Arco-Íris Invisível parte I
Tela em pigmentos/Ivane Laurete Perotti |
ARCO-ÍRIS INVISÍVEL
Ivane
laurete Perotti
(prêmio
LITERARTE 2012 em Literatura Nacional Infanto-juvenil)
No
início, quando o vi, não entendi muito bem o que ou quem era. Se era gente ou
não era gente demorou um pouco para saber. Bem, gente!, gente!, não sei se
poderia ser, mas eu queria dizer melhor uma coisa de cada vez. Como essa é a
primeira vez da coisa que eu quero dizer, vou começar assim!
_ Ei!!! Desce daí!
Nada ouvi em resposta. Nem um
único sinal de atenção.
_ Ei! Desce... vem brincar
comigo. Ei...
Caramba! Nem vou repetir
as tantas vezes que gritei para ele descer.
Teria problemas de
audição?
Já começava a sentir um
ciumezinho daquilo que me parecia ser a mais incrível brincadeira que já vira.
Olhei ao redor procurando
uma escada, ou qualquer coisa para subir, quando tive a ideia de fazer uso de
meus dotes não aconselháveis para outras crianças. Era
o que minha mãe falava toda
a vez que eu descobria o peso de algum objeto e a distância que esse objeto
poderia alcançar.
Eu era um excelente atirador de
objetos. Qualquer um deles que eu pudesse levantar voava longe em minhas mãos.
E aquela bolinha que alguns chamavam de
“mamão-bobo”, cheinha de espinhos, apareceu diante de meus olhos.
Preparei o braço esquerdo
rodando-o algumas vezes para ganhar força e velocidade.
Potoft!
_ Ai!!!
O “mamão-bobo” chegara ao
alvo ao mesmo tempo em que o grito de atenção chegava até mim.
_ Pontaria de primeira!
Ei!!! Ei!!!
Ele ainda procurava a razão da
coisa que subira até sua cabeça quando me viu.
Engraçado... eu poderia
jurar que o susto dele ao me ver fora maior do que ser atingido por uma
bolotinha cheia de espinhos gordos.
Será que ele não queria brincar
comigo?
_ Ei!!! Desce aqui...
Fiquei insistindo com vários
“desce! desce! desce!” até ele aceitar o meu convite.
Coisinha difícil! Eu só
queria brincar com alguém naquele dia tão molhado pela chuva que parara fazia
pouco.
Enquanto ele descia
olhando para todos os lados, me dei conta de que não conseguia ver a escada que
usava. Seria uma cordinha transparente? Ou um daqueles objetos usados nos
circos para...
_ O-olá!? Vo-voc-você pode
me ver?
Ele tinha probleminhas para
falar. Parecia meu irmãozinho menor, o Fabinho.
_ Se eu posso? Claro que
posso! Tanto que já estou chamando você faz um tempo grandão assim.
Ele não pareceu muito
interessado no caminho que meus dedos faziam para mostrar o tempo eu estava ali
chamando por ele. Continuava olhando ao redor sem me dizer o que procurava.
_ T-t-tem certeza?
_ T-t-tenho... (ih! Se a
mamãe me escutasse fazendo essa brincadeira!!! Seria motivo para mais um sermão
sobre não zombar dos outros, respeitar as diferenças e... mas eu só queria que
ele prestasse atenção em mim. Na verdade, não estava zombando dele, pois sabia
o quanto era difícil aprender a falar, ainda mais quando se é tímido e se tem
dificuldades para fazer amiguinhos.).
Ele nem percebeu a
brincadeira. Nem perguntou sobre o “mamão-bobo” que voara de minha mão direto
para sua cabeça.
_ Minha orelha!
_ O quê?!
_ Minha orelha...
_ O que tem sua orelha? (eu
nem estava enxergando alguma orelha. Ele tinha um cabelinho tão comprido que
parecia uma... esquece!).
_ O que você está chamando de
“mamão-bobo” voou direto de sua mão para a minha orelha!
_ C-c-como assim?
_ Você está aprendendo a falar?
_ N-n-nãao!!! É que... (ele
estava escutando meus pensamentos?).
_ Não! Você está pensando muito
alto!
_ Me ensina! Vai!? Me ensina
este truque para eu fazer com o pessoal lá de casa e...
_ Não sei ensinar, mas posso
pensar sobre isso.
_ Tá! Então pensa direitinho..
_ Você realmente consegue me
ver?
_ Claro que consigo. Você é tão
grandinho quanto eu. Só... só... esse seu cabelo que é muito diferente.
_ Não sei... para mim é igual ao
de todos. E cadê o seu?
_ O meu, o quê?
_ O seu cabelinho...
_ Tá aqui, oh!
_ Tão curtinho... você está
doente?
_ Não! Eu sou um menino e... deixa
pra lá! Vamos brincar?
_ Mas era isso que eu estava fazendo
lá...
_ Eu sei, por isso mesmo lhe
chamei. Mas não consegui ver a escadinha que...
_ Olha!Eu não sei como você está me
vendo, mas...
_ Esquece isso, vamos brincar de
esconder lá em cima!
_ Não! Lá em cima, não! Eu...
_ Tudo bem, vamos brincar por aqui
mesmo, daí não preciso avisar a mamãe... ela tem muito medo de altura.
_ É!... você está me vendo e...
_ Vamos brincar de esconder. Assim,
quando eu encontrar você vai saber que estou enxergando bem.
_ Tá!... acho que eu posso brincar
um pouquinho aqui, mas só um pouquinho.
Nós dois sabíamos que “brincar um
pouquinho” na linguagem de uma criança quer dizer brincar muito e muito e
muito!
Brincamos até o finalzinho da
tarde.
Eu estava todo suado e sujo de
terra molhada. Ele parecia que tinha terminado de tomar banho.
Nenhuma pedra, arbusto ou tronco
de árvore ficou fora de nosso alcance. Quanto mais nos escondíamos, mais hábeis
ficávamos em encontrar um ao outro.
Quando sentamos para descansar –
na verdade, quem estava cansado era eu mesmo!, tanto que pedi para sentar um
pouco enquanto acenava para a minha mãe que a cada pouquinho nos olhava da
janela.
_ Você mora aqui perto?
_ Mais ou menos
_ Qual o nome de sua rua? Sua mãe
vem lhe buscar? Você já pode sair sozinho? E...
Só mais tarde eu lembrei que não
ouvi suas respostas. Claro! Ainda tínhamos um tempinho antes do grito de...
_ Rafa!!! Vem tomar banho!!!
Ai! Porque eu fui me lembrar disso
tão alto assim? Minha mãe também escutava pensamentos, mesmo quando a gente
estava longe dela.
_ Está na hora... para mim também!
_ Mas, a sua casa é aqui pertinho,
não é? A gente liga para a sua mãe e pede para você ficar e...
Enquanto eu tomava banho ouvindo as
ordens de minha mãe para lavar bem as orelhas, o “xixi” (era assim que eu
chamava a genitália desde pequenininho quando estava em casa.) e, a... bun...
as nádegas!, o cabelo, as unhas..., pensei que demorara demais para arrancar
dele a promessa de novas brincadeiras para a tarde do dia seguinte.
Que amiguinho diferente eu
encontrara. Possivelmente a mãe dele era ainda mais cuidadora do que a minha!
_ Rafael!!! Não sai sem me avisar!
Rafael, não fale com estranhos...
_ Estou ouvindo! E minha voz não é
tão esganiçada quanto essa!
Era a minha mãe rindo de minha
imitação! Eu sempre esquecia que ela ficava atenta a tudo e a todos. Parecia
que tinha orelhas que se dobravam para ouvir longe. Todas as mães vêm com
orelhas e olhos de mãe?
Já imaginou se...
_ Rafa!!!... do que você estava
brincando hoje à tarde?
_ De esconde-esconde, mãe!
_ Ora! Então você inventou uma nova
brincadeira?
_ Não, mãe. Nós brincamos igualzinho
a...
_ Nós? Como assim?
_ Eu e meu amiguinho brincamos...
_ Que amiguinho, meu filho?
_ O meu novo amiguinho mãe! Você viu
o tamanho do cabelo dele? Parecia cabelo de... tá! Esquece!
_...
Acho que minha mãe esqueceu mesmo,
pois não ouvi sua resposta.
Durante a noite, enquanto a chuva
voltava mais forte, sonhei que meu amiguinho aparecia lá na escola com aquele
cabelão todo e os outros meninos riam muito dele.
Também sonhei com uma aula
inteirinha sobre respeito às diferenças e coisas desse tipo. Não que eu não
gostasse dessas aulas, mas em sonho?
Bom, de manhã, esperei a chuva
passar para voltar ao enorme quintal que rodeava a nossa casa. Era enorme
mesmo. Tinha até jabuticabeiras plantadas em filas duplas, pessegueiros,
limoeiros e outras tantas árvores que eu nem sabia o nome. Estava aprendendo.
Em menos de uma semana eu completaria seis anos de idade. E poderia saber mais
sobre plantas e todas as outras coisas que gostaria de aprender. Eu queria
saber tudo, queria conhecer muitos lugares e crescer rápido para cuidar dos
animais, igualzinho ao Léo,
o médico de minha cachorrinha Laila. Ele sim sabia das coisas!
Dei algumas voltas pelo quintal,
espiei para fora do muro procurando meu amiguinho. Ele ainda não chegara.
O sol batia em algumas poças de
água que se formaram sobre o gramado, criando verdadeiros oceanos cheios de
piratas para mim e meus barcos de papel.
Eu guardara alguns barquinhos secos,
bem sequinhos, para esperar o meu novo amigo.
Ele estava demorando!...
Brinquei, e brinquei e brinquei
sozinho até quase ficar chateado. O Fabinho meu irmão era muito novinho para
brincar comigo. Nem fizera seu primeiro aniversário ainda.
Quando me lembrei de olhar para
cima, eu o fiz porque minha mãe lá de dentro de casa perguntava:
_ Rafael!!! Você viu o arco-íris?
Lá estava ele. Meu amiguinho e
seus truques com escada. Como ele conseguia subir tão alto sem levar nenhuma
reprimenda de sua mãe? Ou de seu pai? Será que o pai dele era parecido com o
meu? Minha mãe cuidava da gente e meu pai cuidava de todos nós. Dizia que era
um modo inteligente de cuidar da família. Mas eu achava que era falta de tempo
mesmo, coitado! Eu só conseguia brincar com ele de quinze em quinze dias,
quando ele voltava do trabalho. E...
_ Ei!!! Amiguinho!!! Desce! Estou
esperando você!
Não sei a razão, mas tenho certeza
de que ele demorou muito mais para descer do que da primeira vez.
_ Quando vai me ensinar sobre esse
truque? Também quero subir...
_ Eu... eu estou pensando! Olha...
_ Você demorou! Vem brincar com os
barquinhos que guardei para você... olha!
Muitos piratas atravessaram nosso
quintal. Um deles até conseguiu afundar boa parte de nossos barcos. Mas por
sorte, os jornais dentro de casa esperavam para serem dobrados.
Quando convidei meu amiguinho para buscar novos barcos, ele
disse que precisava ir.
_ Mas... a gente
brincou tão pouco! Fica mais...
Não teve jeito. Ele não
entrou, mas prometeu chegar um pouquinho mais cedo na tarde do dia seguinte.
E chegou. Chegou
naquela tarde e em outras tardes quando a chuva se escondia para deixar o sol
aparecer um pouquinho.
Nosso quintal agora era
o meu paraíso.
Nem pensava mais em lhe
pedir sobre o truque com a escada, porque brincávamos tanto que ao entrar para
o banho de cada dia, eu estava tão cansado e feliz que adormecia em qualquer
lugar.
Minha mãe ria de meu
sono e comentava sobre as novas brincadeiras que observara. Até perguntou o
nome de meu amigo “imaginário”.
_ Imaginário? Não! Não
é esse o nome de meu amiguinho, é... é...
Entre tantas
brincadeiras, eu esquecera de perguntar o nome de meu amigo.
Mas iria lembrar-se
disso. Iria!
Meu aniversário estava
próximo. Apenas
mais dois dias e eu seria um
homenzinho!
_ Você vem para a minha
festinha, não é?
_ Olha...
_ Vem, sim. Já falei
que...
_ Eu não posso ir à sua
festa, já fiquei demais por aqui e... você continua me vendo.
_ Claro que eu vejo
você! Deixa disso... você vai e pronto!
Eu sabia convencer
quando queria alguma coisa. E era muito importante que meu amiguinho
participasse de minha festa de seis anos.
Estava crescendo,
diziam todos em minha casa. Eu não via muita diferença no tamanho de minhas
pernas, nem o bigode que meu pai falava que nasceria havia aparecido embaixo de
meu nariz.
Eu era o mesmo há muito
tempo e até pensava que havia nascido com aquele tamanho mesmo, bem diferente
de meu irmãozinho que ao chegar em casa parecia um pintinho amassado.
Fabinho ainda não
falava, mas gostava de ficar no colo de minha mãe espiando minhas brincadeiras.
Pena ele não poder
correr comigo pelo quintal.
_ É só esperar um
pouquinho mais! Logo, logo, seu irmãozinho vai estar atrás de você por todo o
lugar.
Não sei se eu gostava
exatamente dessa notícia. Isso significava outras coisas para as quais eu me
preparava todos os dias, ouvindo dizerem ao meu ouvido:
_ Você precisa
aprender a dividir seus brinquedos, Rafael!
_ Precisa aprender a
compartilhar, Rafa!
_ Precisa aprender
a...
Quem disse que eu não
estava aprendendo? Mas isso levava tempo, ora! Não era tão simples assim,
afinal, durante quase seis anos me deram tudo, tudinho só para mim. Nenhum
adulto queria meus brinquedos e eu me sentia seguro sobre a posse deles. No
máximo conseguia convencer algum deles a participar de alguma brincadeira
comigo e no final ouvia:
_ Agora que brincou,
vamos guardar tudo no lugar certo!
Tá! Eu guardava. Mas não
precisava ficar preocupado com os adultos desejarem ficar com a minhas coisas.
Elas eram minhas e parecia que todos sabiam disso muito bem.
Ai! Isso devia ser a
tal história de:
_ Você está crescendo,
Rafinha!, precisa aprender!
Eu aprendia, mas
precisava ter certeza de que meu amiguinho conversaria com a mãe dele sobre o
meu aniversário.
No dia seguinte, assim
que nos encontramos para mais algumas brincadeira pelo quintal, muito depressa
entreguei a ele o meu convite colorido e escrito por mim.
Minha letra não era
das melhores, mas a minha professora falava que quanto mais eu escrevesse,
melhor para a minha letrinha.
Era o suficiente para escrever o
meu endereço e o número de nosso telefone. Se a mãe dele quisesse confirmar,
ficaria fácil. Pois eu já sabia que as mães não deixam seus filhos irem aos
lugares que elas não conhecem. Nunquinha! Nunquinha! Isso era contra o manual
das mães e eu estava acostumado a obedecer às regras desse livrinho que eu
nunca lera.
O dia de meu aniversário
chegou.
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