Arco-Íris Invisível parte III



Aquarela em cartão/Ivane Laurete Perotti
ARCO-ÍRIS                 INVISÍVEL  



Ivane laurete Perotti



(prêmio LITERARTE 2012 em Literatura Nacional Infanto-juvenil)





PARTE III

                      Seu dedo apontava para um lugar que me parecia bem longe. Para mim estava ótimo!
                      Um trilho de trem sem trem, com as cores que se dividiam e misturavam, se estendia diante de meus olhos gordos de curiosidade e prazer.

                       _ Eu estou no arco-íris...

                       _ Sim! Podemos brincar nele até a sua hora de voltar.

                      Por um momento muito rápido lembrei-me dos remédios. Eles precisavam ser tomados na hora certa e geralmente me acordavam quando eu não queria.
                      Mas ali, com tudo aquilo em minha frente, esqueci-me de minha rotina dos últimos dias.

                      _ Venha! A entrada é aqui!

                     _ Entrada? E cadê a porta?

                    Pelo jeito eu estava falando muitas coisas engraçadas, pois meu amiguinho abriu outra longa risada.

                    Entrei pela porta que não era porta, e nem portão parecia. Apenas os trilhos de cores embaixo de meus pés.

                    _ Aqui, precisamos obedecer às sinalizações.

                   _ Hãa?!



                   _ É, outros... outros amiguinhos também vêm brincar por aqui.

                   _ Sério? Não estou vendo ninguém além de nós dois...

                   _ É assim mesmo!!!

                   Esse era um momento no qual eu já aprendera a não insistir. Ele só explicava quando queria. Mais tarde eu faria essa mesma pergunta outra vez, de outro jeito. Quase sempre dava certo, pelo menos era o que eu pensava.

                   Não entendi os sinais que ele fez com as mãos, mas imediatamente senti meus pés deslizarem suavemente sobre o azul claro, o violeta, o verde claro...
                    Eu poderia jurar que sentia uma temperatura diferente em cada cor.
                    Meus pés descalços abriram a boca que não tinham e sorriam com as cócegas leves que subiam até a minha cabecinha.

                    _ Uau!!! Uauu!!! Uauuuuuuuu!!!

                   Outras risadas que meu amiguinho soltava e um convite para eu chegar mais perto.

                   _ Vou lhe ensinar um truque. Não é perigoso. Vem!

                  Quando me dei conta, lá estávamos nós, debruçados na borda da cor anil, espiando as casas que ficaram minúsculas. Pareciam pequenas caixinhas, com formiguinhas muito rápidas se movendo sem parar.

                   _ Olha, é o meu quintal!

                   _ E suas árvores...

                   _ É!!! Estão cheias de cores... bolinhas coloridas...

                   _ São as flores, esse ano você comerá muitas frutas.

                    _ Eu gosto de todas elas.

                   _ ...

                   _ Não tem gente em minha casa?

                   _ Sua família está lá!

                   _ Mas... está tudo tão quietinho!

                   _ Você está dormindo, esqueceu?

                 
                    Tinha esquecido!

                   _ Rafinha!? Rafa!?Rafael, meu filho! Olha só o remedinho que eu trouxe para você!

                   Não adiantava eu dizer que não queria tomar. Era melhor tomar logo do que ouvir tudo aquilo que minha mãe precisava dizer para me convencer. E ela sabia dizer.

                   _ Mamãe, você não me contou que as árvores estão grávidas!
     
                  _ Grávidas?...

                  _ É! Estão esperando frutas, cheias de flores redondinhas. Lá do alto, parecem pontinhos coloridos. Eu não tinha entendido que eram flores.

                  _ E... como você entendeu?

                  _ Meu amiguinho me explicou.

                  _...

                  _ E o arco-íris, mamãe, parece um trilho colorido, um trilho de trem. Mas sem o trem, você entende.

                  _ Entendo! E foi o seu amiguinho que lhe contou isso também?

                  _ Ele não contou, me levou até lá. As cores faziam cócegas em meus pés e...







                  Não tive certeza, mas eu vi minha mãe secar uma lágrima que escapara de seus olhos. E outra, e depois outra...

                  _ Mamãe, você está chorando?

                  _ Não, Rafinha, estava pensando se em um dia desses eu não poderia passear com você e seu amiguinho.

                  _ Vou pedir para ele, mamãe. Vou pedir para levarmos você junto. E o Fabinho também...

                  _ Isso mesmo! O Fabinho também irá gostar do passeio.

                  O sono chegava outra vez.
                  Nos últimos dias, quando estava acordado, eu quase não saía do quarto, a não ser para visitar o meu médico novo. E eu não conseguia gostar da visita. Todas aquelas coisas brancas... brancas demais para mim.

                   Além de mais e mais remédios, às vezes eu ganhava alguma coisa diferente para comer. Valia qualquer coisa que eu pedisse. E todos faziam festa quando eu queria algo.
                  Eu até queria. Mas conseguir comer era outra coisa.

                  E foi por isso que meu novo médico disse que eu teria de ficar alguns dias no hospital.






                  _ Eu não quero!!!

                 _ Mas é preciso, Rafinha!

                Naquela tarde, enquanto minha mãe preparava algumas coisas para levar comigo, eu adormeci.
                Quando meu amiguinho apareceu para brincar, me encontrou muito chateado.

                 _ Ora! É só por alguns dias. Além disso, eu continuarei visitando você.

                  _ Promete?

                  _ Prometo!

                  Ele cumpria suas promessas.
                  As visitas durante meu sono faziam com que eu acordasse melhor. Trazia sempre uma notícia diferente.


                  _ Mamãe, você sabia que a chuva...

                  _ E as nuvens são...

                  _ Não consegui ver o final do céu...

                 Às vezes eu conseguia ver um sorriso no rosto de minha mãe enquanto ouvia minhas histórias.
                 Meu amiguinho era muito importante para mim.

                 Certo dia, ele me levou para ver os outros quartos da casa do médico.

                 _ Do hospital...

                 _ Dá na mesma! Ele mora aqui, não mora?

                 _ ...


                 Visitamos outras crianças que pareciam sentir o mesmo que eu. Vi que muitas delas tinham um amiguinho que fazia visitas especiais.
                  Algumas dessas crianças moravam na casa do médico havia muito tempo. Conheciam todos os quartos, as salas com brinquedos e as outras salas cheias de aparelhos estranhos.
                  Algumas delas não conseguiam sair do quarto, ou então, quando saíam, alguém as carregava no colo ou em cadeiras que rodavam sem fazer barulho.
                  Claro que eu contava os dias para voltar para minha casa. Mas eu precisava ficar ali um tempinho, só um tempinho, até ficar mais forte.
                   Sentia falta de meu irmãozinho, de minha avó, de meu quarto. Queria brincar no quintal

                  _ E quero voltar ao...

                  _ Sei! Vamos brincar no arco-íris outra vez.

                  Às vezes ainda acontecia: eu esquecia o quanto meu amiguinho era bom em ouvir os meus pensamentos.

                  _ Podemos convidar outras crianças daqui?

                  _ Não sei... isso quebra algumas regras do...

                  _ Que regras?

                  _ Do... do... bem! Não custa tentar. Mas antes precisamos conversar com os amiguinhos delas. São eles os responsáveis por...

                  Era quase sempre assim. Quando parecia que eu iria saber alguma coisa importante, era hora de outra coisa importante também!
                   
                   _ Olá! Doçura!!! Hora de suas gotinhas!?

                  Era a amiga de meu médico e agora, minha amiga também. O nome dela era enfermeira de Tal. E estava sempre com os cabelos presos, usando uma roupa branca enquanto ia de um quarto para outro.
                  O médico tinha muitas amigas enfermeiras, e todas elas tomavam conta da casa dele e das crianças que estavam ali.
                  Quando ela ainda estava arrumando os vidrinhos cheios de nomes e números na bandeja que carregava, ouvi que outra a amiga enfermeira lhe chamava.

                  As duas me ofereceram um sorriso que por horas ficou passeando pelo quarto. Sorriso de amiga enfermeira era assim: sabia enroscar-se no travesseiro da gente e fazer cócegas nas orelhas, no nariz, nas pontinhas do cabelo. Isto quando a gente tinha cabelo, ainda, claro!... Esses sorrisos diminuíam o medo dos remédios, dos exames, das visitas às alas cheias de aparelhos estranhos e, principalmente, quase apagavam o medo das agulhinhas marcianas.
               Todas as casas de médicos têm agulhas marcianas. Elas até se escondem nas asas de borboletas pequenas, pequeninas, que grudam no braço das crianças para fazer mágica.
                Certa noite eu acordei e ouvi as duas borboletinhas grudadas em meu braço cochichando:

               ----- Ei! Cuidado para não apertar aí!

               ----- É claro que eu não vou apertar o braço dele. Você esqueceu?

               ----- Eu esqueci do que?

               ----- Shhh!!! Fale mais baixo.

               ----- Ai!!! Pelas asas das borboletinhas que voam!!! Eu estou falando baixo!!!
             
              ------ Shhh!!! Shhh!!!

              ------ Eu esqueci do que? Diga...


               ------ Hoje...

               ------ Hoje o que, menina!!!? O que?!!!

               ------ Shhh!!! Baixo... fale baixo....


               ------ Tá! Tá!!! E-s-t-o-u  f-a-l-a-n-d-o  b-a-i-x-o...

               ------ Isso não é falar baixo, isso é soletrar!!!

               ------ Menina! Você quer me contar de uma vez?

               ------ Você esqueceu que hoje é dia de trocar o marciano!? Não esqueceu???

               ------ É mesmo!!! Eu esqueci!!!

               ------ ....

               ------ Mas elas sabem fazer isso melhor do que ninguém!

               ------ É! Eu sei! Mas ainda assim, depende da nave que usarem para ele chegar e...

               ------ Todas as naves são iguais...

               ------ De jeito nenhum!

               ------ Shhh! Agora é você que está falando alto!

               ------ Tá!!! Shhh!!!

               ------ Hummm!!!

               ------ A nave que vem hoje é aquela que mistura muito combustível e o marciano precisa ficar bem comportado, senão...

                ------ Derrama o combustível fora da nave...

                ------ É isso!

                ------ E, o que podemos fazer para ajudar?

                ------ Aumentar as nossas asas?

                ------ Já aumentaram, não percebeu?

                ------ É, aumentaram. Então...

                ------ Podemos convocar uma reunião entre as borboletas deste pavilhão.

               ------- Ah!!! Não!!! Outra vez vamos precisar pedir ajuda para o Senhor Esparadrapo? Ah!!!

               ------- Shhh! Não tem outro jeito. Ele é o único que vai e vem, mas está sempre falando com todo mundo.

               ------- Claro!!! Com aquele jeito grudento dele, quem é que consegue ficar longe?

               ------- Shhh!!! Pare de reclamar! Ele é um bom sujeito.

               ------- É sim, especialmente quando fica enrolado, no lugar dele... só no lugar dele...

               -------... mas! Nós dependemos dele!

               ------- Você não ouviu a menina do 102 chorando por causa dele?

               ------ Não foi por causa dele.

               ------ Foi sim!!! Ele grudou tanto que não havia jeito de sair do bracinho dela.

               ----- Você é uma exagerada... ele saiu, sim!!!

               ----- Tá bom! Todo mundo sabe que você tem uma quedinha por ele.

               ----- Quedin...

               ----- Quedona!!!

               ----- Quedon...?

               ----- Quedonona!!!

               ----- Chega! Você está com ciúme! É só uma relação de trabalho!

               ----- Hum!Hum!

               ----- O que interessa é a nossa reunião...
    
               ----- Isso é verdade!!!

               ----- Pelo menos nisso você concorda!

               ----- Não comece!!! Aí vem a primeira bandeja da madrugada!

               ----- Shhh!!!

              ------ Shhh!!! Para você!!

              ------ Olhe! É ele, todo enroladinho, perto das luvas.

              ------ Já vi!!! Já vi!!! Que coisa!!! Nem consegue esconder o entusiasmo.
             
               O resto daquela conversa eu não consegui ouvir. Mas sabia que alguma coisa as duas estavam tramando. Era só uma questão de tempo e de atenção.   
                  Quando a gente está há muito tempo em um mesmo lugar, aprende a conhecer e reconhecer os sons, os barulhos, os passos, os movimentos, mesmo sem ver quem ou o que os faz. Foi assim que eu soube que a menininha do 102 não estava mais no quarto dela.
                   A casa do médico estava cheiinha, cheiiiiiinha de um silêncio diferente.
              
                   _ Ela voltou para a casa dela?

                   _ Sim, ela voltou para casa.

                   Meu amiguinho explicou muitas coisas que eu não entendi.

                   _ É... mais ou menos assim! Do outro lado do arco-íris... ela...

                   _ Podemos brincar com ela, então! Você me leva?

                   _ ... Não é bem assim!!!

                   _ Sei! A história das regras e...

                   _ É quase isso!...

                Durante vários dias, a casa do médico mostrou a falta da menininha que voltara para casa. Mesmo com tantas crianças hospedadas ali, cada uma era especial, e todos nós sabíamos disso.

                _ Estou com saudade do nosso quintal...

                _ Logo você estará correndo por lá. Eu tenho certeza disso, meu filho.

               Meus pais tinham certeza de muita coisa. Ainda bem, pois eu não entendia a maior parte delas.
               

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