FÁBRICA DE FIOS parte I
_ São fios!?
_ Não…
_ Olhe
outra vez!
_ São fios!
_ Olhe!
Olhe bem!
_ Tô
olhando… tô olhando!
_ Feche a
boca e olhe!
_ O que é que
minha boca tem a ver com os meus olhos?
_ Olhe!
_ Ta!Tá! Que
sac...
_ Só olhe!
_ Que sa...
_ Em silêncio!
_ Você está
falando...
_ Shhhh...
_ Áhhh!
_
Shhhhhhhhhhh!!!
_ São fios ou não são?
_ ...
_ São?
_ ...
_ Ei! Você ficou mudo?
_ Estou
esperando você decidir se devo falar ou não!
No meio da
conversa que por pouco, muito pouco não virou discussão entre amigos, um sinal
brilhante passou por sobre a cabeça dos dois.
_ O que foi
isso?
_ Não sei! Lá
vem outro!
E outro. E
mais outro cortando o espaço entre as caixas de papelão como se uma luz muito
fina estivesse sendo direcionada para algum lugar.
Outro! Mais
outro.
_ Tem mais
ali! Olhe!
_ Estou
olhando! Estou olhando!
_ Viu? Eu não
disse?
_ Não! Não
disse!
_ Eu trouxe
você aqui para que?
_ Você estava
com medo...
_ Medo? Eu?
Se João estava com medo,
deixava de senti-lo sozinho.
Quase da
altura do teto, luzes coloridas passavam raspando entre as coisas disposta pelo
galpão: máquinas que pareciam desligadas, caixas de todos os tamanhos, rolos de
cores diferentes que lembravam tecido fininho, fios enrolados em enormes
carreteis de madeira e outros objetos estranhos espalhavam-se uns sobre os
outros. Pilhas de várias formas faziam barricadas de diferentes tamanhos.
Uma saraivada de cores saía
de algum lugar e projetava-se pelo espaço aberto. E mais outra, e outra, como
se as cores se afinassem em um corpo de luz.
O vermelho
fazia um risco um pouquinho mais grosso, o azul era mais estreito, o amarelo
lembrava ouro líquido e o rosa, não dava para separar das outras cores quando
passava em linha reta. Era como se muitos fios fossem soltos ao mesmo tempo de
um só lugar, com força, com pressão suficiente para atravessarem a velha
fábrica.
Temerosos e
embasbacados, olhando para além do que conseguiam captar com o movimento dos
olhos esbugalhados, os meninos abaixavam-se procurando uma saída.
_ Se isso encostar
na gente pode queimar!
_ Não sei e
agora não quero saber.
_ Como vamos
sair pela porta?
_ Vamos sair
por onde entramos.
_ Você não está vendo que as luzes
saem daquele lado?
_ Da janela?
_ Não! De
alguma coisa que está daquele lado.
_ Precisamos
sair...
_ Calma!
_ Eu quero
sair agora!
_ Calma,
Marcos!
_ Não quero
saber de calma, quero sair.
_ Se você não se acalmar, vão descobrir a
gente!
_ Quem?
_ ...
_ Não sei!
Alguém!
_ Mas não
estou vendo ninguém!
_ Nem eu! Mas
alguém deve estar aí!
_ Quem?
_ ...
_ Quem?
_ Ai! Para de
perguntar e me ajuda a encontrar outra janela.
_ Não posso!
_ Por quê?
_ Estou com
medo!
_ Eu também!
Mas vamos sair...
_ Você não
deveria me trazer. Eu sou muito pequeno!
_ Você tem
seis anos!
_ Quero ir
para casa!
_ Já vamos!
_ Eu quero
agora! Agora!
Enquanto
Marcos preparava o seu “beiço” de choro, ouviram um apito em três tempos. Um
apito largo, comprido e alto.
Medo! Medo! Medo!
_ Eu quero
a minha mãe!
_ Eu quero
o meu pai!
Antes que
o choro fizesse um estrago, os fios luminosos deixaram de serpentear pelo
espaço.
Os meninos
sequer perceberam como e quando foram parar do outro lado da janela.
Estavam
lá! Em segundos que pareceram séculos!
As lágrimas molhando o rosto de
Marcos, o medo encrespando o rosto de João.
Dizem que
criança curiosa aprende mais rápido. Mas aos seis anos de idade, quase sete, os
dois amigos haviam buscado saber o que acontecia no velho barracão sem
conversar com quem quer que fosse sobre a empreitada que iniciavam.
_ Eu...
eu... ainda estou com medo.
_ Eu
também!
_ João? Você vai contar para a sua mãe?
_ ...
_ Vai?
_ Eu
quero saber o que é aquilo. Você não quer?
_ Você não vai contar?
_ Eu
disse que quero saber o que é
aquilo!
_ Eu não
volto lá!
_ Eu
quero saber o que é!
_ Melhor
perguntar para alguém!
_ Para
descobrirem o nosso lugar secreto?
_ Não é
nosso! É só um galpão...
_ Não tem dono! É nosso!
_ Não é
não!
_ E não é
só um galpão! É uma fábrica de...
_ ...de?
_ Não sei ainda, mas vou saber logo!
_ Eu não
quero saber!
_ Eu
preciso saber!
_ Mas, por
quê?
_ Sou
menino!
_ Eu
também!
_ Sou
inteligente!
_ Eu
também!
_ Tenho
quase sete anos.
_ Eu tenho
seis!
_ Sou
corajoso!
_ Eu
tamb...
O monólogo
dividido entre os dois foi longe! O que à primeira vista parecia um diálogo era
uma conversa para dentro, coisa que criança faz muito bem dizendo palavras para
fora.
_
Marcooooooosss!!!
_ Minha
mãe! Fui! Tchau!
Naquela
noite, os meninos deitaram a cabeça fora do travesseiro. Os olhos fechados viam
fios coloridos descendo pelas paredes do quarto, jatos de tinta luminosa faziam
desenhos em alto relevo.
Marcos sonhou
com o som do apito em três tempos e sentiu o medo molhar a sua cama.
_ Foi sem
querer, mãe!
_ Com
certeza, meu filho. Venha trocar o pijama.
_ E o meu
colchão?
_ Amanhã,
bem cedo, eu resolvo!
_ Você vai
contar para alguém?
_ É claro
que não! Esse assunto é seu! E meu...
_ É seu
também?
_ Sim! Sou
sua mãe..
_ Mas fui
eu que fiz xixi na cama!
_ Você está crescendo! Logo estará maior
e...
_ Vou
fazer mais xixi?
_ Não
exatamente! Vai aprender a controlar-se melhor!
_ Ah!
No sonho de
Marcos o apito tomara a forma de um robô gigante com um olho centralizado no
lugar onde deveria estar o nariz. Era um apito grande, enorme e ao invés de
braços, tinha seis tentáculos saindo das laterais. O som saía de uma abertura
no alto da cabeça e espalhava pequenas flechas toda a vez em que soava.
João estava
em seu sonho e tentava passar pelo apito gigante cheio de tentáculos quando
caíra dentro de uma caixa aberta que se transformara rapidamente em uma caverna
subterrânea. Marcos
queria seguir o amigo e não sentia onde colocava os pés. Do chão brotavam bolas
coloridas, ameaçadoras, cujos olhos enxergavam através das coisas.
E o apito robô procurava por
eles.
Girava a
grande cabeça e soava alto, em três tempos, soltando flechas que agora ganhavam
pequenas pernas. Pernas sem corpo pulavam sobre as bolas que estavam enchendo o
lugar. Quase até o teto.
Uma flecha
com pernas rápidas grudou em seu cabelo e Marcos sentiu os quatro olhos da bola
mais próxima perfurar o seu corpo.
Gritou e
gritou e gritou.
Mas a bola não
sabia que ele era apenas uma criança e chamou as outras bolas que se
aproximaram todas de uma vez só.
Queriam
guerra! Ele podia ver a vontade de brigar que elas mostravam nos olhos sem
cílios. Grandes olhos, gosmentos, arredondados como elas próprias.
Ouviu João
gritando para que não tivesse medo.
Mas as
bolas viraram outros apitos e as pequenas flechas transformaram-se em cordas
grossas, longas, cheias de nós.
João subia
pelas paredes tentando alcançá-lo, chamando, gesticulando. Mas os pés de Marcos
já estavam amarrados pelas cordas que se mexiam sem parar, grudando um nó no
outro.
Acordou
suado e molhado.
A impressão
de que o sonho fora real durou vários dias e manteve João longe das visitas ao
velho galpão.
_ Não são
visitas, são “pesquisas”.
_ Eu não
volto lá!
_ Você é
meu amigo!
_ Sim!
_ E é
corajoso!
_ Sou pequeno ainda!
_ Mas é um
menino...
_ E o que
tem isso?
_ Você é um
menino!
_ Eu sei!
_ Então... é
um homem!
_ Sou um
menino!
_ Você
entendeu!
_ Não! Não
entendi!
_ Homens não sentem medo!
_ Sentem!
_ Não! Homem
não pode sentir medo!
_ Mas
sentem...
_ Você é uma
criança!
_ ...!
Várias
semanas se passaram até Marcos ser convencido por João de que “pesquisas”
científicas implicavam riscos.
_ Então é
perigoso!
_ Ainda não
sabemos!
_ Mas é
perigoso.
_ Não
sabemos ainda.
_ Existe um
perigo perigoso...
_ Existe um risco...
_ Não! São
vários, muitos riscos coloridos!
_ Ô! Meu!
Aquilo são fios... fi-os!
_ A gente
não tem certeza.
_ ...
_ Então,
pode ser perigoso.
_ Pode! Não
sabemos ainda!
_ Não vou!
_ Eu cuido
de você!
_ ...
_ Eu sempre
cuido de você!
_ ...
_ Somos os
melhores amigos...
_ ...
_ Vai me
deixar sozinho?
_ Tá!... eu
vou! Mas vou entrar só um pouquinho! Bem pouquinho!
_ Vamos
entrar, olhar e sair logo!
_ Vou colocar só um
olho para dentro.
_ Só um
olho?
_ É! Senão,
não vou!
_ Tá!Tá!
Marcos e João
dobraram esquinas que não precisavam de dobras. Cortaram caminhos com a pressa
de quem está diante de um acontecimento tal que nada nem ninguém poderia
interromper.
Nada a não ser
o medo! Descobrir algo perigoso ou serem descobertos descobrindo algo perigoso
era muiiiiiiiiiiito perigoso.
( continua...)
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