Em uma CIDADE com NOME de SANTO - parte 3


              Desfez-se a lona, o picadeiro sumiu.
              Levaram as cadeiras?, como?, quem?, para onde?, ninguém viu.
              Também não viram sair o cortejo silencioso, agora encorpado pelos vultos pequenos e sem cor.
               Instrumentos arriados, pés arrastando o peso de uma dor sem limites. Nem mesmo Machado de Assis poderia imaginar uma cena tão calejada pelo silêncio.
               Na pracinha, a discussão tomara corpo e cada qual tinha lá as suas razões.
               A noite caía quando a Das Cores resolveu impor ordem à sessão.
              Ganha a palavra, queixou-se das más criações e disse parecerem crianças em dia de agitação.
                Crianças, e por falar em crianças... onde?
               Se imaginavam tudo voltar ao normal, bastou deitarem os olhos nas figuras imóveis no centro do que antes fora um picadeiro, para terem certeza de que alguma coisa sem nome estava só começando.
                Palavras não foram ditas, nem tinham lugar, tamanha era a força triste que emanava do centro da praça.
                 Os potes, intactos, marcavam a cena como flores vivas, esquecidas por um jardineiro tresloucado em pleno campo de corte.
                  Por breves segundos, a consciência entre todos foi a mesmíssima! Compartilharam a firme certeza de não ter certeza qualquer.


               Mas o tempo que é uma ilusão cobra o preço dos incautos.
              Um estrondo seguido de chuva torrencial debelou-se furiosamente.
              Abateu-se sobre a cidadezinha um aguaceiro de fazer dó.
               No centro da praça, juram os que ainda olharam para trás, ficaram incólumes, o elegante vovô, o menino franzino e o casal de avestruzes, rodeados pelos incontáveis potes.
               A chuva durou um dia e uma noite.
               Ninguém pôde sair de casa.
               Ninguém pôde trabalhar.
               Por entre os pingos grossos passavam os chamados das mães: fulano, onde está? Sicrano, venha cá!?
               Claro que desespero não foi, pois bem sabiam as mães e os pais tinham de saber também: as crianças estavam com “eles”, e “eles” moravam além.
               Além das montanhas, em um belo lugar, limpinho e branquinho, lugar de velhinho ficar. Mas não custava chamar, pois já se sentia falta, muita falta, dos pequenos bagunceiros.
               A manhã que traria o sol enfarruscou a cara.
               Dia estranho.
               Nem bem iniciara e dava ares de que a noite estava ali, logo ali, beirando os limites da cidade.
               A primeira providência foi correr para o A.S.I.L. O (Ambiente Silencioso para Idosos e Loucos Obedientes).
                Certamente as crianças mereciam um bom corretivo.
               Algo que lhes mostrasse para todo o sempre onde era exatamente o lugar de cada um.
               Algo que lhes ensinasse a cumprir as ordens dos mais velhos e que lhes mostrasse a razão do certo e do errado! (óbvio como o sol que derrete a neve que ninguém, ninguenzinho questionou qualquer um dos argumentos não argumentados) Então, tudo voltaria ao normal!
                   Munidos de muita vontade, os pais e representantes bateram uma vez só na porta do estabelecimento.
                   Um toque urgente, seco, ansioso. A porta foi aberta antes que o som se perdesse por entre as montanhas.
                    E então, Ela é rapidamente vista.
                   Quem a viu e sentiu, não esqueceu jamais: cheiro de anis, erva-doce, cravo, canela, manjericão. Cheiro de carambola, de louro, de mel e limão. Cheiro doce e quente, cheiro de leite, cheiro de comida no fogão.

                Cheiros... cheiros... cheiros... não foi possível perguntar.
               Ela saiu e ninguém viu.
                A sala cheirava a pedaços inteiros da infância de um e de outro. O arroz-doce da bisavó Ida, a marmelada da tia Jura, o melado da... Cheiros inebriantes, cheiros que coçavam o nariz e deixavam a barriga enroladinha de saudade. Cheiros coloridos, cheiros compridos, cheiros enrolados em papel. Cheiros amanteigados, cheiros para revirar os olhos da alma e deixar a boca pronta para receber mais. Emudecidos pelos cheiros das lembranças, tardaram a ler um enorme cartaz:

              QUERIDOS PAIS, SIGAM A SETA.

                         A seta, pintada em amarelo ovo, indicava uma porta à esquerda da sala.
                         Diante do grupo, abriu-se uma sala iluminada. 


                                     
                         Inúmeros potes descansavam sobre um tapete de algodão cru.
                        Alguém reconheceu os potes depositados na pracinha no dia da confusão, ou melhor, da reunião.
                        Tampados e sem qualquer identificação ou similaridade, lembravam um recorte impreciso de vidros feitos a sopro, ou seria madeira?, não seria papelão? Talvez ferro batido, ou alguma outra coisa que lembrava o trabalho de um artesão.
                        Nada muito claro.
                        Eram tantos os potes, eram tantos os cheiros, somados ao inusitado da situação que, envolvidos pelo contexto, os pais sequer pensaram em encontrar uma razão. 
                         Logo atrás da intrigante cena, um cartaz menor, escrito à mão, pedia que escolhessem cada qual um dos potes presentes.
                         Em letra legível e texto claro, pedia também que não fossem abertos por ora.
                         Um a um, em silêncio constrangedor, os pais escolheram um pote.
                          Não sabiam muito bem o que faziam, mas faziam. Levados por uma onda cada vez maior de curiosidade acotovelavam-se em um canto da sala, olhando e cheirando, buscando qualquer indício que derramasse um pouco de luz à situação.
                           Verdade que luz ali não faltava. Mas a escuridão era interna, parecia ter tomado conta dos pensamentos paternos.
                          Como se uma rede de várias vontades entrelaçasse entre si outras vontades, imagens e lembranças não identificadas até o momento. Ou pelo menos, esquecidas em um canto qualquer de um momento qualquer na vida de cada um.
                          A mistura era poderosa. Deixava um gosto de coisa boa e ruim ao mesmo tempo, de dor e alívio, de dúvida e certeza, de medo e de bravura.
                          Embriagados pelos sentimentos fortes, não tiveram clareza de quando Ela entrara.
                             Antes que a figura muito alta e esguia se desenhasse no contorno da porta, um cheiro inebriante e indecifrável aportou em todos os narizes.
                             Narinas estufadas de tanto cheirar, o momento excedia ao máximo qualquer expectativa.
                              Singelamente discreta, Ela mostrou outra porta.
                              Nada disse, apenas apontou.
                              Cabelos escuros e não completamente lisos – há controvérsias nesta descrição _, carregava uma cesta enorme, com alguma coisa amarelada e contorcida dentro.
                              Talvez a coisa não fosse exatamente contorcida, mas sim redonda e alongada em uma das extremidades. Impossível precisar era informação demais para todos os sentidos. Ficou no talvez, quem sabe, pode ser. Mas todos concordaram quanto à cor. Era uma coisa amarela, sim. Muito amarela e razoavelmente grande, pesando entre dois e três quilos.
                              O tempo para considerações só se deu mais tarde, visto que todos atenderam ao sutil convite dEla.


               A outra sala parecia pintada de rosa-claro. Só “parecia”, como tudo ali.
                Ninguém tinha certeza de nada, pois cada um vivenciava a experiência a seu próprio modo, dentro de um universo singular, único, intransferível.
               Grandes e fofas almofadas esparramavam-se pelo espaço.
              Os cheiros que não se esgotavam, tinham um quê de nostalgia, de coisa desconhecida, mas da qual se sentia saudade.
               Parecia ser uma sala preparada para o descansar, para o ouvir e pensar, para o imaginar e o viajar.
                O apelo aconchegante venceu o pudor. Abraçados aos potes, os pais recostaram-se às almofadas.
                   Profundos suspiros ouviam-se pela sala.
                    E então, da porta por onde saíra Ela, entra o ser mais inebriante visto até então.
                    Outra mulher se aproxima.
                   Longos cabelos escuros, pele cor de chocolate.
                   Em uma das mãos carregava um grosso livro, e na outra, amparava um bolo de lã branca que só muito estreitamente olhando lembrava um cachorro.
                   Era a “guardiã de todas as histórias”.
                   Conhecidíssima e admirada pelas crianças, ela fazia o percurso inverso de quem tutela o que sabe: não guardava as histórias para si. Ao contrário, partilhava-as com quem as desejasse ouvir.                      A bela contadora acomodou-se sobre os próprios pés, lembrando a milenar postura das sábias índias brasileiras. De seu colo o cachorro saltou para reconhecer os presentes, despertando pequenos risos de simpatia entre os pais que já se encontravam mais acomodados ao inesperado das situações.


                     Como que modulada por aveludadas ondas de chocolate-quente, a voz da que sabia contar espraiou-se pela sala.
                     Pausadamente e imputando vida a cada movimento narrativo, contou e contou e recontou vezes sem conta as histórias que sabia e as que ainda estavam por saber.
                     Em quanto tempo isso se deu, é impossível dizer.
                    Várias horas, talvez um dia, mais de um.
                    As histórias tomaram forma e engoliram o momento.
                   Diplomados pelo pendor da “adultice” aqueles homens e aquelas mulheres conheciam a estrutura das barricadas contra os sonhos; dominavam como ninguém as armadilhas que a emoção humana arma contra os despreparados e os frágeis; eram especialistas em estancar o choro, em reprimir gargalhadas e em só fazer o que era correto (...)
                        Formados e enformados não contavam com a força das narrativas na voz da contadora, nem sabiam de seu amplo “curriculum” no universo das crianças, das lendas, dos cachorros, das fábulas, dos contos, da esperança e da fé.
                       Eles não sabiam que ela guardava as bibliotecas do mundo e armazenava todos os pontos e as vírgulas, que conhecia as reticências do meio para trás e de trás para frente.
                        Os pais dificilmente sabem por onde andam até bater com o dedão contra o próprio dedão.
                         Aí, encontram a linha do umbigo ou a linha do horizonte, dependendo de seus ancestrais. E isso já é uma loucura sem chamar os ancestrais.
                         Mas foi por aí que a guardiã lançou seus pontos.
                         Certamente não poupou exclamações, nem fechou parênteses.
                         Verdade seja pensada: ela sabia contar e fez disso o seu mote.
                          Contou o que eles já sabiam, mas não tinham ouvido contar.
                      Falou do que se fala com outro jeito de falar.
                     Até hoje se fala em magia, em hipnose, em beberagem e sabe Deus mais em que. A palavra cria, gera, move, propõe... e até serve para o falar.  Quem diz que na “adultice” se consegue pensar?


                     Nem magia, nem outra coisa qualquer.
                    Da sala das palavras contadas, os pais foram conduzidos para um salão curiosamente maior.
                    Muito maior do que era, era maior do que parecia ser. Seria um jogo de luzes? Outra ilusão dentro de tantas outras ilusões?  Saudade das crianças? Medo de descobrir e gostar de gostar de descobrir e de gostar? Medo de ter medo do medo?
                   Era um salão de experimentar.
                   Não que lá tivesse qualquer coisa para ver. Amplo e vazio. Vazio e amplo.
                   De tanto procurar o quê ver, os pais se descobriram a olhar.
                  Primeiro com o rabinho dos olhos, devagarzinho com o canto da pálpebra, afastando um cílio, dois, levantando a sobrancelha para ajudar.
                  Foi difícil no começo.
                  Olhos que olham olhos não é uma boa indicação de etiqueta social.
                  Já imaginou se isso pega e as pessoas saem por aí olhando dentro dos olhos umas das outras?
                   Seria um verdadeiro caos.
                 Não existiria mais privacidade e adeus se dizer que não se está. Não dá para bater na porta antes de entrar e para isso também não inventaram tranca.
                 Olho é olho. Feito espelho, mostra tudo o que está lá e até o que a gente pensa que não entrou.
                  A olhação rendeu um pouco de tudo. Teve quem riu até molhar a... é! Teve quem riu muito, quem sofreu para rir, quem riu sem sofrer e quem não conseguiu rir. Alguns choraram para rir, outros riram para chorar, outros choraram de tanto ir e outros apenas choraram.
                    Olhos fundos nos olhos sem fundo, a visão foi do próprio mundo. Ninguém descobriu mais do que já sabia.
                     Mas pelo salão amplo bailavam imagens antigas de “eus” divididos, esquecidos, perdidos, sofridos, alegres, felizes, meigos e raivosos, queridos e alquebrados, funestos e esperançosos, títeres e algozes.
                   Ludibriados por longos anos de fase adulta, esqueciam-se dos tipos já alçados, dos sujeitos que também eram, das graças que sabiam fazer, dos equívocos cometidos e dos milagres alcançados.
                     Mas foi só buscar o espelho que não quebra nas águas da alma para que ninguém ficasse sem ver a si mesmo vendo o outro que não via.
                    E então o salão rodou.
                    Rodou em viva roda a roda da vida.
                   Várias voltas desenharam os círculos da convivência, os elos das semelhanças e das diferenças, os nós do convívio e os modelos dos parentescos.
               Os diferentes descobriram-se singulares e os semelhantes descortinaram-se únicos.  
              Os círculos são mágicos e protegem os imberbes de deslizarem pelas linhas retas e afogarem-se em pontos inexistentes.
                Os círculos misturam todas as cores, forjam os anéis da esperança, sacramentam as iniciações, guardam os segredos e fecham-se contra todos os males.
               Antigos escritos pregam a magnificência dos círculos e suas profícuas intersecções, mas não se ensina a linguagem deles nas escolas da vida.
                Daí o analfabetismo galopante atingir todas as raças e credos neste planeta tão plenamente circular.
              E foi em uma das voltas experienciadas no amplo salão que todos o viram ao mesmo tempo. Não! Isso era demais.
              As mulheres adiantaram-se em descabelada carreira.
              O espírito materno gritou no peito feminino e alterou os músculos das pernas masculinas.
               Mães e pais descobriram-se mães-pais, pais-mães, pais-pais, mães-mães e o que mais desse para associar com o mesmo valor e calor.       
              Ele era demais, demasiadamente demais. Ele era um pequeno bebê.
              Pedro chamou a si mesmo e foi ter com eles.
              Não se furtou a receber os ávidos carinhos e cuidados de quem precisava dar para receber.
              Com a paciência dos que sabem, ofereceu as bochechas rosadas para as pontas dos dedos em forma de pinça.
              Permitiu os beijos molhados pelo amor aquoso das mães integrais.
              Deixou-se levantar nos ares e até lhes ofereceu o vômito bendito das regurgitações leitosas.
              Cumpriu com seu papel de bebê no “script” de cada um.
              Fez beiço e sorriu, engatinhou e deu os primeiros passos, subiu pelas pernas gordas e deitou nos colos secos.
              Puxou bigodes e enrolou cabelos compridos, chupou o dedo e aceitou a chupeta.
              Preferia um PF, mas aceitou a mamadeira.
              Até fez uma “caca” para que limpassem a sujeira.
              Foi Pedro e não pedra no caminho de todos eles.
              Amarrou círculos tangíveis com o poder dos cabelinhos novos e ainda mordiscou o coração de cada um com a primeira dentição.
                Estava feito.


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