BICHO CARPINTEIRO
parte I
Pedro
sabia dar conta de qualquer ordem que lhe passassem, menos a de sentar e...
_
Sentar?
_
Sentar?
_ Sentar
é perda de tempo.
Pelas
linhas dessas ideias Pedro convencia a qualquer um que andar fazia bem aos
pensamentos.
_ Pensar
andando aumenta o número de pensamentos e o número de pés também!
A última
parte deixava dúvidas, mas quem se colocava a discutir com um menino de seis
anos de idade? Filosofia nessa etapa da vida só poderia fazer bem. Era o que
seus pais esperavam diante de tanta vontade de pensar.
Enquanto
permanecia em pé, Pedro encontrava todas as formas de permanecer em pé, mesmo
que por algum motivo fosse obrigado a permanecer... quieto.
Levava
tão a sério o que filosofava que em uma ocasião em que precisara esperar na
fila da vacinação contra POLIOMIELITE, apostou com o Juquinha que ganharia uma
corrida atrás de duas borboletas amarelas sem sair do lugar.
Juquinha
que já não estava mais na idade de receber a vacina mostrava algumas figurinhas
para os meninos colecionadores. Pedro olhava. Olhava e pensava em uma forma de
entrar naquele círculo de meninos mais velhos.
_ Juquinha,
vamos apostar as suas figurinhas que eu consigo correr mais do que você sem
sair do lugar?
_
...
_ Estou
falando sério!
_ Para com
isso, Pedrinho! Tá malucando?
_ Não! Mas eu
sou mais rápido do que você sem sair daqui!
A esse tempo
a atenção de quem estava na fila dirigia-se à conversa dos dois meninos.
_ Porque você não corre?
_ Quem disse para você que não vou correr? Eu
disse que não vou sair daqui.
_ Ah!!! Vê se pode!!! Você vai correr sem sair
do lugar...
_ É só uma questão de visão,
meu amiguinho! Eu vou correr mais do que você!!!
_ Tá!!!
_ Veja... fui e voltei várias vezes...
_ Você não saiu
daí desde que chegamos!!!
_ Saí, sim!!!
_ Tá de brincadeira, né?!
_ Várias e várias vezes...
_ Ô, mané! Tá achando que sou burro?
_ Não!!!
_ Então!, não brinca com o
que é sério!
_ Eu corro bem mais do que
você!
_...
_ Sua cara de enfezado não
me assusta!
_ Pois deveria!
_ Olha só, Juquinha, eu explico!
_ ... ah! Não!, isso é pior do que suas
brincadeiras sem graça!
_ É sério, eu explico!!!
E Pedrinho
explicou com muita calma e em poucas palavras que era só uma questão de sair do
lugar através dos pensamentos.
_ Viu? É
simples...
As risadas
gerais não fizeram muito bem ao Juquinha que não conseguia ver graça em uma
brincadeira tão sem sentido.
_ Menino
biruta!
_ É engraçado!
_ Isso porque
ele não tirou onda da sua cara, mané!
Juquinha
encabeçava a lista de alguns nomes que não gostavam muito das conversas com
Pedro.
Especialmente os
mais velhos que não conseguiam gerar qualquer influência sobre o menino
tagarela.
_ Tagarela e
metido!
_ Estranho...
muito esquisito!
_ Pois eu acho
que ele é metido, mesmo!
Pedro não tinha noção do leque de opiniões
que se abriam ao seu redor. Ficava alheio a tudo o que não lhe interessava
imediatamente. E na ordem das horas e dos fatos
estava impreterivelmente a
fixação por andar, andar e andar mais ainda. Caminhar exercia tal fascínio em
Pedro que seus pais perguntavam se suas pernas teriam sido talhadas para dar
conta de sua vontade, ou sua vontade estava talhando aquelas indeléveis marcas
de forca e prontidão. Prontidão para permanecer em um eterno exercício e
movimento de ir para algum lugar, mesmo que fosse permanecer onde estava.
Pedrinho conseguia a façanha de mover-se ate mesmo em espaços inimagináveis,
como ao sentar em sua cadeirinha de segurança no banco de trás do carro.
_ Sentar? Mas eu
não preciso sentar, papai. Posso ajudar você a chegar antes.
_ E mesmo, meu
filho?
_ Sim, eu posso.
_ E como seria
isso, Pedrinho?
_ Simples, simples, vou caminhando
aqui dentro do carro.
_ E...
_ A força de
meus pés vai aumentar a velocidade do carro.
Conversas como
essa fizeram com que seus pais buscassem ajuda especialidade, pois cogitaram
uma possível transferência em relação a algum super-herói, uma vez que ele
gostava muito de historias em quadrinhos, filmes e programas infantis.
_ Não poderia
ser também um probleminha neurológico?
_ Em que a
senhora estaria pensando?
_ Aquilo que
vocês chamam de hiper... hiper...
_
Hiperatividade. Não creio, dona Olga. Mas posso encaminhá-la a uma
neuropediatra que certamente poderá fazer algumas avaliações.
Nada se
mostrou palpável. Nenhum sinal de desvio de atenção, hiperatividade, ou
qualquer outro problema típico da idade. A saída foi creditar o comportamento
de Pedrinho a uma capacidade inata de gerar movimento, ou melhor, de andar. O
ato de ficar sentado não se mostrara um problema de hipersensibilidade com
ausência de concentração, muito pelo contrario. Quando Pedrinho encontrava a
saída para permanecer em movimento muito bem sentado na cadeirinha de
segurança, diziam os especialistas que ele estava a encontrar uma saída
inteligente para atender aos objetivos que o moviam. Seria saudável sem ser
preocupante.
_ Percebeu, papai?
_ Se percebi?
O que, meu filho?
_ Minhas
pernas estão ajudando o carro a andar mais rápido, mais rápido...
O que seria
tão somente mais uma brincadeira para qualquer criança assumia uma proporção de
alarme nas pernas incansáveis de Pedrinho.
A madrinha de
Pedro, pedagoga de longa data, cheia de experiências que a vida na escola lhe
conferia, olhava para o afilhado com um pouco mais de condescendência.
_ Vocês estão
exagerando.
_ Mas,
comadre, você viu como foi que ele dormiu?
_ Sim, eu vi.
E ate lembro um pouco de mim mesma quando era da idade dele.
_ Você acha
normal uma criança adormecer enquanto anda?
_ Ora,
comadre. Ele estava parado. Paradinho...
_ Mas fechou os olhos em
pé, você não viu?
A madrinha
de Pedrinho vira mais de uma vez. Mas os pais do menino aguardavam aquele
momento mágico em que poderiam entender que o pequeno Pedro era tão normal
quanto qualquer criança. Muito comum a pais ansiosos por explicar o
comportamento de seus rebentos e encaixá-los na normalidade.
_ Ele é
normal, mulher. É normal.
_ Sim, eu
sei, mas acontece que...
As discussões
sobre o que era mais ou menos
normal levavam os pais de
Pedrinho para o mesmo lugar, irremediavelmente: nenhum médico encontrara
qualquer problema no menino. Então, essa estranheza, essa diferença, essa
“coisa” que ele apresentava deveria passar com a idade. Sim, era uma boa forma
de aliviarem-se e passar por mais uma noite. Pais dormem preocupados
normalmente e acordam com outras preocupações que costumam agregar-se às
antigas, especialmente no caso dos pais de Pedro.
Em uma manhã de
quarta-feira, quando haviam perdido a hora pelos alongamentos das conversas
recorrentes, os pais de Pedrinho encontraram o menino experimentando uma nova
estratégia:
_ Minha mãe! O que é isso,
meu filho?
_ Minha cadeira
andante, mamãe.
_ Cadeira?
Onde...
_ Você me diz
todos os dias que eu preciso sentar para comer...
_ Mas é claro!
_ Então, eu
inventei a cadeirinha andante.
E inventara.
O fato e a
experiência ultrapassaram os limites da casa, do bairro e até da cidade.
Pedrinho
granjeara um novo olhar entre aqueles que já o viam com outros olhos. Um misto
de respeito pelas ideias do menino que caminhava até sem caminhar _ alguns
tinham sérias dúvidas se ao dormir o menino realmente parava de mexer as pernas
_ movia o imaginário do povo. Apostavam entre si sobre outras capacidades que o
menino teria e seriam cuidadosamente mantidas em segredo pelos pais.
Mas a história
da cadeirinha andante rendia sem mostrar sinais de parada. Especulava-se acerca
de empresas que disputavam a patente da invenção para reproduzi-la em larga
escala.
Tantas conversas
e falações renderam. Pedrinho foi parar, contra a vontade dos pais, em um
daqueles programas que pesquisas novidades.
_ Bizarrices!
_ Não, mulher.
Não é bem assim.
_ Ficar exposto
dessa maneira pode fazer mal ao menino.
_ Pois eu penso
que poderá ajudá-lo.
_ Ajudar?
Ajudar em que?
_ Ajudar na
aceitação de suas diferenças...
Não era exatamente Pedrinho que sentia
dificuldade em
aceitar-se. Mas pais em estado de formação constante aprendem
com as próprias palavras quando conseguem ouvir a si mesmos. Quando conseguem.
Pois o convite para aparecer no tal programa gerou a primeira grande discussão
entre os pais do menino andador, agora também inventor.
_ Não quero o
meu filho exposto como se fosse, como se fosse...
_ Como se fosse
diferente?
_ ...
_ Ele é meu
filho!
_ Ei! Esqueceu?
Ele é meu também!
De um jeito ou
de outro, ou tentando juntar os jeitos que não tinham jeito, Pedrinho foi
entrevistado durante quase uma hora. Sua invenção apareceu para quem quisesse
ver. E suas ideias acerca de andar e andar e andar geraram adeptos entre
aqueles que já pensavam pelo mesmo viés e outros tocados pela disposição
contagiante do menino. A diferença estava em ser uma criança a dizer essas
grandes verdades e em sua altíssima capacidade de manter-se coerente a elas.
Era um prodígio. Andava, pensava, filosofava, criava e atraía discípulos.
fama. Mantinha-se o mesmo, apesar de adotar a cadeirinha como sua atual
melhor companheira. E diga-se ainda em crédito para o menino que a
invenção apareceu na medida exata em que se esforçava para dar conta de sua vontade e cumprir com a ordem dada pela mãe.
_ Menino
obediente!
_ Para mim
ainda parece estranho.
_ Pois eu queria
que meus filhos fossem estranhos assim.
_ Ah! Não quer
não!
_ Pois sei do
que estou falando.
_ Cada um é cada
um!
_ Mas eu queria
sim... já imaginou?
Quando a
cadeirinha andante tomou o espaço público, cabia aos mais céticos dizer que o
menino fazia pilhéria com a boa vontade dos pais.
Ou ainda, que
era um verdadeiro vândalo, pois destruíra um objeto da casa simplesmente para
satisfazer a sua insana e infantil vontade de caminhar.
Com objeções ou
não, a cadeirinha andante que Pedrinho “inventara” mantinha-se ali, pronta para
qualquer demonstração. E quando alguém com excesso de expectativa exclamava:
_ Mas, é
apenas uma cadeirinha sem pernas!
Pedrinho
estava pronto para argumentar que sem pernas, não!
_ São duas
pernas dela e duas pernas minhas! Pode olhar...
Olhar e
experimentar.
Gostavam de
sentar onde o menino andante e inventor sentava. Era estranho e divertido ficar
no lugar em que ele ficava toda vez em que “sentava” para comer. Sentava a
bunda e movia as pernas.
A ex-cadeira
comum da pequena cozinha da casa de Pedro ganhara apelidos. Vários apelidos,
alguns que jamais devem ser repetidos por qualquer criança, e por isso mesmo
nem serão escritos aqui. Mas um em especial parecia agradar aos sérios e aos
irônicos:
_ Nerbie, a
cadeira inteligente.
_ É! Não
deixa de ter certa lógica!
_ É claro
que tem lógica. Todos os nomes revelam alguma coisa...
_ E é?
_ É!
_ Não sabia!
_ Pois sim!
Pelo sim e
pelo não, os pais de Pedrinho não aceitaram reproduzir a cadeira em escala
industrial. Motivo? Bem, não era um motivo, exatamente, mas uma preocupação.
Não concordavam com a ideia do filho em continuar andando enquanto comia. Era
um aprendizado antigo, vindo de geração para geração e qualquer pai sabia
disso, além dos médicos que levantaram a possibilidade de outras crianças
apresentarem sintomas de ansiedade ao copiarem o invento de Pedrinho. E isso
era assunto que merecia atenção.
_ Comer é um
momento sagrado.
_ Até os
antigos sabiam disso.
_ Todos
sabem!
Felícia foi uma das primeiras
crianças a levantar bandeira contra esse princípio.
_ Vou
querer uma cadeira igual a dele, sim!
_ Faz mal,
minha filha. Faz mal! Faz mal comer e caminhar ao mesmo tempo.
_ Que mal,
mamãe? Que mal? O papai come assim todos os dias e está bem gordinho, bem
saudável.
_ Ah! Minha
filha, é que seu pai trabalha muito. Não tem tempo...
_ Viu? Você
sabe que ele come enquanto caminha!
_ Sim,
mas...
Felícia,
Robinho, Mila, Vizinho...
Para os que acreditam que criança não percebe
as discrepâncias da vida, surgiram vários grupos de meninos e meninas quebrando
as pernas da frente das cadeiras de casa.
_ Falta a
cinta que o Pedrinho colocou por baixo do assento.
_ Cinta?
Eu peguei uma gravata de meu pai...
_ E eu, o
cachecol de minha mãe!
_ Eu trouxe
um lenço comprido!
O
princípio era o mesmo. Criar certa segurança em manter o bumbum colado à
cadeira, ou o contrário, pois essa história de caminhar sentado dava mais
trabalho do que parecia. Muito trabalho e dores em lugares do corpo que
pareciam não fazer parte da constituição do pequeno inventor.
_ Ai!
Minhas costas...
_ Minhas
pernas estão doendo!
_ Eu não disse?
Como em
toda história, nessa também havia quem sabia de antemão e pagava para desfrutar
aquele momento glorioso, mágico, de dizer: “Não disse?”.
Muitos disseram
muitas coisas.
Pedrinho permanecia alheio, feliz em suas largas passadas de menino
andador-filósofo-inventor.
Não
permitiram que Pedrinho levasse a Nerbie para a escola por todos os motivos que
fazem as escolas serem respeitadas enquanto espaço de ensino e formação. Mas
houve os que tentaram dissuadir o diretor de tal decisão. E para tanto, organizaram uma
comissão Pró-Nerbie, com direito a cartazes, passeata pelo pátio e ameaça de
greve de merenda escolar. Organização apoiada por discípulos das caminhadas em
prol da vida saudável, pelos admiradores de Pedrinho, pela comissão de
incentivo ao inventor infantil, pelos que gostam de ver a bagunça se instalar,
pelos que não têm mais o que fazer.
Perfil
estabelecido, o barulho foi ouvido. Pronto! Estava iniciada a nova largada de
argumentações divididas.
_ Não é moda... é
ciência!
_ Ciência?
Desde quando assuntos sérios viraram brincadeira?
_ Você não
sabia que os grandes cientistas começaram brincando?
_ E essa agora!
_ É verdade!
Você está precisando ler mais sobre esse assunto.
_ Que assunto?
O da cadeira?
_ Não, meu!
Sobre como a relação entre as brincadeiras e a ciência!
_ Eu pensei
que a relação fosse entre ciência e perguntas!
_ É tudo o
mesmo assunto!
_ Você está
simplificando!
_ Não seria
generalizando?
Mais um
daqueles momentos em que os homens leigos acreditam tornar-se especialistas por
um toque dos deuses, da vontade de discutir, da pressão para ganhar uma
discussão, do gosto por assuntos amplos e de várias nuances.
Nuances ou
nuanças, como preferiam alguns, não faltavam aos contextos que envolveram o
episódio escolar que ficou conhecido pelo nome de A REVOLTA DAS CADEIRAS
ANDANTES.
Nome que parecia
mais adequado às histórias de Orígenes Lessa (alguém não se lembra do
fantástico escritor infantil?), A REVOLTA DAS CADEIRAS ANDANTES lembrava um
romance do mesmo autor MEMÓRIAS DE UM CABO DE VASSOURA. Dar vida aos objetos
inanimados era a mágica do mestre das histórias. Dar vida às polêmicas parecia
ser o outro dom inato de Pedrinho ainda mantido longe dos holofotes.
_ Menino
estranho!
_ Famoso!
_ Continua
estranho!
Pedrinho foi
chamado a participar de uma audiência concedida pelo diretor da escola aos
alunos revoltosos. A REVOLTA DAS CADEIRAS ANDANTES estava fugindo ao controle
aceitável do que acontece dentro do espaço escolar e ali deve permanecer.
_ Ali, como?
_ Dentro da
escola, chefe!
_ Mas a
escola é uma soma da família e da...
_ Da?...
_ Quero
dizer: a escola deve preparar para a vida.
_ Ah! Isso é
de responsabilidade dos pais.
_ Mas a escola e os pais não
andam juntos?
_ Ih! Meu!
Você parece que está andando com o menino pensador...
_ Irmão, eu
não gosto de injustiça!
_ Ainda não vi injustiça aqui...
_ Mas vai
acontecer! Vai acontecer! Isso de abafar o que está acontecendo lá dentro...
_ É política
da escola.
_ Política?
_ Isso! Uma
forma de conduzir os fatos.
_ Isso não é
História?
_ ...
( continua...)
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