O VENDEDOR DE
PALAVRAS
DEDICATÓRIA: “Para os grandes sonhadores,
iluminados construtores.”
_ Bom dia, minha senhora! Precisa
de uma parábola?
_ O quê?!, ora meu senhor, eu já
tenho antena para a televisão. Passar bem!
Era mais ou menos assim que
começava o dia de um vendedor de palavras. Mais para mais ou mais para menos.
Dependia da fase da lua, do número da rua e do humor do freguês.
Poucos, se é que algum existisse
além desse, ainda sobreviviam na profissão tão desqualificada pela modernidade.
Não que se desmerecesse o valor de
tal mercadoria, pelo contrário. Pensava-se que nunca antes o homem dera tanto
valor a um produto.
Mas, era o resultado do próprio
tempo, daquilo que se vivia e da forma como se vivia.
_ Bom dia, meu senhor. Posso
oferecer-lhe um PALAVROSO? Está em promoção pela metade do...
_ Vocês não têm mais nada para
inventar? Não me faça perder tempo!
_ Vo... voc... vocês? Mas, meu senhor,
eu sou o único vendedor destas redondezas. Só estou a lhe oferecer um TUFADO
DE...
_ Vocês são todos iguais. Licença!
Licença!
O volume de palavras não vendidas
ameaçava o vendedor.
Primeiro porque carregá-las não era
lá uma tarefa muito simples.
Não havia lugar certo para
colocá-las, nem mesmo uma forma adequada para embalá-las.
Em segundo, com tantas palavras
paradas, tinha início uma reação, uma reação alérgica. Coçava muito.
Vermelhidão que começava no pescoço, bem embaixo do queixo e se alastrava pelo
resto do corpo.
Da garganta para o resto da pele era
um passo.
Quanto menos vendia, mais alergia
aparecia.
Quem sabe, a PALAVRA-CHAVE
estivesse sem a devida atenção. Seria uma questão de foco?
Era uma possibilidade. Carecia de
teste:
_ Olá, gentis cavalheiros! PEGO NA
PALAVRA para oferecer-lhes um...
_ Sai fora, Mané! Qual é a tua?
_ Desejo oferecer-lhes um método
infalível. Trata-se da PALAVRAÇÃO... eis que...
_ Pula fora, cara! Tamo avisano. Tu
tá tirandu uma cá nossa cara. Vai levá... vai levá...
Não era o foco.
O teste precisava ser
incrementado.
Pela experimentação poderia chegar
a um modelo ideal de venda de palavras.
Quem sabe uma PALAVRA-ÔNIBUS no
lugar adequado, para o freguês adequado, do modo adequado.
Outro teste.
Vendedor que se preza não corre de chuva nem
tem medo de cara feia.
Às ruas de comércio: o melhor
laboratório para testar O PODER DA PALAVRA:
_ Senhoras! Que belo serviço
fazeis com estas flores!
_ Obrigada, senhor! Somos
floristas. Está interessado em alguma delas? O preço está bom.
_ Ao dizer da boa verdade,
confesso-lhes que aqui estou para oferecer-lhes um produto que alargará vossos
horizontes.
_ Hem?! Como assim?
_ Trabalhais com o espírito das
flores. Para cada ocasião, caberá uma flor específica. Pois não?
_ É... pois sim. Não estamos
entendendo. Só vendemos flores, não vendemos espíritos.
_ Sabeis vós que, se aprenderem A
MOLHAR A PALAVRA antes de regalar a alma de seu freguês...
_ Molhar? Molhar o que, seu
beberrão! Nós somos duas floristas muito sérias. Retire-se daqui e leve a sua
vontade de molhar seja lá o que for. Passe longe! Vá!
_ Mas... sou um vendedor DE PALAVRA.
Senhoras, TENHO A PALAVRA para dizer-lhes...
_ Se você tem ou não tem palavra não
nos interessa. Saia daqui agora! Já! Agora!
Respira-se fundo diante do
inenarrável: aquilo que não se consegue narrar!, por incompetência de quem
tenta narrar, pelo “fantástico” do fato a ser narrado, por medo de “para quem”
se destina a narração.
Mas as palavras também dão
asas aos que nelas acreditam.
E um bom vendedor, acima de
tudo, acredita em seu produto.
Tem fé naquilo que vende.
Apaixona-se pelo que oferece
ao outro, misturando sempre um pouco de seus próprios sonhos e suas mais tenras
esperanças na forma com que mostra o que deseja vender.
E era esse o seu desejo.
Há quantos dias amargava não
vender uma única PALAVRINHA sequer?
As palavras apinhavam-se,
acotovelavam-se, enfileiravam-se pedindo para serem colocadas no mercado.
Palavras só têm existência quando
usadas, trocadas, aceitas, vendidas ou compradas, doadas, passadas adiante,
esfregadas uma na cara da outra (ou dos outros).
Palavra isolada, cuidada,
guardada era palavra defunta. Morta. Mortinha da Silva e do Carvalho. Enterrada
em lugar até sabido, sem brilho nem cheiro, sem cor e sem dor.
Palavra isolada era nada.
Às vezes, até pareciam ser alguma
coisa, mas só às vezes, dependendo muito mais do que estava acontecendo do que
estava sendo dito.
Muitos fatos falam sozinhos, e a
palavra deve brigar desde cedo para ter voz e vez.
Palavras precisam de uso, de
muito uso para manterem-se jovens.
Guardar uma palavra é o mesmo que
fazer velório sem apresentar o defunto. Chora-se a perda de quem nem se conhece
o corpo... que dirá a alma!
Quantas palavras sem alma dormem
em berço grosso, a espera de um operário que as beije e balance.
Fecundo berço que pode adormecer
para sempre as palavras que ainda não nasceram.
Existem depósitos e depósitos de
palavras não nascidas, de palavras esquecidas, desbotadas, esmaecidas.
Palavras largadas ao bolor de
páginas enfermas, vazias, lacradas pela solidão; abandonadas ao sabor de um dia
talvez um leitor... talvez um dia um sujeito fazedor... talvez um dia uma
criança luminosa ilumine o soldado desarmado e perdido, feito de traços e
riscos, sinais de um dia talvez!
... um dia talvez!...
Palavra não gasta pelo atrito, mas
sim, cria volume, engorda... palavra engravida.
Muda de jeito, de lugar, de forma,
de roupa até, mas não desaparece enquanto estiver no mercado.
Ganha peso, incorpora moda, serve
para muitas tarefas, representa quem quer que seja... é investimento certo, de
prazo validado pelos próprios usuários.
Ou seja, palavra é um bom negócio!
Vendedor apaixonado pelo produto
vende até o que...
_ Senhoras costureiras!? Felicito-as
por tão belas costuras.
_ Obrigada, senhor! Deseja
encomendar um corte?
_ Ora, minhas senhoras. Desejo mais
do que isso. Desejo apresentar-lhes uma forma clara e poética para uso diário.
_ Mesmo? E o que poderia ser? Somos
costureiras, vivemos de cortar e coser.
_ Permitam-me apresentar-lhes uma
forma inédita de MEDIR AS PALAVRAS. Senhoras...
_ O quê? O senhor está a zombar de nós?
_ Não, não! Claro que não, dignas
senhoras. Eu lhes PEÇO A PALAVRA para...
_ Não pede que não vai ganhar. Não
queremos ouvir mais nada! Quem pensa que é? Saia já daqui!
_ Mas, senhoras...
_ Fora!
_ Eu... eu sou...
_ Fora! Fora daqui!
Bem tentou!
As palavras pulavam para fora
aos borbotões, mas o espaço fechava-se para elas.
O vendedor estava ainda mais
vermelho.
Sua garganta inchara por
dentro e por fora.
Palavras trancadas podem
afogar, aumentar a temperatura, fazer o apetite aumentar ou diminuir de acordo
com a situação do usuário.
Palavras são seres vivos desde
que as deixem viver.
E elas precisavam disso.
Mas que vendedor sem trato!,
não lograva sorte?
Haveria logo de oferecer uma
PACHOUCHADA!, Um PALAVRÃO, uma PALAVRADA!
Com certeza alguém deveria
gostar de palavras grandes, ou então, de palavras mais, como dizer, mais
assim... grosseiras.
Por que não? Afinal, as palavras
não são responsáveis pelo uso que fazem delas.
Os responsáveis que se
identifiquem.
Elas nunca têm nada a ver com o
assunto, mesmo sendo o assunto em questão.
Vendedor de palavras!
PALAVRA DE REI que hoje
algumas delas sairiam do anonimato.
Isso lá era jeito de tratar
um trabalhador honesto cujo produto era um bem de tamanha envergadura?
Ora!Ora!Ora!
Um grupo de abençoadas senhoras:
_ Deus esteja convosco, nobres
senhoras!
_ Com o senhor também! Amém! A
que comunidade pertence? Não nos parece conhecido!
_ Certamente! Certamente!Sou um
humilde servo DA PALAVRA.
_ Ora! Então seja bem vindo! O
que faz em nossa comunidade?
_ Estimadas senhoras, estou a
negócios e como não poderia deixar de observar, as senhoras consomem PALAVRAS
SANTAS.
_ Con... con... o que foi mesmo que
o senhor disse?
_ Digo em PALAVRAS CLARAS que tenho
a vossa disposição, as SANTAS PALAVRAS!
_ Ah! Sim... agora entendemos. O
senhor é um distribuidor de Bíblias. Muito bem!
_ Não! Não! Gentis senhoras. Eu sou
um vendedor de PARÁBOLAS.
_ E é?! Não sabia que era possível
vender parábolas. Como o senhor faz, as extrai do Livro Sagrado?
_ Obviamente não, caríssimas. Eu
simplesmente as transporto e ofereço. Vejam, estou em tal agonia que minha pele
arde em chamas pelo desejo de...
_ Blasfêmia! Como pode o mesmo homem
oferecer santas palavras e apresentar-se em fogo de... cruzes! Sai daqui seu
atentado!
_ Ouçam, ouçam piedosas e milagrosas
senh...
_ Retire-se de nossa presença. Está a
macular com vãs palavras a gentileza que trocamos com o senhor. Retire-se!
Retire-se!
_ Mas...
_ “Mas” algum apagará as palavras que
disse anteriormente...
_ Sim, apenas, deixem-me explicar o que
vendo...
_ SEM PALAVRAS! SEM PALAVRAS!... aqui o
senhor não poderá mais proferi-las. Não estaremos mais a ouvi-lo. Passar bem,
senhor... senhor não sabemos das quantas!
_ ...
E o silêncio falou mais alto.
A imagem que o vendedor fazia
de si desfez-se em brumas úmidas e pegajosas.
Começava a entardecer e ele
ainda queimava com a coceira espalhada pelo corpo inteiro.
Haveria esperança para o seu
comércio?
Haveria esperança para a sua
sobrevivência?
Sem palavras era um trocadilho
triste, muito triste para quem se encontrava carregado delas!
Mas estava sem palavras para
verbalizar!
PALAVRAS-CRUZADAS bateram em suas
costas.
Uma a uma faziam-se notar.
Precisavam de ar.
Precisavam de uso.
O tempo era o melhor remédio
para curá-las do esquecimento.
O tempo presente era o presente
que o vendedor procurava para oferecer-lhes.
Talvez... estivesse usando técnicas
ultrapassadas para abordar seus clientes.
Talvez fosse isso.
Ele escolhera a esmo, sem fazer uma
delimitação do roteiro de seu trabalho, sem avaliar com calma a quem se
dirigia.
Esquecera-se de olhar detidamente
para o ambiente que rodeava seus fregueses.
Estivera cometendo uma terrível
falha.
Mas eis que uma nova chance se
aproximava:
_ Jovem menina, posso DAR-LHE UMA
PALAVRA?
_ Sai pra lá, seu maluco! Socorro!
Tem um tio vermelho me incomodando! Socorro!
_ Senhorita, eu TENHO PALAVRAS para
vender. Posso TIRAR A PALAVRA...
_ Socorro! Um homem... um tio
vermelho está me importunando!
_ Senhorita! Estou SEM PALAVRAS, quero
dizer, tenho MUITAS PALAVRAS, PALAVRA DE HONRA... mas, espere, eu só quero...
Entre irritada e assustada, a
jovenzinha saiu a dizer PALANFRÓRIOS sem fim, diante de um vendedor que
entendeu ser a hora de PESAR AS PALAVRAS que carregava tão zelosamente.
Antes que fosse parado pela BAGAÇADA
da qual acabara de participar, era preciso recorrer ao idioma das pedras,
aquele que, segundo o grande Manoel de Barros - maior fazedor de linguagem de
todos os tempos – melhor abrange o silêncio das palavras.
Era preciso!
Era... Talvez... não!
Não seria possível CORTAR A
PALAVRA para oferecê-la.
Isso seria grosseiro,
deselegante, para não pensar na ilegalidade que tal ato propõe.
Ou ele oferecia a PALAVRA INTEIRA,
ou TIRAVA AS PALAVRAS de sua vida.
De uma vez por todas, precisava tomar
uma decisão.
Vermelho e cansado, o vendedor
procurou uma pedreira.
Sentou-se isolado entre suas irmãs de
consternação.
Aquele era um lugar sagrado. Haveria
de recuperar os sentidos...
Por horas a fio ficou a coçar-se.
Quando finalmente serenou sua alma e
acalmou as palavras agonizantes, ouviu ao longe uma nova linguagem.
Não!
Não era nova. Apenas ele não soubera
ouvi-la a tempo e com tempo.
Um bando de tuiuiús voava em
círculos, desenhando embaixo das nuvens as imagens de suas asas abertas.
Em silêncio, vendedor e palavras
acomodaram-se para não dizer mais nada. Aquele era um idioma universal.
Não havia o que fazer, nem o que
vender.
Era só escutar... escutar: o canto
dos pássaros falava por todos.
E na pedreira o vendedor instalou
sua casa.
Depositou as palavras no chão e uma
a uma soprou-as ao vento.
Fez uma oração de boa viagem e
desejou que cada uma delas encontrasse um sujeito trabalhador. Que cada uma
delas encontrasse um lugar para se mover, para representar, para transformar,
para ligar, para fazer existir.
Que elas encontrassem o mistério e a
magia e não se escondessem de qualquer deles.
Que elas fossem... fossem servir a
quem delas soubesse tirar proveito.
Que soubessem sofrer a ação do
tempo e do uso e não perdessem a identidade ao mudarem os sentidos que
carregavam. Sim! Pois esse era o sentido!
Que compreendessem as PALAVRAS
MALDITAS como suas companheiras de viagem, uma viagem pelo túnel do tempo e da
alma humana.
Que fossem... e sentissem sem medo a
massa da qual eram feitas, pois eis que a própria massa delas também dependia.
E não fugissem dos LUGARES COMUNS
quando solicitadas.
E que soubessem aceitar o
esquecimento como outra forma de dizer do homem.
Por ora, ele ficaria ali, o vendedor
de palavras, entre as pedras tagarelas a dizer sua ÚLTIMA PALAVRA:
_ Presente!
E soprou, soprou, soprou sem
parar até ver a última palavra grudar-se em alguém por trás das montanhas
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