A
MENTIRA TEM PERNAS CURTAS
PARTE I
Mariana tinha uma forma de ver o mundo
que deixava a todos um tanto quanto abalados. Ou para tentar dizer melhor:
chocados! Não havia uma única vez em que ela conseguisse abrir a boca sem
cometer uma grande, muito grande mentira.
Na
idade que ela tinha ainda era algo explicável, mas nada que desse para levar
por muito tempo, uma vez que alguém, com menos paciência ou bom humor poderia
não entender o fenômeno da língua grande.
A língua de
Mariana era realmente movida a muitas e muuuitas ideias exageradas, fantasiosas
e aumentadas várias vezes. Não fazia por mal, claro que não fazia. Todos sabiam
disso e sabiam bem. Sempre que sua língua aumentava o tamanho, a intensidade e
a gravidade dos fatos apareciam alguém com o dito na ponta da outra língua:
_ Tem certeza,
Mariana?
Ela tinha, muita
certeza. Certeza demais para uma menina de apenas cinco anos de idade, em
início de carreira, dizia a avó que imaginava ser a neta portadora de um
grandioso talento. Talento nato, natural, herdado da tataravó que também
gostava de contar causo, causos e casos.
_ Essa menina
nasceu com tanto talento, tanto talento, mas tanto talento que logo será
famosa.
Desde quando
contar mentiras grandiosas pode fazer alguém alcançar sucesso?
Era a voz de alguma língua que estava
mais longe, sem muitos laços familiares que adoçam as meias verdades, ou as
verdades pela metade, ou as verdades nem tão verdadeiras assim.
Línguas sem
parentesco não precisam ter os cuidados básicos das línguas aparentadas. Em
especial, em se tratando de comentários comentando os comentários feitos por
uma vovó. Elas, as vovós, sabem o que dizem, mas em ocasiões especiais usam uma
língua muito fechada, cheia de significados inatingíveis, ou pelo menos, de
difícil alcance pelas línguas que não conhecem o universo “vovozal”.
Mariana sabia
distinguir o público alvo. Jamais dirigia sua língua comprida para cima de
alguém que não tinha lá alguma queda por crianças “promissoras”.
Poucos adultos deixam
às claras a ausência de “interesse” pelo mundo infantil. Alguns “aguentam” o
que vem da parte das crianças, alguns “fingem interesse” e outros... outros
simplesmente dispensam qualquer ligação. Discussões à parte, Mariana sabia
reconhecer de longe os adultos genuinamente interessados. Sabia como chegar até
eles e ganhar a atenção necessária para colocar o seu talento em ação.
_ Essa menina
promete!!!
_ É!... se promete!!!
_ Promete, sim.
Promete ser uma grande mentirosa!
_ Ora! Mentirosa ela
já é! Só precisa crescer mais um pouquinho para melhorar a...
_ Isso é coisa de
criança!
_ “Isso” o que?
_ Essa “coisa” de
mentir e...
_ Mentir não é uma
“coisa”... e não tem a ver com idade, não!
_ Ah!Não?, e aquela vez que você...
Era assim! Quando
Mariana não era o centro das atenções por estar usando a extensão de sua
língua, alguém usava os músculos da própria língua para dar extensão às suas
falas.
Mariana apontava de língua em
língua.
De um jeito ou de outro
ela acontecia. Seu poder “lingual” exercia tamanho fascínio que outras
crianças, inadvertidamente, começaram a admirá-la.
_ Nós queremos
aprender com você. Lá em casa não se fala de outra coisa!
_ É... todos nós
queremos aprender a mentir.
_ Mentir? Eu não
minto, sou uma criança que não mente.
_ Não?! Mas...
_ Minha avó disse que
sou talentosa e vou escrever muitos romances.
_ Romances? Isso é um
tipo de mentira?
_ Como se faz?
_ Também quero aprender
a fazer romance...
_ Eu também!
_ A minha irmã vive
chorando por causa de uma mentira.
_ Como assim?
_ Minha mãe disse que
ela terminou um romance.
_ Sua irmã escreve?
_ Não sei, mas ela
também sabe fazer mentiras como as da Mariana.
_ ...romances!!!
_ Oba! Vamos pedir
aulas para ela também!
Mariana conseguia
motivar seus amiguinhos. Nada que agradasse aos pais de plantão, nem a qualquer
um que se colocasse a prestar atenção ao fenômeno da língua comprida. Mas,
inadvertidamente, motivava. E parecia fugir a atenção dos adultos a importância
de conversar com Mariana acerca de suas razões. E de mostrar às outras
crianças, tanto quanto à própria menininha mentirosa, o perigo de espichar a
língua para fora dos fatos, da boca, dos dentes...
_ Isso ainda vai acabar
mal!
_ Mentira tem pernas
curtas!
_ A menina está
exagerando!
_ Péssimo exemplo para
as outras crianças!
_ Será que os pais não
percebem?
_ Se crescer assim, vai
pensar que mentir é só mais uma brincadeira!
_ Grave! Muito grave!
_ Gravíssimo!
_ Gravíssimo!
_ Ei! Também não é
assim...
Era a língua de um
parente protetor. Protetor de Mariana, não exatamente das mentiras que ela
contava. Pois as situações estavam começando a preocupar mesmo aqueles que até
então olhavam apara ela como uma meiga menina talentosa “brincando” de mentir.
_ Ela é meiga e
talentosa...
_ E mentirosa!
_ Não se diz isso
de uma menina de cinco anos.
_ Se alguém não
ensiná-la sobre a diferença entre verdade e mentira... sei não!
_ Sabe, sim! Você
quer dizer que ela vai continuar mentindo!
_ Ou não! Quem é
que sabe?!
_ Criança precisa
aprender desde pequena.
_ É!!!
_ Estou dizendo
mentiras?
_ Não! Claro que não!
Mas a questão é.
A questão era
outra!
Ninguém dizia para
Mariana que suas mentiras estavam indo longe demais.
Se os pais não faziam
esforço para corrigi-la, por que alguém de fora deveria fazê-lo?
_ Ora! Por uma
questão de... de.... de...
_ De caridade?
_ Caridade?
_ É óbvio! Se
alguém não mostrar a ela a grande diferença entre o que é verdade e o que é
mentira, ela vai acabar sozinha!
_ Será? Depois que
cresce aprende!
_ Já terá crescido
torto!
_ Ué?! Não sabia
que ela também tinha problemas de coluna... pobrezinha!
_ ...
Mariana! Sempre
Mariana! O motivo de muitas conversas e outras preocupações sinceras.
Mas o que ninguém
foi capaz de imaginar aconteceu de forma estrondosa.
Mariana
abriu uma escola.
A garagem de casa que passava vazia enquanto
os pais trabalhavam, ostentava pelas tardes leves de verão a seguinte placa:
APRENDA A FAZER UM ROMANCE
Com a professora Mariana
Por apenas um chocolate branco
INTEIRO (sem mordidas)
_Quem escreveu essa placa para ela?
Ninguém viu.
Mas todos puderam
ver: as aulas da professora Mariana estavam fazendo o maior sucesso. Havia até
uma lista de espera para os interessados.
A doceria da
esquina aumentara o depósito de chocolates por conta da demanda. Quem sabe a
pequena menina pudesse ter uma participação nos lucros?
De romance em
romance, a popularidade de Mariana só fez aumentar. Especialmente em se
tratando da eficácia de suas aulas. E do sucesso alcançado através de seus
alunos, aplicadíssimos alunos.
_ Como é? Onde foi
que você aprendeu a mentir assim?
_ Isso não é uma
mentira, papai!
_ Ah! Não é
mentira? Mudou de nome agora?
_ Não mudou de
nome. Sempre se chamou de romance.
_ Romance? Quem
está de romance?
_ Eu!
_ O quê? O quê?
_ R-o-m-a-n-c-e!!!
R-o-m-a-n-c-e!!! Papai! Você nunca ouviu falar?
_ Você só tem cinco anos, minha
filha!
_ Eu sei, mas já fiz
aulas sobre isso?
_ I-i-isso!? C-c-om
quem?
_ Com a professora
Mariana. Eu fiz aulas de romance!
Claro! Claríssimo que
essa foi a primeira de muitas tempestades linguísticas.
As línguas adultas
também servem para expressar o que existe de medo, pavor, susto, angústia,
pânico e descontentamento.
_ Descontente? Por que,
mamãe!
_ De onde você tirou
essa história de romance, Mariana?
_ Não é história,
mamãe. É romance!
_ De onde?
_ Eu tenho muito talento e ainda vou ficar
muito famosa e. e... que cara é essa, mamãe?
Foi mais difícil do
que o esperado convencer os alunos da professora Mariana que as aulas haviam
sido encerradas.
E muito difícil também convencer a
professora de romances a devolver os chocolates brancos.
A tristeza abateu-se
até mesmo sobre a doceria da esquina agora relegada ao movimento normal.
_ Uma menina de talento...
incompreendida.
_ ...empreendedora!
_ Ela tem jeito para
negócios!
_ Convence fácil...
_ Parece que nasceu
sabendo...
_ Sabendo...
De repente, mais do que
de repente, a palavra começava a tomar peso. E corpo, já que por nome atendia à
M-ar-i-a-n-a.
_ Mariana não é
mentirosa! É só uma criança que tem jeito para...
_ Mentir?
Alguns juram ter
ouvido as preocupações que apontavam na alma dos pais de Mariana, mas
preferiram escolher o caminho de outras interpretações para dar apoio aos
genitores da menina:
_ Traquinagem de
menina cheia de imaginação.
_ Inteligente, sim.
Pena que... mentirosa!
Durante um tempo,
essa palavra correu línguas e línguas até parar na garganta de outro assunto.
E gargantas engolem
assuntos que, se não permanecerem de boca em boca, perdem a vez. Tem assunto
novo para todos os gostos, para todas as bocas, para todos os ouvidos...
Sempre tem assunto
rondando a vida dos que se interessam pouco pelos próprios assuntos. Mas esse é
outro assunto. E o assunto sobre Mariana já estava de bom tamanho.
O bairro parecia ter
esquecido o episódio da “escola de romances”, até o dia em que árvores
estremeceram, passarinhos erraram o ninho e cachorros fiéis deixaram suas casas
aconchegantes.
O sol parecia
brincar junto às crianças na pracinha, fazendo raios compridos que serviam de
marcação para algum jogo inventado na hora.
Era sábado e ninguém
pareceu notar que
repentinamente as crianças
passaram a reunir-se em pequenos grupos. Grupos que liderados por Mariana
dissolviam-se entre os adultos para novamente voltar ao ponto inicial. O
movimento regular chamou a atenção de uma senhora, discípula ardente dos
costumes antigos:
_ Criança quieta é
sinal de doença. Várias crianças juntas e quietas é sinal de “aprontação”.
_ As crianças estão
brincando. Relaxe, Dona Otília!
_ Brincando? Sem
fazer barulho?
_ É!!!
_ Ora! Aí tem mão
de...
_ Mariana?
_ ...
_ Pobrezinha! Agora,
qualquer coisa que aconteça fora do comum tem a ver com ela...
_ E não tem?
_ Relaxe, Dona
Otília. Veja só! Os seus netinhos estão ali, sentadinhos, conversando!
_ ..
Alguns minutos a mais
foram o suficiente para a revoada de pássaros que erraram o ninho dar prova da
confusão! Os cachorrinhos desalojados escondiam-se em qualquer pouca aba.
Onde os animaizinhos poderiam estar
seguros depois de terem previsto a grande explosão?
( continua...)
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