QUEM CASA QUER...   
                                                    

                         Lene comemorava duas décadas de casamento.
                         Há longos e felizes anos, ela e Péricles dominavam a arte de estar no mundo para somar, tal como gostavam de dizer entre si e para quem com eles dividia considerações pessoais.
                   Diziam e acreditavam dar conta de vivenciar a enorme responsabilidade de manifestar coerência entre o dizer, o dito, o implicado e o feito.
                   Era assim, um casal aprovado.
                           Na tarde que antecedia o churrasco pelos vinte anos de “somas”, Lene sentiu um incontrolável impulso de remexer no passado. Algo como revisitar a história tão bem construída pela cumplicidade e parceria dos dois.

                       Conheceram-se no primeiro ano da faculdade, namoraram a partir do primeiro encontro e decidiram na primeira transa que nenhum dos dois queria filhos. Nada de rebentos. Nada de herdeiros para as agruras do mundo que, segundo as duas visões, deixava de ser um lugar promissor. A violência, o meio ambiente, a escassez de água para a qual apontava estudos recentes, as drogas e principalmente as estatísticas mundiais sobre a camada de ozônio em franco "dilaceramento", eram fatores que ninguém, em sã consciência poderia negar.Urgia que se pensasse sobre o real fim dos tempos.

                          E eles pensavam. Tanto pensavam que fazer a parte que lhes cabia não gerando herdeiros para o sofrimento final era o mínimo da coerência. Seriam felizes com o que estava ao dispor naquele momento sem a angústia a tomar-lhes a garganta, o bolso e os investimentos.
                           Filhos exigem grande dose de esforço financeiro. São horas de trabalho a mais, são horas a menos de sono, de sexo, de ócio... filhos ocupam um espaço descomunal na vida de quem quer que esteja desatento às possibilidades de uma vida sem tropeços.
                        Péricles sabia lembrar à Lene que estavam onde estavam por justa e simples decisão de permanecerem sem filhos.
                          Procriar não era necessariamente uma exigência da natureza feminina. Antes de tudo indicava uma decisão, na maior parte das vezes, ditada pela insensatez. Nada que dissesse respeito aos dois, cientes do papel que desempenhavam no mundo.
                       
                         Lene queria sanar uma espécie de nostalgia doce que lhe chegara desde cedo.
                         Acordara com um sentimento de saudade do que não conhecia, de lembranças esquecidas ou de lugares aos quais nunca fora.
                         Nostalgia que lhe punha de joelhos, desamarrando fitas, desenvelopando cartões marcados com flores secas, abrindo caixas que cheiravam a sabonete antigo. 
                      Um sorriso tênue embalava seus movimentos cuidadosos, saudosos de umas fases mais do que de outras as quais descartava sem grandes indecisões.
                         Fotografias registravam os pedaços e as sequencias de casos, fatos, festas, viagens, amigos, visitas. Bom olhar para trás sem remorsos pelo feito e pelo... que deixara de fazer.
                        Deixara de fazer?

                      Estava sensibilizada pela comemoração dos vinte anos de casamento. Afinal, não era um evento tão simples de se encontrar nos últimos tempos.
                         Da turma que conhecera na época da faculdade, muitos colegas listavam mais de uma tentativa e outros permaneciam pulando de uma relação para a outra sem contabilizar nenhum envolvimento sério.
                         Lene sorria para si mesma pensando em sua história com Petrônio.
                        Junto com a nostalgia doce subia um sentimento de vitória, de estar certa, de paz interior.
                        Era feliz e não lembrava de qualquer situação pela qual não desejasse ter passado. Petrônio era dedicado, caseiro, gostava de presentear-lhe com belos pratos a base de peixe, folhas e batatas, seus preferidos. Assistia futebol na televisão de casa e não saía sozinho nas noites de sexta-feira.
                           Ela, abstêmia por convicção, dedicava-se a desvendar todo o tipo de sucos, misturas líquidas saudáveis que ele experimentava com óbvio prazer.
                          Viviam bem.
                          Eram felizes.
                          Eis as lembranças que não a deixavam mentir sozinha.
                      Entre os objetos de seu passado desconheceu na primeira olhada o pacote intacto que embrulhara no fundo de uma caixa.
                           Estranho.
                           Muito estranho.
                      Cuidadosa, Lene puxou as fitas grossas e douradas, aliás, uma cor que ela literalmente não gostava, para descobrir o que o papel guardava.
                           Para seu espanto e preocupação, encontrou um motivo para sombrear o sorriso mantido até então.

                       Em suas mãos, deitado e inerte, jazia um bule de metal fosco, entalhado com pequenas flores de desenho ultrapassado.
                        Lene gostava de flores, in natura, ao vivo, frescas. Aquele conjunto de traços não lhe desciam no gosto e apreço.

                      Não precisou forçar a memória para lembrar de onde viera e como fora parar ali.
                           Esquecera completamente do presente de casamento. Esquecera, apagara da memória, riscara de sua vida.
                            Mas ele estava ali. Impassível diante dela que momentaneamente desejou estar em um lugar errado.
                            Num impulso, rearrumou o jarro dentro do embrulho que o protegia e o colocou no mesmo lugar no fundo da caixa.
                             De repente, mais do que de repente, sentiu que seus joelhos reclamavam da posição. Ficara com o peso do corpo para a frente e tal era o entusiasmo que não se dera conta da posição inadequada.
                             Apertou a tampa da caixa como que enterrando com segurança tudo o que ela carregava dentro de si.
                             Tinha uma amiga que era tresloucada por caixas, caixinhas, caixotes. Dizia que toda a caixa era uma metáfora de um útero, de um ovo, de um casulo... ela realmente gostava de caixas.
                              Por que lembrara dela?
                              Boa amiga dividiam as considerações que acompanham as mulheres em sua vida de “dois em um”.

                              _ Dois em um, vírgula. Um para um. Você esquece que somos seres egoístas e os homens devem nos cobrir com a nossa própria vontade?

                             _ Não concordo!

                             _ Ora, Lene! Não pense que tudo são flores!

                          _ Mas eu não penso!

                         _ Em toda história há sempre uma caixa preta, esperando para ser aberta.

                             _ Que caixa preta, Lia?

                             _ Aquele lugar secreto que ninguém abre para ninguém.
                             _ Você e suas ideias...

                             _ Eu e minha sabedoria! Diga que estou errada.

                             _ Está errada! Eu não tenho uma caixa preta.

                             _ Se não tem irá ter.

                             Com Lia ficava a última palavra, mesmo que fosse para começar outro assunto.

                              _ Como vai a sua sogra?

                              _ Bem, eu acho!

                              _ Lene, quando você vai enfrentar a verdade?


                              _Eu enfrento a verdade, não estou entendendo aonde você quer chegar.

                               _ Ao lugar de sempre: sua sogra odeia você!

                               _ Que exagero!

                               _ Que falta de realismo.

                               _ Sou realista, Lia. Mas não posso fazer nada.

                               _ Pode sim, enfrente a jararaca.

                               _ Que exagero!

                               _ Exagero? Olha o que ela já fez com você?!

                               _ ...

                               _ Você esqueceu?

                               _ Não! Tento não lembrar!

                               _ No seu lugar eu teria mostrado para ela o lugar dela.

                               _ Mas ela é a mãe do Petrônio!

                               _ Mãe? Que mãe? Ela é a inimiga mortal dele, isso sim.

                               _ ...


                               _ Você precisa acordar, menina! Um dia a casa cai. UM dia abre-se a caixa preta e: PUM!

                               _ Que PUM!, o que Lia! Não tem PUM!

                               _ Tem PUM!, sim! E é uma metáfora pequena para a merda que vai sair da caixa preta.

                               _ Você é passional demais.


                               _ E você lerda demais! Ah! Se fosse comigo.


                               _ A cruz só é colocada nos braços de quem sabe carregar.

                               _ Não é nos braços, Lene. É nas costas. E sua sogra não é uma cruz. É um verdadeiro dem...

                               _ Exagero, Lia! Exagero!

                               _ A caixa preta, Lene. A caixa preta!


                           Desejou que Lia estivesse por perto no exato momento em que saía do quarto e encontrava Petrônio.

                                _ Minha flor de mulher! Onde estava?

                                _ Aqui no...

                                _ Preciso de você. Onde coloco a carne de...


                              Lene ficou feliz por Petrônio precisar dela. A festa que organizavam estava prometendo juntar amigos, parentes e conhecidos.

                                  _ Leninha, você acha que comprei vinho suficiente?

                                  _ Comprou.

                                  _ E cerveja? A turma da gelada não vai me perdoar.

                                  _ Comprou.

                                  _ E... Lene?


                                  _ ...

                                  _ Lene? Está me ouvindo, amor?


                                  _ Sim. O que você perguntou?

                                  _ Você está distraída?

                                  _ Não, Pê! Estou aqui.

                                  _ Está preocupada com a festa? Vai dar tudo certo. Você vai ver...

                                  _ É, vai dar sim!


                                   O abraço de Petrônio era sempre um conforto. Um lugar seguro para as suas inseguranças e desassossegos.

                                    _ O abraço também é uma espécie de útero, ou de caixa!

                                    _ Nossa!, Lia! Você vê o mundo em forma de...

                                     _ De caixa! Independente das proporções.

                                     _Se penso em caixa fechada sinto sufoco.

                                     _ Abraço também sufoca. Útero também afoga!

                                     _ Sua filosofia tem um lado negativo, negro.

                                     _ Realista, minha amiga! Realista!

                                     _ Exagerada!

                                     _ Metáforas descrevem a vida.

                                     _ As suas são mirabolantes.

                                     _ São abarcantes!

                                     _ Tá!

                                     _ É sério! As minhas figuras de linguagem englobam o mundo.


                                     _ Exagerada?

                                     O exagero de Lia certamente seria bem vindo nesse momento em que sua cabeça estava a dar voltas por cima dos ombros. Sua cabeça, suas lembranças, sua vontade de ir até a esquina tomar um ar.

                                     _ Lenizinha... onde está com a cabeça?

                                     _ Está... bem! Acho que vou tomar um banho.

                                     _ Mas... é muito cedo. Você está passando bem? Está sentindo alguma coisa?

                                     Sentindo? Ela era a concentração de todos os sentimentos humanos catalogados e ainda por catalogar. Era a própria mistura do que ainda não se sentia em palavras.
                                      Onde ficara a doce saudade que a acordara logo cedo?

                                      _ Não! Estou bem... só quero me adiantar.

                           _ Mas, você está quieta demais, minha flor. Está cansada?

                                     Esse era o Petrônio, um marido como não poderia existir outro qualquer. Tudo para compensar de onde viera. De “quem” viera, mais propriamente.

                                        _ Não estou cansada, Prê! Deve ser por causa da festa.

                                       _ Ah! Então vai relaxar um pouco que eu cuido de tudo aqui.

                                       Ele era o marido que qualquer mulher iria querer. E era o marido dela há vinte anos, sempre dedicado do mesmo jeito, presente e atencioso. Via o homem que fizera sua vida ser mais interessante como uma dádiva! E agradecia por isso todos os dias.
                                          O que fazer com ela?
                                          Ela viria?
                                         Conseguiria fazer de conta que nada acontecia?
                               Da última vez a situação ultrapassara todos os limites.
                                         Fora difícil esconder de Petrônio a razão de sua gastrenterite. A verdadeira cauda de sua alergia estomacal, intestinal, epitelial.
                                         E isso fora exatamente há um ano atrás.
                                         Desde então, conseguira manter-se distante da sogra, encontrando formas mirabolantes de trabalhar ou adoecer ou receber amigas na hora em que seu marido ia visitar a mãe na cidade vizinha.
                                         O pobrezinho não desconfiava de nada e ela contava com a ajuda das melhores amigas para lhe darem cobertura. Até um pneu elas a ajudaram a rasgar na última visita em que nenhuma desculpa parecia “colar”.
                                          Sentia vergonha de seus sentimentos canhestros, mas tentara de tudo um pouco e mais um pouco do tudo para cativar a sogra. Vinte anos é muito tempo para manter-se “de mal” com alguém. E ela acreditava que pela diferença de idade e por ser a mãe do homem que amava, valia o esforço que fizera por todo esse tempo. Faria mais se a sogra não tentasse “acabar” com ela, literalmente, toda a vez em que se encontravam.
                                            Dona Manola era uma mulher forte. E não aceitara a presença de Lene desde o início. Mas igualmente não queria confrontar o filho e então, uma guerra fria e invisível aos olhos alheios teve início.
                                             No começo, Lene pensara ser uma dificuldade de sua própria parte e se esmerou no conserto de atitudes que provassem à sogra um carinho que desejava desenvolver. Desejava dar-se bem com a mãe de seu marido, não que se achasse a melhor, mas porque lembrava das lições que a atormentavam desde pequena:

                                             _ Trate muito bem os mais velhos, minha filha, ou pagará caro. Muito caro!

                                             _ Mãe, eu faço tudo para ela gostar de mim.

                                             _ Não é o suficiente, com certeza. Coloque-se no lugar dela. Faça mais, faça melhor. Ela é velha minha filha e já sofreu muito.

                                            Quanto a sofrer Lene até entendia que não sofrera. Sua sogra tivera uma vida muito tranquila, com um bom marido, um único filho, muito dinheiro, era saudável. Quanto a ser velha, também era discutível. Sua sogra completara setenta e dois anos de idade e era a mesma de vinte anos atrás. Era uma mulher bonita e forte. Poderiam ter uma amizade normal e...

                                              _ E nada! Lene! Acorde! Ela é uma louca inteligente, além de muito, muito, muito má.

                                              _ Não sei, Lia! Queria entender...

                                              _ Você casou com o filho dela. Ponto!

                                  _ Mas, eu amo o Petrônio. Ela sabe que nós vivemos bem. Eu cuido dele, não o faço sofrer...

                                               _ Exatamente isso!

                                               _ Exatamente o que, Lia?

                                               _ Você “roubou” o filhinho dela.

                                               _ Mas...

                                               _ Ela queria ele para ela mesma!

                                               _ Que horror! Claro que não!

                                               _ Ah! Então me dê outra explicação!

                                               _ Ela não gosta de mim...

                                               _Ela não gostaria de nenhuma mulher que ficasse com ele.

                                               _ Isso é... é...

                                               _ Doença!

                                               _ Não sei... não sei...

                                               _ Mas eu sei!


                                               Talvez Lia tivesse razão, mas ainda assim não se resolvia o problema. E não tinha coragem de contar para o Petrônio o que a mãe dele fazia. Ele iria sofrer demais. Não merecia. Então, o jeito era aguentar, aguentar.


                                              _ É a sua cruz, minha filha! É a sua cruz! Ou você acha que não precisaria pagar por tanta felicidade?

                                              _ Mamãe! Eu não vejo assim.

                                              _ E lembre que ela é mais velha. Chegou aqui antes de você. Sofreu para criar o filho.

                                               _ A vida dela sempre foi boa...

                                               _ Não interessa!

                                      _ E o Petrônio é um bom filho! Não “deu” trabalho, mamãe!

                                               _ Com certeza “deu”, sim. Filho é sempre um problema!

                                               _ Mamãe!

                                               _ Eu sei das coisas. Por que vocês dois não fizeram filho ainda?

                                               _ ...

                                               _ Viu? Eu tenho razão.


                                               Sua mãe sempre tinha razão, até mesmo quando não existia razão qualquer. Ela e a sogra pareciam jogar no mesmo time. Se bem que sua mãe amava o Petrônio, às vezes até demais! Mas Preferia amor em excesso ao ódio que a sogra nutria por ela. Dos excessos de sua mãe era possível defender o Petrônio, ele mesmo dava um jeito sem que ela percebesse. Mas o contrário... ainda não encontrara uma forma de lidar com aquele sentimento.

                                            Ao encontrar a jarra de metal fosco arrematada por flores sem graça escondida no fundo de suas lembranças, trouxera a sogra para fora.


                                            _ É a sua caixa preta, Lene.

                                            _ É o presente de minha sogra.

                                            _ É a caixa...

                                  _ Você estava comigo quando ela me deu o presente, lembra?

                                        _ Lembro. Claro que lembro. Eu e todas as outras mulheres que estavam no seu chá de panelas.

                                            _ Sinto arrepios até hoje.

                                            _ Se eu estivesse no seu lugar, teria jogado o bule na cabeça dela para acertar.

                                            _ Ela disse...

                                            _ Ela disse que o bule era ideal para lhe servir veneno!

                                            _ Será que era um tipo de brincadeira?

                                            _ Que brincadeira, menina! Esqueceu o que ela colocou nele?

                                            _ E eu tomei...

                                            _ E foi parar no hospital!

                                            _ Isso não é uma brincadeira, é uma tentativa de...

                                            _ Não poderia ser um engano? Sabe...


                                            _ Você gostaria que fosse. Mas não é!

                                             Já criara tantas justificativas para o Petrônio que imaginava a hora em que talvez precisasse contar a verdade. Talvez!
                                             Melhor não pensar. Enterrara suas preocupações junto com o bule fosco, sem que Petrônio se desse conta. Continuaria assim. Ou pelo menos, tentaria continuar.

                                             Depois do banho, Lene ouviu a campainha soar e ouviu a voz que fazia a sua garganta fechar de pavor.

                                             _ Amor, a mamãe chegou!

                                           
                                             _ Já desço, meu querido. Já desço.


                                             Não reconhecera a voz estrangulada que saía da garganta. Era uma voz gelada pelo pavor do que a aguardava. E Lia que só chegaria mais tarde. O que faria sozinha com sua sogra?

                                             Antes que concluísse o que pensava, Petrônio e a mãe entraram no quarto.

                                             _ Amor, mamãe prefere ficar aqui com você enquanto eu termino lá embaixo.

                                            _ Olá, dona Manola!

                                            _ Vou descer. Vocês duas se comportem aqui sozinhas, hem?

                                 A brincadeira de Petrônio soou feito praga cumprida.
                                            Mal a porta do quarto fechara atrás das costas do filho, Dona Manola soltou o verbo:

                                            _ Não pense que eu esqueci do presente que você precisa.

                                            _ O... obr... obrigada, Dona Manola.

                                            _ Não agradeça ainda. Só depois que as suas cinzas couberem todas aqui dentro.

                                            Com uma urna de metal fosco trabalhada com rosas em desenho baixo nas mãos, Lene deixou o quarto com Dona Manola dizendo uma reza estranha atrás dela.
                                            Ao chegar à sala o sorriso do marido empurrou para o fundo da garganta a vontade de pedir socorro que batia em seus ombros gelados de pavor.
                                            
                                            Os convidados foram chegando e mais uma vez o contexto escondeu a guerra que se travava entre as duas ao ponto de Petrônio mostrar o presente que ganharam da mãe como uma bela “biscoiteira”.

                                            _ Biscoito? Você não vai contar para ele, Lene

                                            _ Não consigo, Lia!

                                            _Você precisa!

                                            _ Olha como ela faz... parece feliz e entrosada. Eu acho que ele não vai acreditar.

                                            _ Você tem medo dele não acreditar em você?

                                            _ Nem eu acredito em mim mesma. Nem eu! Isso é uma loucura.

                                            _ “Isso” é a sua sogra.

                                            _ Estou com medo.

                                            _ Você tem problemas também, Lene. Onde já se viu esconder algo assim do próprio marido?

                                            _ Mas ela é a “própria” mãe dele!


                                        _ Está na hora de você abrir a sua caixinha... está na hora! Eu acho que você está querendo que o Petrônio enxergue tudo isso sozinho e a salve!

                                               _ Será?

                                               _ Talvez você não confie nele tanto quanto diz.

                                               _ Será?

                                        _ Será? Será? Arrisque, minha amiga! Arrisque! Se vocês são tão companheiros assim, ele vai entender.

                                               _ E sofrer!

                                               _ Essa é outra história. E você estará viva!

                                                Lene suou durante a festa inteira. Delirou pensando em todas as falas de Lia e em todas as falas que faria para Petrônio. Sentiu que não mais poderia carregar aquela história sem que Petrônio soubesse.

                                               _ E se ele ficar do lado da mãe?

                                               _ É uma possibilidade, Lene.

                                               _ E...

                                               _Então, você saberá quem é o homem com quem está casada há vinte anos.

                                            A festa corria como toda festa que reúne parentes e amigos. De uma vez só se enche a casa com conversas, perguntas e lembranças que permanecem no tempo e no interesse coletivo. Poderia não ser a melhor forma de comemorar bodas de porcelana, até pelas alusões ao material que simboliza o tempo de casamento, mas Lene desejava que a festa continuasse sem fim.

                                             _ Você vai dar um fim nisso?

                                     _ Estou me preparando, Lia. Estou me preparando!

                                             Logo após os tradicionais discursos de parabéns, um dos padrinhos exigiu que Lene e Petrônio dançassem a mesma música que haviam dançado há vinte anos atrás.
                                             Os convidados fizeram roda e coro e Petrônio mais do que depressa enlaçou Lene como se fosse um grande dançarino acostumado a grandes performances.
                                              A música estava em suas primeiras notas quando se ouviu um grito. A mãe de Petrônio estava estendida sobre o tapete, enquanto a mãe de Lene gritava sem parar.
                                              Entre gritos de ajuda e deixa-a respirar, descobriu-se que de ar a Dona Manola não precisava mais. Sofrera um ataque fulminante e o velho coração, tão forte, não dera conta de acompanhar as emoções do momento.
                                             
                                              Sobre a lápide da sogra Lene fez questão de colocar a jarra de metal fosco, com uma margarida dentro trocada todas as semanas e a “biscoiteira” que Petrônio recheia com rosas amarelas, as preferidas da mãe.

                                               _ Obrigado, amor, por me ajudar a cuidar da mamãe.

                                               _ É o mínimo que eu posso fazer, Pê!

                                               _ E obrigado por deixar perto dela os objetos que ela mais amava.

                                              _ Sim.

                                           _ Você sabia que essa jarra tinha sido da sogra dela?

                                              _ É?

                                              _ E a biscoiteira também. Ela ganhou da mãe de meu pai no primeiro aniversário de casamento dos dois.

                                              _ É?!

                                              _ É... mamãe gostava muito de você!

                                              Sim, talvez agora Lene pudesse pensar sobre o assunto. Talvez!



                                              

                                      

                                               

                                            
                                           









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