Massa sobre madeira/Ivane |
PIKUÁ
PIRACUCA
Dedicatória:
“Para os que
reconhecem a louca normalidade da existência humana.
Aos loucos por
opção!”
_ Pi... Pi... Pi...
_ Pi... Pi... Pi...
Com um volante imaginário entre as mãos ele cortava a frente dos carros em
marcha acelerada.
Sem nome e sem endereço, ficara conhecido na cidade por Pipikuá.
Com
o tempo e a lei do menor esforço passou para Pikuá.
Piracuca só veio mais tarde, depois de um
incidente com uma garoupa, segundo seus devaneios, pescada diretamente do
canteiro da praça central.
Pikuá Piracuca era um
desses homens que chamam a atenção dos que acreditam em coisas estranhas, mas
não se assustam diante do inexplicável.
Eu o conheci assim.
Aprendera desde cedo a temê-lo e a não me aproximar dele. Essa era uma
ordem clara dos adultos a nossa volta, preocupação justa, pois ninguém sabia de
onde viera ou o que fazia nos momentos em que desaparecia.
E ele desaparecia.
Alguns
achavam esses sumiços perigosos, outros nem os percebiam, outros ainda
imaginavam todas as possibilidades de aventura, ou de coisas mais fantasiosas.
Assim, criavam-se lendas para colaborar no “assustamento” de crianças
teimosas em torno do desaparecimento de Pikuá.
Apesar de ser visto há décadas pelos moradores da cidade, Pikuá Piracuca
era estranho a todos. Vivia em um mundo povoado por visões que só a ele
pertenciam.
_ Pi... Pi... Pi...
_ Pi... Pi... Pi...
Era a deixa para que aparecesse invariavelmente com a invisível direção
de seu carro também invisível.
Por que ele fazia Pi... ao invés de Bi..., como algumas crianças em fase
de aprender a falar, era uma incógnita.
Ninguém conseguira fazê-lo aprender a dizer Bi... nem aqueles que em
situações extremas haviam lhe socorrido. E isso realmente aconteceu. Conto
adiante.
Eu conheci um Pikuá diferente em um momento pessoal de muita dor física
e moral.
Aos cinco anos de idade, havia sofrido um acidente doméstico contra uma vara
de marmelo, daquelas que há muito e muito e muito tempo atrás era indicada para
corrigir as crianças “respondonas” e contra as quais a gente chocava as pernas
e o traseiro.
Sentada no chão, chorava todas as lágrimas de meus longos anos de
criança.
Pensava que minhas pernas jamais parariam de arder, mas que o pior ainda
era a raiva que queimava dentro das pernas. Ardia duas vezes, ou mais, pela
vontade de dizer o que não conseguira dizer.
Não ouvi os três “pipipis” que anunciavam a chegada de Pikuá. Só vi uma
mão e um par de olhos chorosos estendidos para mim.
Na ponta dos dedos, Pikuá segurava uma
bala de hortelã que me oferecia, dizendo:
_ “Caramel’! “Caramel” para
a menina!
Não senti medo.
Seus olhos deram-me o conforto que precisava
para saber que ele entendia a minha dor. Ele sabia que eu chorava e isso de
alguma forma doía nele também.
Peguei a bala de sua mão com a minha mão cheia de remela de choro.
Segurei firme e pensei que seria uma vingança contra a vara de marmelo se eu
não o mandasse embora.
Nada falei. Nem mesmo o tradicional “... obrigada”.
Sentada em frente ao portão de minha casa, concluía que fugir aos cinco
anos de idade, seria a melhor escolha.
Claro que eu não sabia naquele momento o significado de escolha.
Nem compreendia que fugir, antes
de tudo, era muito, muito, muito perigoso, e não resolveria nada. Bem pelo
contrário!
Mas no meio da nuvem escura de minha revolta era o que eu queria; pois
acreditava que o acidente com a vara de marmelo tinha sido injusto. Como todo
acidente o é, certamente! Ou não! Mas essa era outra coisa que eu também não
sabia naquele momento.
Vi
que Pikuá Pirakuka chorava junto comigo, mas sem fazer o barulhão que eu fazia.
Aquele gesto silencioso de compaixão tocou-me
de tal modo que imediatamente cessei o choro.
Parei de chorar e olhei para a bala de hortelã.
Eu já sabia que não se deve aceitar doces ou qualquer outro presente de
pessoas estranhas.
Na
verdade, eu nem deveria estar ali, olhando para um estranho.
Mas
eu não iria desembrulhá-la.
Depois entregaria a bala para a minha mãe... Entregar para a minha mãe?
E o meu desejo de fugir?
O meu desejo de fugir já estava longe, fora
apenas uma forma de desafogar a raiva que sentia.
Até porque crianças aos cinco anos
também sentem raiva, apenas não sabem traduzir. E eu não sabia traduzir mesmo!
Ele sorriu e levantou exatamente no momento em que a pessoa responsável
por mim o enxergava.
Pikuá acelerou seu carro invisível e fez as curvas da rua com o cuidado
de um bom motorista.
Parou na sinaleira junto com os outros carros que aguardavam o sinal
abrir.
_ Pi... Pi... Pi...
_ Pi... Pi... Pi...
Pedi para guardar a bala de hortelã junto com as minhas coisas
importantes.
Não iria abri-la.
Queria apenas guardá-la. E foi o que consegui depois de uma avaliação
minuciosa feita por todos os adultos da casa.
Talvez tenha começado aí o meu interesse em observar, observar e
observar.
Coisa fácil de
fazer quando a curiosidade vem acompanhada de muito silêncio.
Uma semana
depois de eu ter recebido a bala de hortelã, ouvi os adultos contarem que Pikuá
Piracuca desaparecera.
Não
era uma novidade. Mas pela primeira vez eu prestava atenção ao fato.
Insisti para saber mais e tanto esforço fiz que algumas pessoas
aceitaram minha preocupação.
Mas
nenhuma notícia se conseguia sobre o paradeiro do Piracuca.
Durante
dias e dias quem compreendeu e aceitou tentou ajudar.
Nada!
Era
como se ele jamais tivesse existido.
Não sei ao certo
quantos dias se passaram. Mas quando voltava da escola com minha tia, ouvi de
longe:
_
Pi... Pi... Pi...
_
Pi... Pi... Pi...
Era o
que faltava.
Ele
estava de volta de algum lugar que ninguém jamais saberia, mas a mim não
interessava.
Pikuá
Piracuca desapareceu outras vezes. Mas sempre voltou.
Fui
crescendo e aprendendo a perguntar sobre o que desejava entender: porque ele
morava na rua? Onde ele dormia? Tinha cama? Cobertor? Chuveiro? E onde ele
comia? Onde estavam seus pais?
As
respostas variavam. Tanto quanto minhas perguntas: o que acontece com Pikuá?
Ele é doente? O que ele sente? O que ele pensa?
Alguns achavam que
minhas perguntas eram o resultado do excesso de teimosia, outros diziam que eu
seria uma médica, uma advogada, uma política... o que isso tinha a ver com
Pikuá Piracuca?
Eu só queria entender o que acontecia dentro
de sua cabeça.
Porque,
diferente das outras pessoas, eu acreditava que Piracuca era feliz, que gostava
de viver daquele jeito. Isso parecia possível?
Como alguém pode ser
feliz morando na rua? Sem roupas limpas, sem higiene, sem comida?
Quanto
mais eu queria entender, mais difícil ficava perguntar.
Ouvi de meu pai algumas histórias que ele
ouvira de outros. E uma delas envolvia o meu avô.
Meu
avô fora conhecido pela retidão e pela participação na comunidade.
Tinha
sido um homem que não tolerava qualquer forma de injustiça. E, em certo dia de
muito frio, ele precisara usar da força física para salvar Pikuá de um grupo de
“moleques”.
“Moleques”
era uma palavra muito usada pelo meu avô para não entrar em outros méritos ou
questões. Ele dizia que não julgar fazia parte de sua natureza.
Um
grupo que gostava de fazer barulho pelas ruas perseguira Pikuá até derrubá-lo
no chão.
Rindo
alto do que não tinha graça, espancavam-no pedindo que pescasse mais uma
garoupa do meio da praça.
Sem
conseguir se defender, Pikuá rolava no chão.
Foi quando meu avô
chegou e colocou fim àquela violência.
Mostrou para o grupo de arruaceiros que um homem de verdade respeita o
outro homem, independente das diferenças aparentes.
Mostrou que usaria da mesma força para
defender Pikuá e passou um “sermão” no grupo de “moleques”.
Quando
o grupo se retirou o meu avô levou Pikuá para dentro de casa e preparou-lhe uma
sopa quente.
Contam que os dois conversaram por muito tempo naquele dia e em muitos
outros dias. E que os poucos banhos que Piracuca tomara fora por influência de
meu avô.
Dessa amizade entre os dois outras
“lendas” foram criadas.
Mas o meu avô não tinha preocupação acerca do
que os outros pensavam sobre as atitudes que tomava. Dizia que ele mesmo
precisava estar certo do que fazia e isso era tudo.
Passara a amparar Pikuá e jamais contara para
alguém o conteúdo de tantas conversas. Meu avô honrava a confiança de quem quer
fosse e não deixaria de fazê-lo com Piracuca.
Contam que muitas
vezes Piracuca fora procurá-lo em horas impróprias, muito tarde da noite. E que
em nenhuma dessas vezes meu avô deixara de recebê-lo.
Quando
meu avô faleceu, isso conta meu pai, Pikuá não saía do cemitério. Passara dias
e dias sentado em frente ao mausoléu, sem comer e sem dormir.
Tentavam
tirá-lo de lá.
Em vão!
Pikuá voltava.
E
voltava outra vez.
E assim
foi até mais um de seus desaparecimentos.
Se
Piracuca tinha segredos ou motivos, talvez meu avô soubesse. Mas sua postura de
respeito, cuidado e confiança para com o amigo fizeram-no calar-se.
O tempo
auxiliou meu crescimento e aumentou minhas dúvidas.
Percebia que Pikuá já não corria mais como antes. Apesar de não largar o
volante invisível e do mesmo “pipipi” ser ouvido de uma rua a outra.
Quanto mais eu crescia mais aumentava o
desejo de compreender o que acontecia.
Existiam
outros Pikuás Piracucas pela cidade. Mudavam apenas o nome e o que carregavam
nas mãos. Isso era intrigante. E ao
mesmo tempo, discutível em vários aspectos: deveriam permanecer nas ruas?
Precisavam de remédios? Deveriam ser cuidados por alguém? Quem? E seria essa a
vontade deles?
Muitas histórias
juntaram-se às perguntas que fiz a mim mesma e aos outros. Mas ainda penso que
a que eu mais gosto é a da bala de hortelã.
Porém, soube
aos poucos que o homem do carro invisível nunca oferecera perigo a ninguém e
que também jamais fora encontrado embriagado ou fazendo uso de qualquer outra
droga.
Envelhecia
como todo mundo, mas as suas histórias eram contadas de boca em boca,
especialmente quando desaparecia.
Uma vizinha
de minha avó insistia em contar que Pikuá era russo, um sobrevivente da segunda
guerra mundial. E que o conhecera assim, desde o início, mas que vez ou outra
contava pedaços de sua história para alguns. Ou então, chorava sozinho, por
dias seguidos encolhido em uma rua qualquer. E que era depois desses longos
choros que Piracuca desaparecia.
Então ele não
nascera assim?
Quem poderia
saber?
Tanto me envolvi
na história de Pikuá Piracuca que os de casa às vezes me chamavam de
“Piracuquinha”.
Longe de
ficar magoada, eu pensava no quanto cada um de nós é um pouco ou muito de
Piracuca.
E que em algum lugar da verdade que eu
aprendia a construir, estava o meu gosto especial por ser diferente.
Eu gostava
de ser “Piracuquinha”, mas não saía pelas ruas com meu carro invisível porque
ainda não tinha idade para dirigir.
Tantas
perguntas me levaram para a medicina.
Ouvi inúmeros: “Eu não disse?”, “Eu não disse?”
É... disseram!
Mas eu ainda não sabia o que realmente queriam
dizer.
Assim, fui
buscar o que eu
pensava desejar.
Enquanto
estudava e estudava e estudava, encontrava pequenas folgas para saber de Pikuá.
Era uma preocupação que os outros tomavam por capricho de “mocinha”.
Eu não era
mais uma “mocinha”, mas talvez eles precisassem de tempo para saber disso.
Sem problemas!
Tempo era tudo o que tinha. Tempo e vontade de
perguntar. Tempo e vontade de compreender.
Fazia alguns
dias que Pikuá novamente desaparecera.
Eu estava cobrindo um plantão na residência do
Hospital de minha cidade quando um tumulto anormal nos tirou das atividades da
madrugada.
Dera entrada no Pronto Socorro do Hospital um
morador de rua.
Fui
chamada para ajudar.
Enquanto
me preparava para entrar na sala, um apelo estranho dentro de mim fez com que
me arrumasse mais rápido do que o de costume.
E antes de receber as ordens de
minha chefe, corri para a maca.
Não vi o
corpo, não vi os farrapos de sua roupa.
Vi os
olhos.
Aqueles mesmos olhos que um dia choraram
comigo.
Eu não
tinha uma bala de hortelã, mas a minha mão estava ao alcance da mão dele.
Foi assim,
com os olhos dentro dos meus olhos e sua mão entre as minhas que Pikuá Piracuca
voltou para casa, onde quer que ela seja.
Gosto
quando me chamam de “Piracuquinha”.
Já aprendi que não encontrarei certezas, nem
respostas prontas, por isso, continuo perguntando, perguntando e perguntando.
Quando sobra
um tempo, eu pergunto outra vez, especialmente para mim mesma, pois às vezes
sei que eu mesma não me escuto.
Ainda escuto dentro de mim:
_ Pi...
pi...pi...
E acredito
que em algum lugar, de algum modo, outros Piracucas continuam a dirigir carros
que apenas eles mesmos enxergam.
_ Pi... pi...
pi...
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