mãe...
_ Você sabe que tenho razão!
Zelinha tinha razão. A última vez em que arriscara em alguma situação na
vida fora no dia em
que,
a despeito de todas as falas de sua mãe e conhecidos, aceitara casar com
Aureliano. Arriscara e descobrira que suas tendências para a sorte, segundo ela
mesma, não se destinavam ao universo marital. Sorte no amor? E quem imaginaria
ser possível arriscar em um contexto tão... tão...
_ Tão improvável! Movediço!
_ Mamãe! Eu sou o resultado de seu casamento.
_ Para ter você eu não precisaria ter casado...
_ Mãe!?
_ Não se faça de desentendido, meu filho! É isso mesmo! Eu casei sem
conhecer o seu pai.
_ Está vendo? A responsabilidade também é sua.
_ Eu nunca disse que não era. Se eu soubesse o que sei hoje, teria
mandado o seu pai para a p...
_ Mamãe!
_ Palavrões fazem bem à saúde. Limpam a garganta e desanuviam a alma.
_ ...
_ Você também deveria dizer alguns vez ou outra. Faz bem!
_ Você mesma me ensinou o contrário.
_ Erros de percurso, meu filho. Erros de percurso.
Zelinha montou o quarto a seu
gosto e prazer completo. Nada faltava na fase da independente convivência com
Aureliano e seu cachorro vira-latas.
O cachorro, pobre animal, não poderia ser penalizado pelo dono que o
representava.
Verdade verdadeira, ela não sabia exatamente quem comandava quem, quem
representava quem, mas na dúvida, a responsabilidade legal recaía sobre o de
duas patas. Dos dois, sua apreciação tendia, em momentos de silêncio e paz, a
quedar-se sobre o Totó, ser irracional, indefeso, sem muitas escolhas. Um
vira-lata cuja fidelidade ela admirava. Olhar para dentro daquela alma canina a
levava a conjecturas sobre as atitudes de Aureliano: teria levado o cachorro
para a cama de casal por que desejava que ela, Zelinha, deixasse o leito?
Porque preferia a companhia do cachorro a dela?
Não tinha dúvidas sobre a assertiva das duas questões, mas será que
Aureliano usara o cachorro para economizar o contato verbal? Sim, pois o visual
era manifestação inválida na vida dele desde há muito e muito tempo.
O quarto era um espaço próprio, único, independente. Sua identidade
amarfanhada agora tinha um lugar para resgatar-se. Vivia sozinha a dois fazia
tanto tempo que dar-se o luxo de não sofrer mais quase, quase, quase gerou
culpa. Gerou, mas tratou de empurrar o sentimento que surgia em situações
específicas para a “ilha” de quadros passados e presentes que amparavam os
movimentos de sua libertação. Ilha essa que ainda sofria maremotos
com algumas lembranças e presenças de sua condição de “mulher do Aureliano”.
Em algum lugar da cidade, por
todas as razões que explicam uma cidade pequena, uma família grande e pessoas
interessadas na vida alheia, havia alguém pronto para perguntar-lhe:
_ E o Aureliano, melhorou?
_ E ele estava mal?
_ Como assim? Você é a mulher dele e não sabe como ele está?
_ Saber eu sei, mas não foi isso que você perguntou.
_ Mas, vocês não moram juntos há cinquenta anos?
_ Pois é, para você ver. A casa é muito grande.
_ ...
O olhar espanto-julgamento-condenação não falhava. Mudava de rosto,
alterava a duração e o comprimento, mas estava lá! Infalível!
Falar do marido na rua? Superara essa fase. Aprendera que ao falar de
Aureliano vivenciava novamente a situação que contava, tamanha a frustração
acumulada pelas décadas de desencanto. E ainda, precisava lidar com um outro
olhar, o do tipo “eu não disse?”, sem saber qual das duas situações a enfurecia
mais. Dessa forma, optara por
se fazer de desentendida, desinformada, desconhecedora de qualquer assunto
relativo ao marido.
_ Sou uma viúva de marido vivo.
_ Não seja tão radical, sogra.
_ Mas é a pura verdade, Olívia.
_ É...
_ É!
_ A senhora já tentou, com jeitinho, com muito jeitinho, fazer com que
ele...
_ Com jeitinho, com jeitão, com carinho, com gritos, com pedidos, com
ameaças...
_ É difícil. O sogro é um pouquinho distante!
_ Um pouquinho? Minha filha, reveja o seu conceito sobre distância!
_ É...
_ É só isso. Eu já aceitei. Mas não vou dividir o caixão com ele. Ainda
mais um caixão cheio de pelos.
_ Sogra! Não fale assim. Aqui é sua casa.
_ Minha casa está fechada há muito tempo, Olívia. Mas não vou ajudá-lo a
me enterrar viva também!
_ Ai!, sogra! Vamos parar com essa conversa pesada.
Zelinha tentava, mas ainda era pega pelas armadilhas que ela mesma
criava. Falar do Aureliano era mais comum do que desejava.
Decidiu que o marido não entraria em seu espaço.
_ Quero vocês dois longe de minha porta.
_ ...
_ Au!Au!Au!
_ Entenderam?
_ ...
_...
O silêncio de Totó poderia ser uma negação. Não!, ele não entendera;
não!, ele não queria entender; não!, ele entendera e não obedeceria e, portanto
o problema estaria instalado mais uma vez.
_ Eu
vou colocar você para fora, Totó! Me respeita ou eu lhe deixo no olho da rua!
_ Grrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrr!!!
Era a prova de sua desconfiança.
Teria outros problemas com o cachorro além dos atuais.
_ Vou marcar meu território.
_ Grrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrr!!!
_ Faço xixi aí se for preciso.
Mas daqui você não passa!
A delimitação por dedo em riste e a linha imaginária traçada de uma
parede a outra exigiu correção material após a primeira saída de Zelinha.
_ Quem mandou você sujar o meu tapete?
_ Grrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrr!!!
_ Tal dono tal cão!
Novamente Zelinha encheu-se de vontade e aumentou o espaço de seu
espaço. Tomou como território particular a pequena sala que antecedia o seu
quarto. Tomou, particularizou e colocou uma porta segura para garantir que nada
além dela e de quem convidasse pudesse se aproximar do território recém
conquistado.
_ Ninguém mais vai me
fazer passar pelo que eu não quero. Nem mesmo você, Totó! Nem mesmo você!
Espaço ampliado, consciência expandida.
Zelinha gostou da ideia de
aumentar seus domínios e resolveu comemorar a nova conquista:
_ De grão em grão a galinha enche o papo.
_ Não entendi, mamãe!
_ É simples: aos poucos, como quem não quer nada...
_ Mamãe!
_ Você está exagerando, meu filho! Sou sua mãe!
_ É! Ainda bem que você lembra!
A esposa de Aureliano convidou as duas amigas mais chegadas,
companheiras de infortúnios semelhantes em número, grau e gênero, casadas com
outros Aurelianos da vida para inaugurarem sua sala de visitas.
_ Uma sala só para você?
_ É só uma salinha...
_ Mas é para você!
_ Com certeza! Aqui ninguém entra a não ser que eu queira.
_ Quando você vai tomar o resto da casa?
_ Bem, a cozinha não me interessa. Afinal, o Aureliano faz comida como
ninguém. E a lavanderia... humfp! Deixa lá para ele pensar que ainda tem a
maior parte!
_ Mas...
_ Devagar, minha amiga! Devagar!
A novidade se espalhou. Afinal,
como já dizia antigas peças da tragicomédia: “muda-se o palco, mas os
personagens são os mesmos em histórias que se repetem”.
Zelinha foi chamada para várias reuniões em grupos de mulheres
interessadas na solução pacífica das diversidades domésticas.
De reunião em reunião ela dividia parte de sua história, especialmente a
que explica como deixara de fazer o que gostava e agora se recuperava
aprendendo a fazer coisas novas.
Zelinha conheceu mulheres com histórias parecidas com a sua. Conheceu
outros Aurelianos que apesar de não expressarem diretamente o descontentamento
que sentiam, deixavam claro que ela poderia ter permanecido onde estava por
mais tempo.
Criou um blog onde escreve suas impressões diárias, responde dúvidas,
opina, expõe conselhos, dita receitas de como manter-se a salvo da invasão de
identidade em casamentos que amadurecem sem crescer para lado algum.
Zelinha hoje completa 82 anos de idade e mais e mais algumas décadas de
Aureliano.
Totó morreu de velho. Zelinha, compadecida, presenteou seu marido com
uma cachorrinha peluda e cheia de vontades.
Aureliano tomou-se de tal arrebatamento diante do novo cachorro que
tentou esboçar um sorriso de agradecimento.
Zelinha
entendeu: quem não tem gato, dorme com cachorro.
E afinal, a culpa era dela, só dela se, aos quase noventa anos Aureliano
ainda era o mesmo.
_ Minha culpa, meu filho. Minha máxima culpa!
_ Mamãe!...
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