Arco-Íris Invisível parte IV









Aquarela em cartão/Ivane Laurete Perotti
 ARCO-ÍRIS INVISÍVEL    



Ivane laurete Perotti



(prêmio LITERARTE 2012 em Literatura Nacional Infanto-juvenil)


Parte IV


Se existia uma vantagem em estar hospedado na casa do médico era a de ver o meu pai todos os dias. E a melhor de todas as nossas conversas foi quando eu descobri que ele também tinha um amiguinho que o visitava quando o sono chegava.

                _ Ele me visitava mais quando eu tinha a sua idade, meu filho. Agora, deve estar muito ocupado para fazer visitas...

               _ Ou você, papai!

               _ Eu, o que, meu filho?

               _ Acho que é você que anda muito ocupado e não consegue receber o seu amiguinho.

               _ É... você pode ter razão!!!

                _ Qual o nome dele?

               _ Nome? ... nunca perguntei... não sei o nome dele. E o seu amiguinho, que nome tem?

               _ Também não sei, mas vou perguntar quando ele vier me visitar.

                Essas e outras conversas interessantes me fizeram pensar que meu pai tinha sido um menino igual a mim. Era quase impossível eu imaginar isso. Nunca havia pensado que meus pais foram pequenos um dia. Era muito estranho, muito estranho mesmo.

               _ Um dia, você também será adulto... terá filhos...

               _ Ah! Não, papai! Eu não quero ter filhos. Na-na-não!
         
               _ Mas...

               _ Ter filhos leva o papai para longe de casa e eu não quero ficar longe da minha casa.

               _ ... Nem sempre, Rafael. Só que às vezes...

               _ Eu já decidi isso, papai. Não vou ficar grandão nem vou ter filhos.

               Às vezes essas conversas iam longe, outras vezes, paravam com o silêncio repentino de meu pai. Não sei o que ele pensava, mas eu acabava sempre ganhando um sorriso no final.

                Durante muitos dias eu fiquei na casa do médico.
                Quando voltei para a minha casa, soube que teria de continuar hospedando-me lá de vez em quando, mas isso já não era tão ruim assim, pois sentia saudade de meus novos amiguinhos. E muitos deles não poderiam voltar para a própria casa tão cedo!
                Pude sentar com meu irmãozinho no quintal sempre que o sol aparecia.
                Acho que foi aí que passei para ele o meu gosto pelas coisas do alto. Minha atenção estava sempre acima, no alto, tanto fazia se o alto ficava no pé de jabuticabas, no telhado pintado de marrom, nas nuvens ou no céu carregado de nuvens e... arco-íris!
                Porque o arco-íris desaparecia em dias de sol?

                _ Na verdade, ele não desaparece, meu filho!
    
                _ Desaparece, sim, vovó!

                _ O caminho das cores no céu está sempre no mesmo lugar, nós é que não conseguimos vê-las!

                Foi então que minha avó me contou mais uma de suas histórias cheias de boas coisas antigas. As coisas que minha avó contava não tinham cheiro de mofo, nem de pó que fica parado criando uma espécie de capa que esconde as cores. Minha avó tirava o pó e o mofo de todas as suas histórias, polia as palavras com um lustrador especial – coisinha típica de avó esperta _, e deixava tudo tão novinho que parecia recém-acontecido.
              Quando ela respirava fundo, a gente sabia que a faxina na história tinha terminado e tudo estava brilhando

para nos  prender e surpreender. As histórias dela prendiam o pescoço de quem as escutava. Davam um nó nos ouvidos e enchiam os pensamentos de palavras que grudavam feito bala derretida.

                _ Ele gostava muito de estudar...
               
                _ Vó?!!! Ele foi seu namorado?

                _ ...Bem!!!Ele... é... isso eu conto depois. Mas ele realmente sabia estudar.

                _ Ele ia para a escola todos os dias?

                _ Sim, mas a escola dele era muito, muito grande. Não tinha hora para entrar ou sair. Ela uma escola permanente.

               _ E a hora do lanche?

               Depois de algumas explicações básicas, eu entendi que Ele, ainda sem nome para mim, estudava o tempo todo: lia, pensava, observava o tempo, as pessoas, os animais, as plantas, ouvia muito e falava apenas quando convidado. Era um jeito de estudar que me parecia muito bom, e que eu gostaria de aprender.

               _ Ele aprendia com a vida, com qualquer coisa que acontecesse, boa ou ruim, feia ou bonita, ou até com aquilo que às vezes pensamos que não tem muita importância. Tudo era interessante para ele. Absolutamente tudo!

               E foi assim que se interessou pelas cores que vemos e por aquelas que pensamos não ver.

               _ Existem cores invisíveis, vovó?

               _ Quase isso... são padrões de cores que nossos olhos não estão acostumados a ver. Mas elas existem e até se combinam criando algumas ilusões.

               _ Hummm!!! Quero estudar isso também!!!

               E para mostrar que sua história era verdadeiramente de verdade, minha avó buscou um quadro.

              _ Foi Ele que fez...

             _ ...

             _ Quantas cores você vê aqui?

             _ São... cinza, vermelha, amarela e...

             _ Pois, aí está! Na verdade ele fez esse quadro usando apenas uma cor.

             _ Não!!! Eu estou vendo várias cores...


             _ Esse é o resultado da cor usada de modo a provocar essa ilusão.

            _ Vovó! Você está enganada, olhe só como o preto e o vermelho e...

            _ Sim, eu também os vejo. Mas ainda assim, a cor que ele usou é apenas uma só!

            Essa história rendeu outras. Eu queria estudar o que Ele estudara para saber pintar assim também!

             Obtive a promessa de ser iniciado nessa ciência que talvez me levasse a saber mais sobre as cores, os arco-íris, e ...

              _ Vovó, quem era Ele?

              Minha avó me deu um daqueles sorrisos que vem atravessando o rosto mais para um lado do que o outro e eu até pensei que seus olhos foram para um lugar do qual ela não queria voltar.
              Não insisti demais, pois logo minha curiosidade voltou-se para o modo de estudar que Ele desenvolvera.

               Pedi ao meu pai a sua lente de aumento emprestada e durante dias, fiquei bisbilhotando o que estava mais perto de minha cadeirinha de ir para o quintal.

               Já estava com muita saudade de meu amiguinho quando ele resolveu fazer uma visita em meu sono da tarde.

                 _ Estava com saudade de você!

                _ Isso é bom! Quer passear um pouco?

                _ É claro!!! Será que nós poderíamos fazer uma visita ao...

               _ Arco-íris!

               _ Isso! Mas dessa vez, eu não quero só brincar. Eu quero estudar!

               _ Estudar? O quê?!

               _ Quero estudar as cores, onde elas começam, como se encontram...

              _ Hummm...

             _ Ahã! Ahã!
    
             _ Bem, talvez seja melhor eu lhe apresentar o...

            _ Vamos!!! Vamos!!! Eu quero! Eu quero!

            E eu conheci um Pintor diferente.
            A princípio, enxerguei apenas um inseto branco, carregando um grande pincel. Depois, mais perto, eu já não sabia se era mesmo um inseto o que eu via.Parecia um pássaro sem bico, mas também me lembrava um pouco o Papai-Noel. Na verdade verdadeira, até esqueci-me de tentar identificar o que ele era. Fiquei impressionado demais para discutir o que meus olhos viam.

            _ Use esse par de óculos! Para você assistir ao que ele faz, precisa de lentes especiais.

            Meu amigo nem precisou repetir. Eu me apoderei rapidamente daqueles tubos transparentes que ficaram enormes sobre o meu nariz.

            Estava sem fôlego! Sem palavras! Até as perguntas encolheram-se diante de tamanha maravilha.

             Não chegamos muito perto, até porque o movimento de algo que parecia tinta, mas que eu desconfio que não fosse tinta, subia e descia sem parar. Tudo acontecia ao redor do grande pincel que sequer encostava-se àquelas cores. Eu vi cores que não permitem ser descritas.

               _ É isso mesmo!!! Algumas cores não têm palavras que as representem.

               _ ...

               _ É uma questão linguística!

                _ ...

               _ Qualquer dia, em uma de minhas visitas, eu levo você para conhecer a neve.

                _ ...

               _ Os esquimós, por exemplo, descrevem dezenas de nuances de branco da neve.

                _ ...


              _ Rafael!!! Você...

              _ Shhh! Olhe para aquilo!

               Os meus olhos atrás dos tubos que serviam de óculos viam cores que iam do vermelho ao violeta.
                _ Sim... as cores do arco-íris que geralmente ficam fora do alcance dos olhos humanos               

                 _ Mas... por quê? Todo o mundo gostaria de ver essas cores.

                 _ O olho humano se adaptou e acostumou a ver certas cores. Pouquíssimas pessoas podem ver o que você está vendo. Mas, alguns animais e insetos conseguem vê-las muito bem!


                  _ Isso não é justo!

                  _ É justo sim, Rafa!, muitos pássaros veem cores diferentes exatamente para protegerem seus ovos.

                 _ Continuo achando que isso é injusto!

                  A discussão só não avançou porque nesse exato momento eu via o que sabia ser...

                 _ Ultravioleta! A cor que os beija-flores enxergam e os ajuda a encontrar o néctar nas flores.

                 _ Uau!!!

                 Por um descuido, meus tubos feitos óculos caíram de meu nariz.


                _ Ei!!! Cadê as cores? Cadê?

                _ Estão aí, no mesmo lugar.

                _ M... mas...

                _ Seu cérebro as captou, mas os seus olhos não sabem traduzi-las.


                Os tubos voltaram para o meu nariz a tempo de eu ver um novo arco-íris ser iniciado.
                Eu não queria voltar. Mas o meu amiguinho era cheio de regras e...

               _ Filhinho?! Hora de comer um pouquinho!

   
               _ Mãe? Você sabia que os pássaros conseguem ver...

               Mais uma vez minha mãe me ouviu sem perguntar como eu sabia o que sabia. Acho que ela já estava acostumada com o meu jeito e as visitas do amiguinho que nunca vira.

                Melhor. Ficava mais fácil se fazer entender sem explicar qualquer coisa.

                Fiquei um longo tempo em casa e outro ainda mais longo hospedado na casa de meu médico. Alguns amiguinhos já haviam partido mesmo sem eu saber para onde.

                Eu não insistia mais sobre isso, pois minha mãe desatava a chorar na frente de frente de quem estivesse por ali se eu fizesse a pergunta.


                 A Enfermeira de Tal estava sempre lá e não demorou em eu ouvir outra conversa entre as borboletas em meu braço.

                 ------- Você está muito abusada!


                 ------- Eu? Ora! Você que foi visitar o Senhor Esparadrapo e que eu sou abusada?

                 ------- Fui convidada! Estava pero da sala de...

                 ------- Sei! Sei! Estava só passando, não é?

                 ------- Mais ou menos isso, sim!

                 ------- Humpff!

                 ------- Além disso, você está com ciúmes, outra vez!

                 ------- Ciúme? Imagine! Você que é meio... meio...

                 -------- Diga! Vamos!!! Sou o quê?

                 -------- Oferecida!!! É isso! E sabe muito bem que o Senhor Esparadrapo passa grudando em tudo o que vê!

                 -------- Não é bem assim, não!

                 -------- Como não?

                 --------.....

                 -------- Você... parece que não sabe o que aconteceu em nossa reunião?

                 -------- É... sei! É...

                 -------- É, nada! Ele é um tremendo ga... ga...

                 -------- Cuidado com as palavras! Nós estamos em uma ala infantil. In-fan-til!

                 --------- Tá bem! Tá bem! Você me entendeu! Ele é um grudento cara de algodão com cola...

                 -------- Hi!Hi!Hi!

                 -------- Você está rindo do quê?

                 -------- Hi!hi!... algodão com cola! Até que nisso você tem razão. Hi!hi!..

                 -------- Hi!hi!... é mesmo!!! Cara de algodão e bund...

                 -------- Shhhh!!! Fale baixo! Olhe as crianças!!!!


                Parecia-me que pouca coisa mudara na casa do médico! Os mesmos barulhos, os horários certinhos, a comida separadinha para cada um... eu ficaria ali por um tempo que acharia longo demais.

                Encontrava meu amiguinho mais vezes agora. Eu dormia durante muito tempo. Às vezes, eu sequer notava que estava com sono. Diziam que era um modo de eu me recuperar mais rápido. Eu não entendia, mas também não conseguia permanecer acordado por muito tempo e nem encontrava forças para discutir.

                Em um de nossos passeios durante o sono, eu estava decidido a não voltar mais para a minha cama na casa do médico’

                _ Estou cansado de tanto dormir...

                _ Você está se recuperando. Vamos caminhar um pouco sobre...

                _ Não quero, não tenho vontade de acordar outra vez e outra vez e outra vez.      

                _ ...

                _ Eu quero ficar aqui, no arco-íris!

                _ ...

                _ Quando estou aqui, meu corpo fica levezinho e eu não sinto dor.

                _ Eu sei, mas...

                _ Quero ir até o fim do arco-íris...

                _ Não! Você não pode, isso... isso...

                _ Eu quero ir!

                Várias vezes acordei nesse ponto, por pouco tempo, mas acordava, como se meu amiguinho soubesse ser esta uma forma de me calar.

                Meus pais não saíam mais da casa de meu médico. Até meu irmãozinho fora levado para me ver. Mas eu pouco conseguia entender o que isso significava.

                Ouvi novas e repetidas histórias de minha avó que insistia em continuar contando-as mesmo quando eu
estava lá em cima, no meio das cores, passeando ou apenas insistindo com meu amiguinho para me deixar ficar ali.
                Ele não cedia e eu não desistia.
                Queria ver outra vez o festival de cores invisíveis, mas pelo jeito isso era contra as regras de alguma coisa que eu ainda não conhecia.

                 Também não visitava mais os meus outros amiguinhos hospedados nos quartos da casa.

                 _ Você está se recuperando! Vamos caminhar sobre...

                 _ Eu quero ficar aqui!

                
                 _ Não! Você deve voltar!

                 Durante um sono muito, muito longo que fiz, meu amiguinho aceitou me mostrar o fim do arco-íris.

                 _ Essa é a última vez que faremos essa visita.

                 _ Claro! Pois eu vou ficar aqui!

                 _ Não! Você está aqui para aprender, apenas aprender.

                 _...!







                 _ Já sei. Quer ficar... mas veja! É o fim do arco-íris.

                 _ Não consigo ver.

                 _ Não consegue porque ainda tem muitas e muitas coisas para fazer antes de passar desse ponto.

                 _ Aqui é bom! Podemos fazer tudo junto!

                _ Faremos muitas coisas juntos, ainda. Mas não aqui...

                _ Não quero mais voltar. Não posso brincar no quintal, não posso ir à escola... aqui eu posso ficar.

                _ Poderia! Mas para você, esse caminho estará interrompido por ora.

               _ ...interrompido?

               _ Em outro momento você entenderá. Agora, nós vamos voltar e você acordará melhor.

              _ Não! Eu quero brincar aqui...

              _ Não é um lugar para crianças que irão crescer e crescer e...

              _ Não quero crescer!

              _ Já está crescendo!

              _ Eu gosto de lugares coloridos...

              _ ...

              _ Estou cansado!

              _ Você ficará forte outra vez!

              _ ...

              Acordei com saudade de alguma coisa que eu não conhecia. 
               Estivera por um longo tempo em um lugar bem diferente dos outros quartos na casa do médico. Era um lugar ainda mais arrumadinho, branco, limpinho e quieto. Era um quarto especial, só para momentos especiais, com enfermeiras especiais e muitos tubinhos diferentes.
              Quando meus pais entraram, eu não conseguia falar, mas sabia que tinha coisas e coisas para contar a eles. E queria ouvir, fazer e... eu estava com fome!

               Alguns dias se passaram até que me deixassem comer o que eu queria. Comi! Só um pouquinho, mas comi com tanta vontade que várias fotos foram feitas durante as mordidas que eu dava.

               Pude visitar algumas crianças que estavam dormindo. Eu sabia onde elas brincavam enquanto todos aqueles fios e tubinhos as deixavam boas.
               E fiz como vi minha avó fazer: contei histórias sobre o arco-íris interrompido e a minha hora de voltar. Também contei sobre o meu amiguinho e todas as cores que eu vira. Falei com eles porque sabia que estavam me ouvindo... eu ouvira minha avó!

                Fiquei ainda um bom tempo hospedado na casa que chamavam de hospital. Foi divertido! Já conseguia fazer muita coisa sem a cadeira de rodas. E a principal delas era falar sem parar.

                A Enfermeira de Tal, minha amiga de longa data, dizia que em algum momento alguém trocara minha língua.
                Eu achava muita graça disso e em troca de um grosso beijo, ganhava mais um passe livre para andar pelos quartos e corredores.

                Ganhara tantos e novos amigos que já sentia saudade deles antes mesmo de voltar para a minha casa.

                E eu voltaria. Era a receita do meu médico para os meus pais.

                _ Você é um milagre, Rafael!

                _ Ué!!! Eu pensava ser um menino!!!

                 Entre todas as risadas, eu reconhecia a de minha mãe e daí repetia sem parar que era um menino, um menino, um menino.

                 Eu era um menino. E iria crescer. Mas agora,
exatamente agora, já pensava que ser menino era mesmo um milagre!
                   
                No dia em que deixei a casa do médico, ganhei um presente de minha avó.

                _ O que é, vovó!?

                _ Abra!

                E precisava dizer?

                _ Um livro... sobre cores e...

                _ ...

                O livro não tinha poeira, nem mofo, nem sujeira. Mas era velho, dava para saber. Era um velho livro que me fazia ver o novo por todos os lados.

                _ Era Dele...

                _ Agora é meu?

                _ Sim, é seu!

                _ Vou começar a estudar agora mesmo!

                Mas antes de abrir o velho livro, eu olhei para o meu lugar preferido.

                Lá em cima, na ponta do arco-íris que esperava para ser visto, meu amiguinho estava brincando com as cores que variavam do vermelho ao violeta.

                Por momentos, desejei ser um inseto, um pássaro, um beija-flor... só por um momento!
               Estava descobrindo que ser um menino era muito bom, especialmente em um dia tão cheio de cores e cheiros e barulhos e gente!
               Eu estava determinado a estudar esse mundo tão cheio de coisas que nem sempre se deixavam ver.
               Sem tubos ou óculos especiais, queria treinar meus olhos para ver o que o branco escondia.
               
                _ Como é? O... o branco esconde...

                _ Áh!, mamãe! Esse é um assunto para estudiosos, não é vovó?

                Um sorriso de boca cheia e bem no meio do rosto de minha avó foi a melhor de todas as respostas!

                 Eu voltava para a minha casa!
               
     



Comentários

Postagens mais visitadas