Em uma CIDADE com NOME de SANTO - parte 2
Foi quando se
soube que uma nuvem encobrira a oficina.
Grossa e pardacenta
estivera pronta para derramar.
Mas o menino
perguntador acostumado a nuvens grossas engoliu-a por inteiro.
E da boleia da
carroça desaparelhada cantou a pulmões tão plenos que para além da cidade se
ouviu.
Alguns trechos
dos versos cantados podem ser ouvidos a qualquer tempo e fora dele,
interminavelmente, em suave melodia (dizem que as montanhas têm memória). Quem
os escuta, sente o coração da natureza pulsar ansioso e angustiado:
“Perdi o
caminho do rio”.
Não
encontro minhas trilhas
Onde era
a cachoeira,
Não há
água pra beber
Não tem
mais bicho-do-mato
Nem mato
pra se esconder
No
riacho tão fininho
bebiam
os passarinhos
Secou
faz tanto tempo
Perdi
meus amiguinhos.
Não
encontro minhas trilhas...”
Contam que
depois da nuvem grossa e da triste canção do menino, o forasteiro encabulou-se
e desapareceu da cidade.
Tempos mais
tarde teria sido visto na televisão fazendo campanhas e organizando uma ONG
(...) a favor da
preservação
do meio ambiente.
Dá para entender porque na oficina do
“fazedor” cada banquinho tem sua história.
Mas o
interessante mesmo é escolher um deles para aboletar-se enquanto o tempo dá um
tempo e a gente esquece onde está.
Em uma dessas vezes,
deparei-me com o branco frio e vazio de uma cidadezinha sem praças, ruas retas
e lisas e vovós sem quintal.
Na voz do
pequeno narrador o frio entrou pelos meus ossos, lambeu minhas canelas e entre
arrepios e curtos “ais” fiquei sabendo da maior de todas as revoluções
pacíficas jamais contadas pela história oficial.
O perguntador tudo
viu e ouviu, contou como foi e como será. Por testemunhas, o casal de
avestruzes e o “fazedor” _ é nesse ponto do acontecido que tomo conhecimento de
uma figura até hoje inenarrável: Ela!
Ela! A própria! Aquela que...
Calma! Calma! Chego lá!
Lá pelas
tantas e quantas figuras desdobradas diante de meus olhos de janela assaltada,
senti mais do que entendi que o contado não era o conto.
Ou seja, o
perguntador narrava calmamente o sucedido na tal cidadezinha, mas havia algo
não dito, não verbalizado que eu percebia entender sem ter ouvido dizer.
Nem
magia nem ilusão.
Era
palpável demais para não ser levado a sério; mesmo não estando claro, estava
ali, claro!
Aquietei-me.
Já ouvia
o dobrar do sino pelas mãos do Padre Gordo,
quando
também vi o cortejo descendo a ladeira.
Tudo tão
límpido, tão nítido que sequer tive coragem de beliscar-me.
Eram
tantos vovôs e vovós que não dava para contar.
De onde
teriam saído?
Um a um,
rostos pintados com o colorido vivo da alegria sem freio, entregavam a quem
encontrassem pelo caminho um envelope em formato de meio coração. Metade aqui,
metade ali, o cortejo avançava pela cidade em orquestrada harmonia.
Contagiante, o movimento ia arrastando quem estivesse à frente e atrás,
à direita e à esquerda, acima e abaixo e no meio também. Todos eram arrebatados
pelo sinuoso e colorido grupo de homens e mulheres que passaram dos 70 anos.
Para
espanto dos que se espantam, ao som dos passos continuados associava-se outro
som, ininteligível, mas audível o suficiente para gerar certo desconforto.
Mistura de
várias batidas: chocalhos e tarolas, tambores e reco-recos.
Alguma
outra coisa ainda se avizinhava.
O tempo não se deu para especulações.
Na esquina
depois da ponte, novo cortejo.
Era de
virar e revirar os olhos mais sossegados.
Pelo menos
todos os beiços remelentos, todos os olhos espichados, todas as bocas cheias de
dentes da cidadezinha acotovelavam-se em uma fila indiana.
Lentamente, entre pernas-de-pau, máscaras e balões, fitas de todas as
cores, flautas doces e transversais, tambores e saxofones, palhaços e
malabaristas, cachorros vira-latas, carrocinhas de pipoca, mastros de
algodão-doce, argolas de jujuba e trouxinhas de mungunzá avançavam...
avançavam!
Apitos e línguas-de-sogra
disputavam o espaço das línguas entre os lábios abertos em sorriso arregaçado.
Os cortejos
estavam a uma quadra de distância um do outro e os sons já não mais se
distinguiam.
Metade de um
coração para lá e metade para cá.
Uma pipoca
chegando, passa uma trouxinha de mungunzá, é algodão-doce, seu moço! e não
precisa pagar.
Mexe para ganhar
espaço, espeta braços e pernas, arranha a canela, avança mais um pouquinho e...
eis o encontro de quem nem se sabia vir.
A esquina ficou
redonda, a rua, dizem que alargou.
Dos telhados desciam
gatos, cachorros queriam subir, ninguém ficou de fora, todos queriam ir.
Para onde? quem
sabia?
Tão pequena era
a cidade, não caberia fugir.
Dá-lhe outra metade,
coração não vai faltar, se faltar fale com Ela (...), que um jeito Ela sempre
dá.
O cortejo tinha
ares de grande celebração.
Até as crianças
que mamavam no peito de suas mães pararam para olhar.
Era um tal de
vamos juntos, olha lá! e também quero ver que, até o Prefeito da cidade
conseguiu se mexer.
E não faltou a
Das Dores, quero dizer a Das Cores, para embelezar a procissão.
E por falar em
procissão, alguns diziam que era coisa de São Cosme e Damião, não estava
faltando doce, tinha criança de montão... ou era paga de reza, coisa pouca não
era não.
Foi que deram
na pracinha: aperta que aperta! lugar até faltou.
Dos galhos
melhor se vê, muro também é bom, um pé na frente do outro, senta que eu quero
ver.
A um sinal que
ninguém viu, pararam todos os sons.
O Prefeito
esperou sentado, pensando que ia falar, certo que era para ele, limpou a
garganta várias vezes, a braguilha ajeitou, confirmou o nó da gravata e até o
bigode alisou.
Nada!
E do nada
surgiu a lona, passada de mão em mão; instalada rapidinho, picadeiro virou.
Acorrem os
palhaços para arrumar as cadeiras, também vindas de algum lugar, cochichavam as
senhoras tricoteiras.
Sentados e com
pipoca na mão, o público faceiro.
Isso sim é que
era festa, e com gosto de surpresa boa.
Surpresa foi
quando em pleno picadeiro o molecote apareceu.
Vestia uma calça
e meia, o resto... que resto? Criança gosta de roupas?
Na mão trazia
um pote, grande, redondo, parecia difícil de abraçar, especialmente para um
menino tão franzino.
O que era aquilo
lá?
O que levava
dentro, não parecia pesar.
Troca e destroca ideias,
não dava para imaginar.
De mansinho
soltou o pote e fez sinal para outro menino se aproximar.
Os meninos então
vieram e vieram meninas também, cada qual trazendo um pote: cores, tamanhos,
quantos e tantos não se conseguiam contar.
Enfileiravam-se,
enfileiravam-se, ocupando todo o lugar.
O picadeiro que
não era pequeno, mas não era muito grande também, transformou-se por completo:
potes e potinhos coloridos não paravam de chegar
Ao redor do
picadeiro os vovôs pareciam esperar mais, mais e mais alguma coisa. O silêncio
só era quebrado pelo som dos pequenos e abafados passos que mal tocavam a lona.
Não sei se viam ou se não importava ver, os potes permaneciam tampados, sem
nenhuma exceção. E de onde eles saíram era mais uma questão.
Então, para
decepção do senhor Prefeito, um elegante vovô trajando azul e branco, levantou
a mão direita e pendurando-se nela levantou-se também.
Caminhou por
entre os potes que abriam espaço ao seu pisar; se antes não havia uma trilha,
agora parecia existir. Lembrava aquela passagem no Mar... (reticências servem
para provocar!).
Interessa que ele
passou e bem no centro do picadeiro parou em solene atitude de quem pede para
falar.
A um sinal
de sua cabeça, o primeiro menino dos potes apareceu acompanhado de um casal de
avestruzes.
Emplumadas,
as aves acomodaram-se aos pés do plácido vovô. E ouviu quem quis ouvir e quem
não o desejava ouviu também:
“Esse é o dia em
que todos nós voltamos para casa.
Não estamos aqui
pedindo que decidam pelo nosso retorno, assim como também não pedimos no
passado que decidissem pela nossa exclusão.
São anos de
distância entre nós, amargados em estúpida solidão.
Nosso lugar não
tem tempo, mas tem as boas marcas do que não é mais.
A isso vocês
chamam de história, e nós chamamos de memória.
A história é
sempre presente e pode ser mudada a qualquer tempo. Não chegamos aqui sozinhos
e sozinhos não queremos ficar.
Essa é a nossa
cidade, tem espaço para todos nós.
Trouxemos um
presente...”
A frase não foi concluída. Engasgado por não
falar, o senhor Prefeito derrubou a cadeira e tossindo muito redarguiu:
“Sou contra... sou contra...
isso não é democrático. Precisamos votar. Precisamos...”
As crianças abafaram o riso,
as senhoras desviaram o olhar.
Encabulado, o senhor Prefeito
engasgara com a própria saliva. Passado o susto, pigarreou e disse com voz
firme:
“Esta cidade precisa de mãos
fortes, temos de produzir para gerar capital. Se vocês ficarem aqui, irão
atrapalhar a produção. Os mais novos terão de cuidar de vocês e...”
Foi a vez de o menino que
acompanhava o casal de aves levantar a mão e indicar abaixo da linha do umbigo
do rotundo senhor.
Da braguilha aberta escapava
uma ceroula verde com desenhos de pequenos ursos amarelos vestindo pijamas de
bolinhas.
Bela combinação de cores e
motivos, mas pouco apropriada para o dono de um discurso tão sério.
Risos compreensivos deram
tempo para o senhor das ceroulas recompor-se. Era um bom homem _ homem bom? _ e
pensava estar fazendo o melhor, mas havia esquecido o quanto congelara e
embranquecera aquele lugar.
Pois eu, pesquisadora de uma
história entrara em outra, com pernas, braços e canelas encarangadas de frio.
Direto de meu banquinho,
não via mais a oficina do “fazedor”.
Estava ali, em meio a um movimento
pela inclusão, em uma cidadezinha da qual sequer sabia o nome, o ano e a
população.
Não devia ser importante,
pois o menino perguntador não me contou até hoje onde fica o tal lugar.
Mas guardei a visão das
ceroulas, quero dizer, da praça cheinha de gente, e de toda a movimentação.
Não vou encurtar a
história, mas recortando o que dizia meu narrador, depois de alguns momentos, o
elegante vovô retomou a palavra:
Mas esta cidade que já
esteve fria e vazia retomou as cores pelas mãos de nossas crianças.
Foram elas que abriram
as janelas do lugar em que vocês nos acomodaram.
Levou um tempo, mas nós
mesmos encontramos as saídas.
Atravessamo-las trazendo um
presente para cada um de vocês.”
Alvoroço geral.
A diretora da única
fábrica de velas da cidade tomou a palavra de um só fôlego:
“Presentes não resolverão o
nosso problema. Eu não posso mais trabalhar se minha mãe voltar para casa.”
“E eu terei de fechar a
padaria” _ vociferou o senhor das massas.
“Meu pai não me obedece mais
e precisa de cuidados, não pode ficar sozinho!, gritou a enfermeira-chefe do
Hospital Geral (só existia um em toda a região). Ele tem mania de sair para a
rua e isso é muito perigoso. Já sofreu acidentes antes, e eu não vou correr
este risco outra vez. Prefiro que ele fique lá.”
“Quem mandou vocês saírem? _
era a voz de uma senhora levemente grisalha e bem vestida, conhecida na cidade
pela sua exuberante forma física _Eu não deixei de mandar os mantimentos do mês
para a minha tia. Não posso viajar se tiver de ficar com ela em minha casa.”
“E a minha casa é cheia de escadas,
como vou cuidar da minha avó? Ela já fez noventa e quatro anos, não posso pagar
alguém para cuidar dela. Quem disse que vocês não estavam bem lá?” _ era a voz
do mestre-de-obras mais respeitado da cidade.
A esses argumentos seguiram-se
outros, e outros e outros.
Todos ao mesmo tempo ou após
alguns “psissss”.
Estava organizada uma
democrática convenção.
Minutos intermináveis
arrastaram-se pelos vincos e rugas dos vovôs e vovós. Desceram a pele por entre
a testa, fizeram a curva dos olhos e foram parar bem em cima do peito. Saltaram
para o rosto das crianças e todas as cores apagaram-se de vez.
O palhaço desenhou uma lágrima
na bochecha redonda, o pipoqueiro aguou as pipocas, o mungunzá azedou em meio
às folhas de bananeira.
Pelo chão, as metades que
sobraram, nem de longe lembravam um coração.
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